Reexame das fronteiras do capital

Resposta à Crítica da Razão Tecno-feudal de Morozov

Autor: Cédric Durand – NLR 136 – 2022

Evgeny Morozov forneceu uma crítica salutar das propostas recentes para conceituar as relações sociais da economia digital – os usuários da web estão supostamente presos como servos aos domínios inescapáveis dos barões da tecnologia – por analogia com os da era feudal. A sua “Crítica da Razão Tecno-feudal” oferece uma revisão sistemática do uso do termo feudal na teoria econômica contemporânea. Trata-se, para ele, de um pântano discursivo no qual, ele acusa, “a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita” – de neoliberais como Glen Weyl e Eric Posner, assim como de neo-reacionários como Curtis Yarvin e do anti-ativista (anti-wokite) Joel Kostin. Esses autores articulam a mesma crítica “neo-” ou “tecno-feudal” tal como o fazem Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Robert Kuttner ou Jodi Dean.

Se os pensadores radicais abraçaram o imaginário feudal como um estratagema retórico, como um meme aceitável, Morozov argumenta que isso é uma prova não de argúcia, mas de fraqueza intelectual – a coisa se passa “como se a estrutura teórica da esquerda não pudesse mais dar sentido ao capitalismo sem mobilizar a linguagem moral da corrupção e da perversão”. Ao desviar sua atenção das relações capitalistas reais para as reminiscências do feudalismo, ela corre o risco de deixar sua presa real para perseguir uma sombra, desviando-se de seu ângulo de ataque mais original e eficaz que se remete às relações socioeconômicas de exploração – ou seja, ao seu sofisticado aparato político teórico anticapitalista.[1]

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Uma crítica da razão tecno-feudal

Excertos tirados do artigo Critique of Techno-feudal reason publicado nos números 133/134 da New Left Review. Note-se, ademais, que já foi publicado neste blog um artigo sobre a mesma temática: Tecno-feudalismo ou socialismo do capital

Autor: Evgeny Morozov

Primeiro as boas notícias.[1] A moratória de imaginar o fim do capitalismo, apresentada na década de 1990 por Fredric Jameson, finalmente expirou. A recessão de décadas da imaginação progressista acabou. Aparentemente, a tarefa de vislumbrar alternativas sistêmicas tornou-se muito mais fácil, pois podemos trabalhar agora com distopias – eis que o aparentemente tão esperado fim do capitalismo poderia ser apenas o começo de algo muito pior.

O capitalismo tardio certamente é bem ruim, com seu coquetel explosivo de mudanças climáticas, desigualdade, brutalidade policial e a pandemia mortal. Mas, havendo a distopia se tornado importante novamente, alguns da esquerda se moveram silenciosamente para revisar o adagio de Jameson: hoje, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo tal como o conhecemos.

A notícia não tão boa é que, ao empreender esse exercício especulativo de construção de cenários apocalípticos, a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita. De fato, os dois polos ideológicos praticamente convergiram para uma descrição compartilhada da nova realidade. Para muitos, em ambos os campos, o fim do capitalismo realmente existente não significa mais o advento de um dia melhor, seja este o socialismo democrático, o anarco-sindicalismo ou, talvez, o liberalismo clássico “puro”. Em vez disso, o consenso emergente é que o novo regime é nada menos que uma espécie nova de feudalismo – às vezes, como bem se sabe, um “ismo” tem muitos amigos poucos respeitáveis.

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Dilema energético: jogo de soma zero

Autor: Cédric Durand – 17/11/2021 – Blog Sidecar da NLR

Em minha recente intervenção no blog Sidecar, desenvolvi o argumento de que as perturbações econômicas desencadeadas pela alta dos preços de energia – especialmente no mercado de gás – podem estar conectadas às políticas climáticas dos governos. Adam Tooze, respondendo em seu Chartbook # 51 , desafia essa tese que chamei de “dilema energético”. O que Tooze rejeita sem ambiguidade é o mote de que as empresas de combustíveis fósseis ocidentais avaliaram a perspectiva de mudanças nas políticas relacionadas ao clima em seu comportamento de investimento e que isso contribuiu para as tensões no lado da oferta que vieram à tona neste outono. Embora eu concorde que evidências mais fortes são necessárias para chegar a uma conclusão definitiva, ainda assim tenho várias reservas sobre o ensaio de Tooze.

No contexto da crise atual, o termo “dilema energético” foi cunhado por Lara Dong, analista da consultoria IHS Markit, que explicou como as autoridades chinesas têm lutado para equilibrar as preocupações ambientais com o carvão com a necessidade de segurança energética. No entanto, esta não é uma ideia nova. Trata-se de uma tese que pode ser rastreada desde a década de 1970, quando os especialistas se tornaram cada vez mais conscientes da tensão entre alcançar o fornecimento de energia confiável e acessível e limitar o impacto prejudicial do crescente consumo de combustível fóssil. Em 2010, o geógrafo Michael J. Bradshaw produziu uma formulação sistemática do dilema apresentando-o em “Global Energy Dilemmas: A Geographical Perspective”. Nesse escrito, perguntou: “é possível ter a energia necessária para o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, gerenciar a transição para um sistema de energia de baixo carbono necessário para evitar mudanças climáticas catastróficas?

Tooze, em sua peça, apresenta a tese do “dilema da energia” da seguinte forma: “o boato que continua circulando é que o déficit de oferta está diretamente ligado à política climática. Muita conversa sobre a “zeragem líquida” desencorajou os investidores de combustíveis fósseis, resultando em menor investimento, oferta restrita e vulnerabilidade a choques de demanda.

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Dilema energético: outra explicação

No texto em sequência Adam Toose contesta a tese de Cédric Durand de que uma contradição – a acumulação de capital requer elevação da oferta de energia, mas a crise climática opera para diminui-la – está presente na transição energética. Num poste a ser brevemente publicado, Cédric Durand fornece a sua resposta.

Autor: Adam Toose, 20/11/2021, Chartbook

Em 2021, os preços da energia em todo o mundo dispararam dando origem ao boato sobre a existência de uma “crise energética”.

Por que a oferta de carvão, petróleo e gás ficou tão aquém da demanda? Depois de um artigo no New Statesman e uma troca de ideias com Richard Seymour, volto à questão novamente. E não apenas porque a indústria de energia é complicada e fascinante, mas porque a resposta que dei é crucial para localizar onde se está na batalha pela transição energética.   

O boato que continua a circular é que a escassez de oferta está diretamente ligada à política climática. Muita falação sobre uma “zeragem líquida” desencorajou os investidores em combustíveis fósseis, resultando em menor investimento, oferta restrita e vulnerabilidade a choques de demanda. Essa ideia tem uma atração óbvia para os lobistas dos combustíveis fósseis, que podem usá-la para argumentar que a transição energética deve ser adiada. Mas também tem tração na esquerda, como argumentado mais recentemente e explicitamente em Cédric Durand em um ensaio intitulado “dilema de energia” no blog Sidecar da New Left Review. Aí ele escreve:    

O capitalismo já está experimentando o primeiro grande choque econômico relacionado à transição além do carbono. O aumento nos preços da energia se deve a vários fatores, incluindo uma recuperação desordenada da pandemia, mercados de energia mal projetados no Reino Unido e na EU, os quais exacerbam a volatilidade dos preços, assim como a disposição da Rússia em garantir sua receita de energia de longo prazo. No entanto, em um nível mais estrutural, o impacto dos primeiros esforços feitos para restringir o uso de combustíveis fósseis não pode ser negligenciado. Devido aos limites do governo à queima de carvão, além da crescente relutância dos acionistas em se comprometer com projetos que poderiam estar obsoletos em trinta anos, o investimento em combustível fóssil tem caído. Embora esta contração da oferta não seja suficiente para salvar o clima, ela se mostra capaz de abalar o crescimento capitalista.   

A atração desse tipo de argumento para um teórico da crise de tendência marxista é óbvia. Contém em si o anel de uma contradição da qual se poderia derivar um modelo geral de crise. Ele também apareceu um surpreendente número de vezes nas páginas do Financial Times. Pois se trata de um cenário aparentemente plausível. Mas, enquanto relato da crise de energia de 2021, é fundamentalmente enganoso. Atribui demasiada influência à política climática e confunde a dinâmica básica de investimento no setor.

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Dilema energético: eficiência ou eficácia?

Autor: Cédric Durand

Blog Sidecar, 5/11/2021

A bifurcação ecológica não é um jantar de gala. Após um verão de eventos climáticos extremos e um novo relatório do IPCC confirmando suas previsões mais preocupantes, grande parte do mundo está agora sendo sacudida por uma crise de energia que prefigura crescentes problemas econômicos no futuro. Essa conjuntura enterrou o sonho de uma transição harmoniosa para um mundo pós-carbono, trazendo à tona a questão da crise ecológica do capitalismo. Na COP26, o tom dominante foi de impotência. As tragédias iminentes deixaram a humanidade encurralada entre as demandas imediatas de reprodução sistêmica e a aceleração dos distúrbios climáticos.

Prima facie, pode-se pensar que medidas estão sendo tomadas para lidar com esse cataclismo. Mais de 50 países – além de toda a União Europeia – se comprometeram a cumprir as metas de emissões líquidas zero. Se isso ocorrer as emissões globais de CO2 relacionadas à energia cairiam em 40% entre hoje e 2050. No entanto, uma leitura sóbria dos dados científicos mostra que a transição verde está fora do bom caminho.

Ficar aquém desta meta, acréscimos nulos de emissões globalmente, significa que as temperaturas continuarão a aumentar, levando o mundo a ficar em média bem acima de 2° C até 2100. De acordo com o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), os países foram solicitados a apresentar antes da COP26 as contribuições que poderiam dar. Se elas se efetivarem, reduziriam as emissões de 2030 em 7,5%. No entanto, uma queda de 30% é necessária para limitar o aquecimento a 2° C, enquanto 55% seriam necessários para 1,5° C.

Como advertiu um editorial recente da revista Nature, muitos desses países fizeram promessas de zerar o crescimento, mas não apresentaram um plano concreto para atingir esse objetivo. Quais gases serão os alvos? Até que ponto o valor líquido zero depende de redução efetiva em vez cair no esquema da compensação? Este último tornou-se particularmente atraente para países ricos e empresas poluidoras, uma vez que não reduz diretamente as suas emissões, pois envolvem a transferência do fardo do corte de carbono para as nações de baixa e média renda (que serão mais gravemente afetadas pela quebra do clima).

Sobre essas questões cruciais, informações confiáveis ​​e compromissos transparentes não foram estabelecidos, o que coloca em risco a possibilidade de um monitoramento científico internacional confiável. Conclusão: com base nas políticas climáticas globais atuais – as já implementadas e as propostas – o mundo está a caminho de um aumento devastador nas emissões durante a próxima década.

Apesar disso, o capitalismo já experimentou o primeiro grande choque econômico relacionado à transição para além do carbono. O aumento nos preços da energia se deve a vários fatores, incluindo uma recuperação desordenada da pandemia, mercados de energia mal projetados no Reino Unido e na União Europeia, os quais exacerbam a volatilidade dos preços, assim como a disposição da Rússia em garantir sua receita de energia no longo prazo.

No entanto, em um nível mais estrutural, o impacto dos primeiros esforços já feitos para restringir o uso de combustíveis fósseis não pode ser negligenciado. Devido às limitações governamentais à queima de carvão, além da crescente relutância dos acionistas em se comprometer com projetos que poderiam estar obsoletos em trinta anos, o investimento em combustível fóssil tem caído. Embora essa contração da oferta não seja suficiente para salvar o clima, ela sacrifica de imediato o crescimento capitalista.

A reunião de vários eventos recentes dá uma ideia do que está por vir. Na região do Punjab, na Índia, uma grave escassez de carvão causou apagões de energia não programados. Na China, mais da metade das jurisdições provinciais impuseram medidas rígidas de racionamento de energia. Várias empresas, incluindo fornecedores importantes da Apple, foram recentemente forçadas a interromper ou reduzir as operações nas instalações na província de Jiangsu, depois que os governos locais restringiram o fornecimento de eletricidade.

Essas restrições resultaram de tentativas de cumprir as metas de emissões nacionais por meio da restrição à geração de energia usando carvão. Ora, essa fonte ainda responde por cerca de dois terços da eletricidade da China. Para conter a repercussão dessas interrupções, as autoridades chinesas colocaram um freio temporário em suas ambições climáticas, ordenando que 72 minas de carvão aumentassem seus fornecimentos; ao mesmo tempo, foram reiniciadas as importações de carvão australiano que haviam sido interrompidas por meses em meio a tensões diplomáticas entre os dois países.

Na Europa, um aumento dos preços do gás desencadeou a crise atual. Assombrados pela memória das rebeliões dos coletes amarelos (gilets jaunes)contra o imposto na emissão de carbono de Marcon, os governos intervieram criando subsídios de energia para as classes populares.

De forma inesperada, porém, aumentos do preço do gás precipitaram reações em cadeia no setor manufatureiro. O caso dos fertilizantes é revelador. Um grupo americano, CF Industries, decidiu encerrar a produção em suas fábricas de fertilizantes no Reino Unido, as quais deixaram de ser lucrativas devido aos aumentos de preços dos insumos. Ora, essa empresa fornecia anteriormente 45% do CO2 usado no setor alimentício do Reino Unido. De qualquer modo, essa decisão desencadeou semanas de caos na indústria, afetando vários setores, de cerveja e refrigerantes a embalagens de alimentos e carnes.

Globalmente, o aumento dos preços do gás está afetando o setor agrícola por meio do aumento dos preços dos fertilizantes. Na Tailândia, o custo dos fertilizantes dobrou desde 2020, aumentando os custos para muitos produtores de arroz e colocando em risco a temporada de plantio. Se isso continuar, os governos podem ter que intervir para garantir o fornecimento de alimentos essenciais. 

