Da noção de capital financeiro

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

O capital financeiro e a financeirização são fenômenos conexos que se manifestaram no século XX, sem terem nascido ab ovo nem de novas hegemonias de classe nem de grandes mudanças de política econômica, historicamente datadas. Não podem, portanto, serem vistos como desvios sociais, políticos ou econômicos que não existiriam em um capitalismo alternativo e melhor, tal como costuma pensar certas correntes do marxismo vulgar e do keynesianismo crítico.

Eis que são processos inerentes ou próprios da lógica de desenvolvimento do capital, os quais não podem ser anulados ou revertidos ao bel-prazer de políticas econômicas alternativas. Ainda que estas em geral possam condicioná-los ou modificá-los, respondem, com graus de liberdade, às exigências estruturais e às crises do próprio capitalismo. Para entender tais fenômenos intrínsecos ao devir histórico desse sistema é preciso voltar à apresentação dialética em que consiste O capital. Contudo, é justo começar discutindo escritos do autor que examinou essa questão exaustivamente.

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Finança e capital industrial

Autores: Scott Sehon e Stephen Maher[1]

Tradução: Sofia Schurig (Jacobina, 5/04/2024).

Hoje, é praticamente dado como certo por figuras políticas desde Hillary Clinton até Bernie Sanders que o aumento da finança nas últimas décadas ocorreu às custas da indústria. Essas opiniões também são amplamente difundidas entre os economistas políticos críticos, talvez o mais proeminente deles seja Robert Brenner e Cédric Durand. Seu surgimento, diz Durand, está “enraizado no esgotamento da dinâmica produtiva nas economias avançadas e na reorientação do capital para longe do investimento produtivo doméstico”. Segundo essa visão, o capital industrial “real” foi superado pelas atividades “fictícias” da finança. O aumento desta última é um sintoma de uma “fase tardia” do capitalismo, um prenúncio da disfunção e declínio do sistema.

Para Brenner e Durand, o aumento deste setor financeiro corrosivo dependeu crucialmente de sua capacidade de capturar o estado – levando à formação do que Brenner e Dylan Riley chegaram a chamar de uma nova forma de capitalismo, “capitalismo político”. Segundo esses teóricos, isso tem sido talvez acima de tudo evidente na política de flexibilização quantitativa (QE) do Federal Reserve ao longo de décadas: “infusões monetárias ininterruptas dos bancos centrais”, que Durand vê como resultado de “chantagem” por parte de um setor financeiro corrosivo.

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Teorias da taxa de juros

Autores: Stavros Mavroudeas[1] & Th. Chatzirafailidis[2]

Três abordagens distintas

Existem três abordagens principais no pensamento econômico sobre a determinação da taxa de juros. Primeiro, analisaremos as duas mais importantes teorias burguesas da taxa de juros e, em seguida, apresentaremos separadamente a relevante teoria de Marx. Como será argumentado mais adiante, essa distinção é feita não apenas por razões de apresentação, mas principalmente por razões de substância científica.

A primeira teoria burguesa dos juros é a teoria neoclássica dos fundos emprestáveis. Sua ideia central gira em torno da existência de uma taxa natural de juros. Isso significa que a taxa de mercado tende a se aproximar da primeira no longo prazo. Assim, o ônus do ajuste “recai” sobre a taxa de mercado sempre que a poupança divergir dos investimentos. Mais detalhadamente, quando os investimentos superam a poupança e a taxa de juros de mercado é menor que a natural, a primeira aumenta até igualar a segunda, de modo a trazer a equalização da poupança com os investimentos. O mecanismo de ajuste inverso ocorre quando o investimento fica aquém da poupança, de modo que, no final, a economia sempre acaba em um estado de equilíbrio.

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O capitalismo “já foi”?

Publica-se aqui uma resenha irônica e desdenhosa de quatro livros abaixo mencionados que analisaram criticamente o capitalismo após a crise econômica de 2008-09 e a pandemia de 2020-21 para anunciar que ele já foi superado – mesmo estando aí produzindo mercadorias, explorando trabalhadores e estraçalhando vidas.

Apesar do viés social-democrata pós-moderno do autor, apesar de falta de qualidade crítiica, ele fornece algumas informações que ajudam a fazer uma eventual avaliação desses folhosos. Segundo ele, esses livros surgiram porque essas duas crises ‘desferiram golpes devastadores em uma sociedade de mercado que já estava cambaleante – esvaziada que fora pela “financeirização” ou pela “desmaterialização” dos ativos”. Veja-se, pois, o que disseram em resumo.

O que foi o capitalismo?

Autor: James Livingston[1] – Project Syndicate – 16/02/2023

O que não acaba hoje em dia? O que não está à beira da extinção? A lista de isenções não é longa e, nós – seres humanos –, não estamos certamente nela.

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Não, não é fascismo

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

Às vezes, certas palavras se transformam em etiquetas que podem ser coladas em qualquer lugar que pareça interessante. É o que vem acontecendo com a palavra “fascista” que é usada por gente de esquerda quando enfrenta opiniões e ações controversas de gente de direita. Trata-se, é bem evidente, de uma tática de fácil empreg1o em entreveros políticos, mas que pode pecar por falta de rigor teórico: nem toda posição política de direita, ainda que adversa, pode ser denotada como fascista – mesmo quando se insurge como igualmente perversa.

Aqui não se quer considerar esse uso corriqueiro da palavra “fascista”, mas um outro que se afigura bem comum atualmente e que se vale de um embasamento bem mais austero. E ele se encontra, por exemplo, no artigo A ascensão global da extrema direita, de Sérgio Schargel, que veio à luz recentemente no sítio A terra é redonda. Os argumentos aí apresentados foram introduzidos por meio da seguinte epígrafe: “mais do que nunca, precisamos chamar e classificar o bacilo da extrema direita por seu nome verdadeiro: fascismo”.

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Uma crítica da ideia de financeirização

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

O uso do termo “financeirização” é muito difundido no campo da esquerda e, assim, do esforço de compreensão do capitalismo contemporâneo. Recentemente, saiu do prelo um bom livro sobre o tema, escrito por Ilan Lapyda, Introdução à financeirização (CEFA editorial, 2023). Para esse autor, esse fenômeno se manifestou após as crises dos anos 1970 como um movimento próprio da acumulação de capital. Eis que este tendeu a sair em parte da esfera produtora de valor e a se concentrar mais e mais na esfera financeira, amontoando na forma de dívidas. Ora, segundo ele, esse processo deslanchou à medida que, nas duas décadas anteriores, ocorreu superacumulação de capital (que aparece, por exemplo, como excesso de capacidade) e queda da taxa de lucro.

A financeirização, contudo, não veio sozinha, mas acompanhada: “A financeirização, nessa perspectiva” – diz Lapyda –, “se associou intimamente ao advento do neoliberalismo e ao tipo de globalização que impulsionou. O seu papel de destaque (…) foi alcançado por meio de um movimento de liberalização e desregulação dos sistemas financeiros” ocorrido dos anos 1970 em diante.

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Mercados financeiros no capitalismo contemporâneo

Michael R. Krätke

O novo reinado dos mercados financeiros globalizados

Mesmo que isso possa sempre surpreender alguns é preciso dizer que o capitalismo moderno constitui, desde os seus primórdios, uma economia de crédito e de endividamento. Revoluções financeiras e industriais permeiam seu desenvolvimento, fortemente marcado por saltos. