O decrescimento é, sim, necessidade imperiosa

Autor: Eleutério F S Prado [1]

Não há dúvida, o capitalismo é globalmente hegemônico. Em quase todos os países que conformam o mundo atual domina o modo de produção histórico que se orienta pela acumulação de capital. Em todos eles, por isso, o crescimento econômico figura como um imperativo socialmente cristalizado. Em consequência, a expansão da produção como riqueza efetiva e da riqueza fictícia na forma de dívidas empapeladas (ou digitalizadas) não pode ser desafiada de modo eficaz. O decrescimento, assim, aparece como uma má utopia.

No entanto, acumulam-se já nos sítios da internet e nas prateleiras das bibliotecas artigos e livros que defendem o decrescimento como uma necessidade imperiosa e mesmo definitiva para o caso de que a humanidade deseje sobreviver nas próximas décadas deste e do próximo século pelo menos. Como se sabe, a razão imediata do surgimento dessa ansiedade teórica – e mesmo prática – advém da preocupação crescente com as mudanças climática enquanto uma mega-ameaça à existência de vida altamente organizada na face da Terra.

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A sociabilidade canibal

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Não se está a falar das sociedades que se costuma chamar de primitivas. Não, de modo algum. Está-se a falar do capitalismo. “Capitalism is back” – diz a autora que cunhou o termo “cannibal capitalism”, tendo por referência os Estados Unidos da América do Norte.    

Karl Marx, como se sabe, empregou a metáfora do “vampiro” para caracterizar a relação de capital, ou seja, o capital, porque ele suga o mais-valor dos trabalhadores, afirmando, ademais, que vem a ser um sujeito insaciável. Anselm Jappe denotou o capitalismo como uma sociedade autofágica para ressaltar que, se parece racional e é assim apreendido pelos economistas apologéticos, tende na verdade à desmedida e à autodestruição. Nancy Fraser, num livro recém-publicado, diz que o capitalismo é canibal pois ele, que atravessa agora o seu ocaso, está devorando a democracia, os cuidados reprodutivos, assim como as pessoas e o próprio planeta.

Em Cannibal capitalism (Verso, 2022), ela quer descobrir as fontes sociais desse destino infausto e aparentemente inesperado. Busca, assim, encontrar uma melhor caracterização do capitalismo contemporâneo que assoma como gerador de insegurança e desesperança, pois mantém e agrava uma coleção de impasses humanitários: dívidas impagáveis, empregos extenuantes, trabalho precário, violência racial e de gênero, pandemias assassinas, extremos climáticos etc., negando na prática o que fora prometido há pelos menos dois séculos e meio passados por meio do progresso e do iluminismo. Capitalismo canibal – diz a professora e filósofa da New School for Social Research de Nova York – “é o meu termo para designar um sistema social que nos trouxe a esse ponto”.

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Policrise e depressão no século XXI

Autor: Michael Roberts, The next recession blog, 05/05/2023

Policrise” é, no momento, a palavra da moda na esquerda. A palavra expressa o encontro e o entrelaçamento de várias crises simultâneas: econômica (inflação e recessão); ambiental (clima e pandemia); e geopolítica (guerra e divisões internacionais). Na verdade, uma ideia semelhante foi apresentada neste blog (The next recession blog) no início do ano passado. 

Portanto, não é surpresa que o último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU seja tão chocante. De acordo com ele, o mundo está mais pessimista do que em qualquer ponto da história moderna, ou seja, desde antes da Primeira Guerra Mundial.

O RDH apresentou uma análise das tendências linguísticas presentes em textos literários nos últimos 125 anos. Revelou assim que ocorreu um aumento acentuado nas expressões que refletem “distorções cognitivas associadas à depressão e outras formas de sofrimento mental”. Nas últimas duas décadas, a linguagem que reflete percepções excessivamente negativas sobre o mundo e sobre seu futuro se expandiu. De fato, os níveis de angústia atuais não têm precedentes, pois superam o que ocorreu em todos os eventos traumáticos do passado.

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Quando Marx traduziu O capital para o francês

Autor: Marcelo Musto [1]

Jacobin – 16/09/2022

Em fevereiro de 1867, após mais de duas décadas de trabalho hercúleo, Marx finalmente pôde dar a seu amigo Friedrich Engels a tão esperada notícia de que havia concluído a primeira parte de sua crítica da economia política. Mais tarde, Marx viajou de Londres a Hamburgo para entregar o manuscrito do Volume I (“O Processo de Produção do Capital”) de sua magnum opus e, de acordo com seu editor Otto Meissner, foi decidido que O Capital seria apresentado em três partes. Transbordando de satisfação, Marx escreveu que a publicação de seu livro foi “sem dúvida o mais terrível petardo lançado até agora contra a cabeça da burguesia”.