As repercussões globais e generalizadas da escassez de energia e dos aumentos de preços ressaltam as consequências complexas envolvidas na transformação estrutural necessária para eliminar as emissões de carbono. À medida que ocorre uma redução no fornecimento de hidrocarbonetos, o aumento das fontes de energia sustentável não se afigura suficiente para atender à demanda crescente. Isso cria uma insuficiência de energia que pode atrapalhar a transição completamente.

Nesse contexto, os países podem retornar à fonte de energia mais facilmente disponível – o carvão – ou então terão de aceitar uma contração econômica impulsionada pelo aumento dos custos. Ora, isso terá efeitos na lucratividade, nos preços de consumo e na estabilidade do sistema financeiro. No curto prazo, então, há uma contradição entre os objetivos ecológicos e a necessidade de promover o crescimento. Esse dilema energético se manterá no médio e no longo prazo? Enfrentar-se-á agora, necessariamente, uma escolha entre cuidar do clima ou promover o crescimento? – eis a questão.

Uma transição de carbono bem-sucedida implica o desenvolvimento harmonioso de dois processos complexamente relacionados nos níveis material, econômico e financeiro. Primeiro, um processo progressivo de abandono deve ocorrer. As fontes produtoras de carbono devem ser drasticamente reduzidas; dentre elas, sobretudo a extração de hidrocarbonetos. Mas também devem ser diminuídas a produção de eletricidade a partir do carvão e do gás, assim como a amplitude do uso dos sistemas de transporte à base de combustíveis. Sofrerão consequências tanto o setor da construção (devido ao elevado nível de emissões envolvido na produção de cimento e aço) quanto a indústria da carne (devido ao gás metano produzido pelo gado).

O que está em jogo em tudo isso é o decrescimento e isso no sentido bem direto: equipamentos devem ser descartados, as reservas de combustível fóssil devem permanecer no solo, a pecuária intensiva deve ser abandonada e uma série de habilidades profissionais deve se tornar redundante.

Tudo o mais igual, a eliminação de capacidade de produção implica em contração da oferta, o que leva ao aumento das pressões inflacionárias generalizadamente. Isso é ainda mais provável porque os setores mais afetados estão localizados no alto escalão das economias modernas. Na forma de uma cascata destes para outros setores, a pressão sobre os custos afetará o mark-up das empresas, os lucros globais e/ou o poder de compra do consumidor, desencadeando fortes forças recessivas. Além disso, o decrescimento da economia de carbono é uma perda líquida do ponto de vista da valorização do capital financeiro: enormes quantidades de ativos “podres” terão de ser eliminados, uma vez que os lucros esperados subjacentes estarão perdidos, abrindo caminho para vendas incendiárias e ricocheteando no massa de capital fictício. Essas dinâmicas inter-relacionadas vão se alimentar mutuamente, à medida que as forças recessivas elevarem a inadimplência. Diante desta última, uma crise financeira congelará o acesso ao crédito. 

O outro lado da transição é um grande impulso de investimento para acomodar o choque de oferta causado pelo decrescimento do setor baseado no carbono. Embora a mudança de hábitos de consumo possa desempenhar um papel, especialmente em países ricos, a criação de novas capacidades de produção sem carbono, melhorias na eficiência, eletrificação de transporte, sistemas industriais e de aquecimento (junto com a implantação de captura de carbono em alguns casos) também são necessários para compensar a eliminação progressiva das emissões de gases com efeito de estufa.

De uma perspectiva capitalista, isso poderia representar novas oportunidades de lucro, desde que os custos de produção não sejam proibitivos em relação à demanda disponível. Atraídas por essa valorização, as finanças verdes podem intervir e acelerar a transição, impulsionando uma nova onda de acumulação capaz de sustentar empregos e padrões de vida.

No entanto, é importante ter em mente que o tempo é tudo nesse processo: fazer esses ajustes em cinquenta anos é completamente diferente de ter que se desligar drasticamente em uma década. Dado onde se chegou e onde se está agora, as perspectivas de uma mudança suave e adequada para a energia verde são mínimas, para dizer o mínimo. A redução do setor baseado no carbono permanece incerta devido à contingência inerente dos processos políticos e à falta persistente de engajamento das autoridades estatais. É ilustrativo que um único senador, Joe Manchin III, da Virgínia Ocidental, foi capaz de bloquear o programa dos democratas dos EUA no sentido de facilitar a substituição de usinas movidas a carvão e gás. 