Apesar do longo trabalho de redação antes de 1867, a estrutura de O capital se expandiria consideravelmente nos anos seguintes. E o Volume I também continuou a absorver energias significativas de Marx, mesmo após sua publicação. Um dos exemplos mais óbvios desse compromisso foi a tradução francesa de O capital publicada em 44 fascículos entre 1872 e 1875. Esse volume não era uma mera tradução, mas uma versão “inteiramente revisada pelo autor”, na qual Marx também aprofundou a seção sobre o processo de acumulação de capital, e desenvolveu ainda mais suas ideias sobre a distinção entre “concentração” e “centralização” do capital.

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Blanchard: uma celeuma sobre a fonte da inflação

NT: Tem-se em sequência uma discussão muito instrutiva sobre o processo inflacionário, a qual foi suscitada por uma posição “inusitada” assumida pelo conhecido economista do sistema, Oliver Blanchard. Ele propõe enxergar o processo inflacionário atual como decorrente de um conflito distributivo entre salário e lucro – uma expressão econômica da luta de classes. O “erro” aparente que ele comete é que, atualmente, o poder de barganha dos trabalhadores é muito baixo. Logo, a inflação corrente se deve a um conflito distributivo que ocorre no processo da concorrência entre os próprios capitalistas; eis que eles lutam por margens de lucro superiores aumentando os preços. Mas o seu verdadeiro erro é que, do ponto de vista da crítica da economia política, essa teoria do conflito distributivo não passa de “economia vulgar”, uma teorização que fica nas aparências das coisas. Aqui está a postagem sobre isso.

Inflação e distributivo conflito . Além disso, uma resposta ao debate em torno desse tópico proposto por Blanchard.

Autor: Adam Toose – Chartbook #185

O ano de 2022 terminou com os dois principais bancos centrais do Ocidente novamente um pouco fora de sintonia. O Fed está diminuindo o ritmo dos aumentos de juros. Enquanto isso, os falcões do BCE estão sinalizando novos passos para um aperto severo, mesmo quando a inflação na Europa começa a esfriar.

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A armadilha do aperto monetário

A inflação que atualmente prospera na economia mundial, assim como as políticas restritivas que têm sido adotadas para combatê-la, têm minado os salários reais no mundo em geral e, em particular, no Brasil como mostra o gráfico em sequência:

É assim, pois, que a atual política de controle da inflação nos países ricos prejudica os trabalhadores e as populações do mundo como um todo, em especial dos países mais pobres.

Autora: Jayati Ghosh [1] – Project Syndicate – 15/11/2022

Governos e bancos centrais nos Estados Unidos e na Europa continuam a insistir que o aumento das taxas de juros é a única forma de domar a disparada dos preços, embora esteja bastante claro que essa abordagem não está funcionando. Essa confiança equivocada em aumentos de taxas de juros provavelmente levará ao desastre econômico em países de baixa e média renda.

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Da teoria vulgar da espiral salários/preços

Autor: Michael Roberts, The next recession blog – 20/11/22

Os aumentos salariais “excessivos” levam ao aumento da inflação e, assim, levam as economias a uma espiral de preços e salários? Em 1865, na Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx debateu esse tópico com o membro do Conselho dessa Associação, Thomas Weston. Weston, um líder do sindicato dos carpinteiros, argumentou que pedir aumento de salário era inútil porque tudo o que aconteceria seria que os empregadores aumentariam seus preços para manter seus lucros e, portanto, a inflação consumiria rapidamente o poder de compra elevado; os salários reais estagnariam e os trabalhadores voltariam à estaca zero por causa de uma espiral preço/salário.

Marx respondeu ao argumento de Weston com firmeza. A sua resposta, que acabou sendo publicada em um panfleto, Valor, Preço e Lucro, foi basicamente a que segue. Em primeiro lugar, “os aumentos salariais geralmente acontecem na esteira dos aumentos de preços anteriores” – a demanda por aumento do salário é uma tentativa de recuperação; não se deve, portanto, a demandas ‘excessivas’ e irrealistas por salários mais altos por parte dos trabalhadores. Em segundo lugar, não são os aumentos salariais que causam o aumento da inflação. Muitas outras coisas afetam as mudanças de preços – argumentou Marx: a saber: “a quantidade de produção (taxas de crescimento – MR), as forças produtivas do trabalho (crescimento da produtividade – MR), o valor do dinheiro (crescimento da oferta monetária – MR), flutuações do mercado preços (fixação de preços – MR) e diferentes fases do ciclo industrial” (boom ou recessão – MR).