Conforme ilustrado pelas interrupções atuais, a falta de alternativas prontamente disponíveis também pode dificultar a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis. De acordo com a AIE (Agência Internacional de Energia): “Os gastos relacionados à transição […] permanecem muito aquém do que é necessário para atender à crescente demanda por serviços de energia de forma sustentável. O déficit é visível em todos os setores e regiões”. Em seu último Relatório sobre a questão energética, a Bloomberg estima que uma economia global em crescimento exigirá um nível de investimento em fornecimento de energia e infraestrutura entre US $ 92 trilhões e US $ 173 trilhões nos próximos trinta anos. O investimento anual precisará mais do que dobrar, passando de cerca de US $ 1,7 trilhão por ano hoje, para algo entre US $ 3,1 trilhões e US $ 5,8 trilhões por ano em média. A magnitude de tal ajuste macroeconômico seria sem precedentes.

Do ponto de vista da teoria econômica dominante, esse ajuste ainda é uma questão de acertar os preços. Em um relatório recente encomendado pelo presidente francês Emmanuel Macron, dois importantes economistas da área, Christian Gollier e Mar Reguant, argumentam que “o valor do carbono deve ser usado como parâmetro para todas as dimensões da formulação de políticas públicas”. Embora os padrões e regulamentações não devam ser descartados, uma “precificação do carbono bem projetada”, feita por meio de um imposto sobre o carbono, deve desempenhar o papel principal em relação a um possível mecanismo limitador da produção e da comercialização.

Espera-se que os mecanismos de mercado internalizem as externalidades negativas das emissões de gases de efeito estufa, permitindo uma transição ordenada tanto do lado da oferta quanto da demanda. “A precificação do carbono tem a vantagem de focar na eficiência em termos de custo por tonelada de CO2, sem a necessidade de identificar com antecedência quais medidas vão funcionar.” Refletindo a plasticidade do ajuste de mercado, um preço de carbono – “ao contrário de medidas mais prescritivas” – abre um espaço para “soluções inovadoras”. 

Essa perspectiva de livre mercado e tecno-otimista garante que o crescimento capitalista e a estabilização do clima sejam reconciliáveis. No entanto, apresenta duas deficiências principais. O primeiro é a cegueira da abordagem de precificação do carbono para a dinâmica macroeconômica envolvida no esforço de transição. Um relatório recente de Jean Pisani Ferry, escrito para o Peterson Institute for International Economics, minimiza a possibilidade de qualquer ajuste suave impulsionado pelos preços de mercado, ao mesmo tempo que destrói as esperanças de um New Deal Verde que possa levantar todos os barcos simultaneamente. 

Observando que “a procrastinação reduziu as chances de engendrar uma transição ordenada”, o relatório observa que “não há garantia de que a transição para a neutralidade de carbono será boa para o crescimento”. O processo é bastante simples: 1) uma vez que a descarbonização implica numa obsolescência acelerada de alguma parte do estoque de capital existente, a oferta será reduzida; 2) entretanto, serão necessários mais investimentos. A questão candente então é: existem recursos suficientes na economia para permitir mais investimento ao lado da oferta enfraquecida?

A resposta depende do tamanho da folga na economia – ou seja, da capacidade produtiva ociosa e do desemprego existente. Mas, considerando o tamanho do ajuste e o prazo reduzido, isso não pode ser dado como certo. Na opinião de Pisani Ferry, “o impacto sobre o crescimento será ambíguo, o impacto sobre o consumo deverá ser negativo. A ação climática é como uma preparação militar diante de uma ameaça: boa para o bem-estar no longo prazo, mas ruim para a satisfação do consumidor”. Transferir os recursos do consumo para o investimento significa que os consumidores inevitavelmente arcarão com o custo do esforço.

Apesar de sua perspectiva neokeynesiana, Pisani-Ferry abre uma discussão perspicaz sobre as condições políticas que permitiriam uma redução nos padrões de vida e uma guerra de classes verde travada ao longo das linhas de renda. Ainda assim, em seu apego ao mecanismo de preços, seu argumento compartilha com a abordagem de ajuste de mercado uma ênfase irracional na eficiência da redução das emissões de CO2.

A segunda lacuna da contribuição de Gollier e Reguant torna-se aparente quando eles exigem “uma combinação de ações climáticas com o menor custo possível por tonelada-equivalente de CO2 não emitida”. Na verdade, como os próprios autores reconhecem, a definição dos preços do carbono é altamente incerta. As avaliações podem variar de US$ 45 a US$ 14.300 por tonelada, dependendo do horizonte de tempo e da redução almejada. Com tal variabilidade, não adianta tentar otimizar o custo da redução de carbono de modo intertemporal. O importante não é o custo do ajuste, mas a certeza de que ocorrerá a estabilização do clima.

Descortinando as especificidades do estado desenvolvimentista japonês, o cientista político Chalmers Johnson fez uma distinção que também poderia ser aplicada ao debate sobre a transição: 

Um estado regulador, ou racional de mercado, preocupa-se com a forma e os procedimentos – as regras, se preferir – da competição econômica, mas não se preocupa com questões substantivas […] O estado desenvolvimentista, ou estado racional planejador, ao contrário, tem como característica dominante precisamente o estabelecimento de tais objetivos sociais e econômicos substantivos.

Em outras palavras, enquanto o primeiro visa a eficiência – usar de modo mais econômico os recursos – o segundo se preocupa com a eficácia: ou seja, pela capacidade de atingir um determinado objetivo, seja na guerra ou na industrialização. Dada a ameaça existencial representada pelas mudanças climáticas e o fato de existir uma métrica simples e estável para orientar as decisões, a preocupação deve ser com a eficácia da redução dos gases de efeito estufa e não com a eficiência do esforço. Em vez de usar o mecanismo de preços para permitir que o mercado decida onde o esforço deve estar, é infinitamente mais simples somar metas nos níveis setorial e geográfico e fornecer um plano de redução consistente para garantir que a meta geral seja alcançada a tempo.

Ruchir Sharma do Morgan Stanley, escrevendo sobre essa questão no Financial Times, levanta um ponto que defende indiretamente o planejamento ecológico. Ele observa que o impulso de investimento necessário para a transição além de uma economia baseada no carbono apresenta um problema trivialmente material: por um lado, as atividades sujas – particularmente nos setores de mineração ou produção de metal – tornam-se não lucrativas devido ao aumento da regulamentação ou dos preços mais altos; por outro lado, o investimento para tornar a infraestrutura mais verde requer tais recursos para expandir as capacidades. A diminuição da oferta e o aumento da demanda são, portanto, uma receita para o que ele chama de “inflação verde”. Sharma, portanto, argumenta que “bloquear novas minas e plataformas de petróleo nem sempre será uma medida ambiental e socialmente responsável.”

Como porta-voz de uma instituição com grande interesse em commodities poluentes, Sharma dificilmente pode ser visto como um comentarista neutro. Mas o problema que ele articula – como fornecer material sujo suficiente para construir uma economia de energia limpa? – é bem real. E está relacionado com outra questão, ou seja, com uma suposta transição impulsionada pelo mercado: a precificação do carbono não permite que a sociedade discrimine entre os usos espúrios de carbono – como enviar bilionários para o espaço – e usos vitais, como construir a infraestrutura para uma economia sem carbono. Em uma transição bem-sucedida, o primeiro uso deveria ser impossível, enquanto que o segundo deveria o mais barato possível. Como tal, um preço único de carbono torna-se um caminho claro para o fracasso.

Isso nos traz de volta a um argumento antigo, mas ainda decisivo: reconstruir uma economia – neste caso, aquela que elimina gradativamente os combustíveis fósseis – requer reestruturar a cadeia de relações entre seus diversos segmentos, o que sugere que o destino da economia como um todo depende de seu ponto de menor resistência. Como Alexandr Bogdanov observou no contexto da construção do jovem estado soviético, “por causa dessas relações interdependentes, o processo de expansão da economia está inteiramente sujeito à lei do ponto mais fraco”. Essa linha de pensamento foi posteriormente desenvolvida por Wassily Leontief em suas contribuições para a análise de insumo-produto. Afirma que os ajustes de mercado simplesmente não dependem de uma transformação estrutural. Em tais situações, o que é necessário é um mecanismo de planejamento cuidadoso e adaptativo, capaz de identificar e lidar com um aparecimento complexo de gargalos.

Quando se consideram os desafios econômicos da reestruturação das economias para manter as emissões de carbono em linha com a estabilização do clima, essa discussão adquire um novo enquadramento. A eficácia deve ter precedência sobre a eficiência na redução de emissões. Isso significa abandonar o fetiche do mecanismo de preço para planejar como os recursos sujos restantes serão usados ​​no serviço de infraestrutura limpa. Esse planejamento deve ter alcance internacional, uma vez que as maiores oportunidades de descarbonização do fornecimento de energia estão localizadas no Sul Global.

Além disso, como a transformação do lado da oferta não será suficiente, as transformações do lado da demanda também serão essenciais para permanecer dentro dos limites planetários. As necessidades de energia para fornecer padrões de vida decentes à população global podem ser drasticamente reduzidas, mas, além do uso das tecnologias disponíveis mais eficientes, isso implica uma transformação radical dos padrões de consumo, incluindo procedimentos políticos para priorizar entre reivindicações de consumo concorrentes.   