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Reexame das fronteiras do capital

Resposta à Crítica da Razão Tecno-feudal de Morozov

Autor: Cédric Durand – NLR 136 – 2022

Evgeny Morozov forneceu uma crítica salutar das propostas recentes para conceituar as relações sociais da economia digital – os usuários da web estão supostamente presos como servos aos domínios inescapáveis dos barões da tecnologia – por analogia com os da era feudal. A sua “Crítica da Razão Tecno-feudal” oferece uma revisão sistemática do uso do termo feudal na teoria econômica contemporânea. Trata-se, para ele, de um pântano discursivo no qual, ele acusa, “a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita” – de neoliberais como Glen Weyl e Eric Posner, assim como de neo-reacionários como Curtis Yarvin e do anti-ativista (anti-wokite) Joel Kostin. Esses autores articulam a mesma crítica “neo-” ou “tecno-feudal” tal como o fazem Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Robert Kuttner ou Jodi Dean.

Se os pensadores radicais abraçaram o imaginário feudal como um estratagema retórico, como um meme aceitável, Morozov argumenta que isso é uma prova não de argúcia, mas de fraqueza intelectual – a coisa se passa “como se a estrutura teórica da esquerda não pudesse mais dar sentido ao capitalismo sem mobilizar a linguagem moral da corrupção e da perversão”. Ao desviar sua atenção das relações capitalistas reais para as reminiscências do feudalismo, ela corre o risco de deixar sua presa real para perseguir uma sombra, desviando-se de seu ângulo de ataque mais original e eficaz que se remete às relações socioeconômicas de exploração – ou seja, ao seu sofisticado aparato político teórico anticapitalista.[1]

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Uma crítica da razão tecno-feudal

Excertos tirados do artigo Critique of Techno-feudal reason publicado nos números 133/134 da New Left Review. Note-se, ademais, que já foi publicado neste blog um artigo sobre a mesma temática: Tecno-feudalismo ou socialismo do capital

Autor: Evgeny Morozov

Primeiro as boas notícias.[1] A moratória de imaginar o fim do capitalismo, apresentada na década de 1990 por Fredric Jameson, finalmente expirou. A recessão de décadas da imaginação progressista acabou. Aparentemente, a tarefa de vislumbrar alternativas sistêmicas tornou-se muito mais fácil, pois podemos trabalhar agora com distopias – eis que o aparentemente tão esperado fim do capitalismo poderia ser apenas o começo de algo muito pior.

O capitalismo tardio certamente é bem ruim, com seu coquetel explosivo de mudanças climáticas, desigualdade, brutalidade policial e a pandemia mortal. Mas, havendo a distopia se tornado importante novamente, alguns da esquerda se moveram silenciosamente para revisar o adagio de Jameson: hoje, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo tal como o conhecemos.

A notícia não tão boa é que, ao empreender esse exercício especulativo de construção de cenários apocalípticos, a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita. De fato, os dois polos ideológicos praticamente convergiram para uma descrição compartilhada da nova realidade. Para muitos, em ambos os campos, o fim do capitalismo realmente existente não significa mais o advento de um dia melhor, seja este o socialismo democrático, o anarco-sindicalismo ou, talvez, o liberalismo clássico “puro”. Em vez disso, o consenso emergente é que o novo regime é nada menos que uma espécie nova de feudalismo – às vezes, como bem se sabe, um “ismo” tem muitos amigos poucos respeitáveis.

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Nouriel Roubini diz mais sobre as mega-ameaças

N. T.: Nouriel Roubini não se apresenta como um pensador dialético, mas ele é capaz de apreender muitas contradições que estão por trás dos impasses da civilização. Daí que os seus textos sejam muito interessantes. Entretanto, como bom tecnocrata, pensa em termos de problemas e soluções sem jamais questionar o próprio sistema econômico do capital. Pois, como bem sabe, é somente assim, ou seja, mantendo uma perspectiva de crítica da economia política, que é possível compreender que a acumulação de capital, atualmente, cria barreira para si mesma, as quais não consegue superar. A intervenção do Estado em prol e em complemento da lógica do sistema econômico também se mostra insuficiente para criar as condições para uma acumulação de capital desenvolta. A crise estrutural parece, assim, não ter limites.

Entrevista publicada em Project Syndicate (PS) – 15/11/2022

Esta semana, PS conversa com Nouriel Roubini, professor emérito de economia da Stern School of Business da Universidade de Nova York, economista-chefe da Atlas Capital Team, CEO da Roubini Macro Associates, cofundador da TheBoomBust.com e autor de Mega threats: Ten dangerous trends that imperil our future and how to survive them.

PS: Em seu último comentário neste portal, você reafirmou a sua expectativa de que os esforços das autoridades monetárias para conter a inflação “causarão um colapso econômico e financeiro” e que “independentemente de suas mensagens duras”, os bancos centrais “sentirão imensas pressões” para reverter o aperto monetário” assim que uma ameaça de crash se materialize. Qual seria o impacto de tal reversão? Os formuladores de política monetária nos Estados Unidos e na Europa têm eventualmente boas opções – ou menos ruins?

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