Com sua preocupação de longa data com o planejamento e o consumo socializado, o socialismo internacional é um candidato óbvio para assumir essa tarefa histórica. Embora o mau estado da política socialista não conjure muito otimismo, a conjuntura catastrófica em que estamos entrando – junto com a volatilidade dos preços e os espasmos contínuos das crises capitalistas – podem aumentar a fluidez da situação. Em tais circunstâncias, a esquerda deve ser flexível o suficiente para aproveitar qualquer oportunidade política que aumente a causa de uma transição ecológica democrática.

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Tecno-feudalismo ou socialismo do capital?

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

Os contornos da hipótese

Esta nota visa apresentar criticamente uma conjectura sobre natureza do capitalismo contemporâneo contida no livro Techno-féodalisme – Critique de l’économie numérique de Cédric Durand (La Découverte, 2020). Segundo essa hipótese, o capitalismo industrial, enquanto um modo de produção progressivo, gerador de crescimento econômico, foi já substituído por um capitalismo rentista, moroso e depredador, que deve ser agora cognominado de tecno-feudalismo.

Segundo esse autor, as tecnologias digitais não trouxeram, tal como havia sido prometido pela ideologia do Vale do Silício, um horizonte radiante para o capitalismo; ao contrário, elas tanto enrijeceram o neoliberalismo quanto produziram a degradação do próprio modo de produção. Pois, reconfiguraram as relações sociais de um modo reacionário: se antes delas prevalecia ainda um sistema descentralizado de produção de mercadorias em que imperava concorrência, com elas e por meio delas ocorreu uma centralização e monopolização que criou de novo uma estrutura de dependência na esfera da produção, uma nova forma de submissão das unidades de produção aos donos de um poder “fundiário”. E essa forma – diz ele – tinha sido suprimida historicamente pelo capitalismo concorrencial dos séculos XVII, XVIII e XIX, tendo se mantido mesmo quando sobreveio a fase monopolista no final do século XIX.

Eis que agora todas as empresas individuais, pequenas, médias e grandes se tornaram dependentes de um recurso, as plataformas digitais, as quais são detidas por uma fração privilegiada de capitalistas; ademais, elas são mantidas e comandadas apenas por um conjunto restrito de trabalhadores, dependentes diretos também dessa fração. Ora, essas plataformas se tornaram meios de produção universais já que contêm as bases de dados e os algoritmos indispensáveis para o exercício de qualquer atividade econômica importante e, assim, em geral.

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Planificação na idade do algoritmo – Parte III

O blog Economia e Complexidade está publicando em três partes, sempre as segundas-feiras, uma tradução do artigo Planificação na Idade do Algoritmo de Cédric Durand e Razmig Keucheyan que saiu recentemente na revista francesa Actuel Marx.

Hoje se publica a Parte III

Nas semanas anteriores publicou-se duas notas sobre as principais contribuições críticas à possibilidade de realizar um cálculo econômico eficiente e eficaz no socialismo. Entende-se que este sistema social, abolindo ou não os mercados, baseia-se de algum modo no planejamento centralizado. A primeira foi dedicada aos aportes de Ludwig von Mises e a segunda visou os artigos mais importantes de Friedrich Hayek sobre esse tema.

Agora se ventila um artigo que retoma o debate clássico considerando o fato de que a sociedade contemporânea está cada vez mais fazendo uso dos algoritmos que operam com base em imensos bancos de dados (os Big Data). Eis que eles permitem que possam existir outras formas de coordenação da sociedade que não se valem dos mercados.

Três motivos suscitam não só a retomada do debate, mas a sua efetivação num outro nível de discussão em relação ao que ocorreu no passado: a crise de 2008 colocou de novo a viabilidade histórica do capitalismo; a possibilidade da catástrofe ecológica põe a necessidade imperiosa do planejamento; e os avanços da informática parecem abrir novas possibilidades de coordenação dos sistemas sociais.

A parte III se encontra aqui: Panificação na idade do algoritmo – Parte III

Planificação na idade do algoritmo – Parte II

O blog Economia e Complexidade está publicando em três partes, sempre as segundas-feiras, uma tradução do artigo Planificação na Idade do Algoritmo de Cédric Durand e Razmig Keucheyan que saiu recentemente na revista francesa Actuel Marx.

Hoje se publica a Parte II

Nas semanas anteriores publicou-se duas notas sobre as principais contribuições críticas à possibilidade de realizar um cálculo econômico eficiente e eficaz no socialismo. Essas críticas entendem que este sistema social, abolindo ou não os mercados, baseia-se de algum modo no planejamento centralizado. A primeira foi dedicada aos aportes de Ludwig von Mises e a segunda visou os artigos mais importantes de Friedrich Hayek sobre esse tema.

Agora se ventila um artigo que retoma o debate clássico considerando o fato de que a sociedade contemporânea está cada vez mais fazendo uso dos algoritmos que operam com base em imensos bancos de dados (os Big Data). Eis que eles permitem que possam existir outras formas de coordenação da sociedade que não se valem dos mercados – e que não requerem também o Estado.

Três motivos suscitam não só a retomada do debate, mas a sua efetivação num outro nível de discussão em relação ao que ocorreu no passado: a crise de 2008 colocou de novo a viabilidade histórica do capitalismo; a possibilidade da catástrofe ecológica põe a necessidade imperiosa do planejamento; e os avanços da informática parecem abrir novas possibilidades de coordenação dos sistemas sociais.

Como já se fez anteriormente, discutiu-se neste blog o conteúdo de um artigo de Evgeny Morozov cujo nome, traduzido, fica aproximadamente assim: Socialismo digital? O debate sobre o cálculo socialista na era dos grandes sistemas de informação (Digital socialism? The calculation debate in the age of Big Data). O artigo ora em processo de publicação é uma contribuição importante nesse mesmo sentido.

A parte II se encontra aqui: Planificação na idade do algoritmo – Parte II

Planificação na idade do algoritmo – Parte I

O blog Economia e Complexidade está publicando, em três partes, sempre as segundas-feiras, uma tradução do artigo Planificação na Idade do Algoritmo de Cédric Durand e Razmig Keucheyan que saiu recentemente na revista francesa Actuel Marx.

Hoje se publica a Parte I

Nas semanas anteriores publicou-se posts sobre as principais contribuições críticas à possibilidade de realizar um cálculo econômico eficiente e eficaz no socialismo. Essas críticas pressupõe que este sistema social, abolindo ou não os mercados, baseia-se de algum modo no planejamento centralizado. Uma delas foi dedicada às críticas de Ludwig von Mises e a segunda visou os artigos mais importantes de Friedrich Hayek sobre esse tema.

Como se sabe, os economistas austríacos são os principais adversários do socialismo. Na prática, eles não relutam em apoiar ditaduras quando estas se opõe a eventuais experiência históricas como ocorreu no Chile. Mas no plano teórico, eles foram capazes de apresentar alguns argumentos que atingiram em cheio as experiências autoritárias de socialismo.

Agora se ventila um artigo que retoma o debate clássico considerando o fato de que a sociedade contemporânea está cada vez mais fazendo uso dos algoritmos que operam com base em imensos bancos de dados (os Big Data). Eis que eles permitem que possam existir outras formas de coordenação da sociedade que não se valem nem dos mercados nem do Estado.

Três motivos suscitam não só a retomada do debate, mas a sua efetivação num outro nível de discussão em relação ao que ocorreu no passado: a crise de 2008 colocou de novo a questão da viabilidade histórica do capitalismo; a possibilidade da catástrofe ecológica põe a necessidade imperiosa do planejamento; e os avanços da informática parecem abrir novas possibilidades de coordenação dos sistemas sociais.

A parte I se encontra aqui: Planificação na idade do algoritmo – Parte I

O que é financeirização? (III)

No post publicado O que é financeirização? (I) [27/07/2013], mostrou-se que não se pode apreender esse fenômeno tratando a esfera do capital de finanças como simplesmente exterior à esfera do capital industrial e do capital comercial. Pois, se trata de um desenvolvimento orgânico do capitalismo que costuma ocorrer quando a taxa de lucro cai fortemente num horizonte de longo prazo.

No post O que é financeirização? (II) [26/05/2018] apresentou-se os principais resultados da pesquisa de Gretta Krippner expostos no livro Capitalizando na Crise – As origens políticas da ascensão da finança. Mostrou-se, então, que essa autora usou o termo financeirização “para se referir à crescente importância das atividades financeiras como fonte de lucros na economia”. Indicou-se, também, que, para apreender este fenômeno de forma abrangente, ela englobara sob o nome de “lucros financeiros” os ganhos capitalistas (juros, dividendos, bonificações, etc.) que são obtidos por meio dos “canais financeiros”.

No post O que é financeirização? (III) [1/07/2018] que agora se publica, procura-se mostrar como é possível sanar uma deficiência do trabalho de Krippner. Ainda que tenha descrito qualitativa e quantitativamente o fenômeno da financeirização, ela não examinou as suas origens socioeconômicas, isto é, as relações sociais exploradoras e espoliadoras que dão origem às diferentes formas de lucros financeiros. Faz-se isso neste post resumindo capítulos chaves do livro de Cédric Durand, Capital fictício – como a finança está se apropriando do nosso futuro.

A nota que busca apresentar com certa clareza o caráter sugador, predador e regressivo do capitalismo contemporâneo, encontra-se aqui: O que e financeirização? – III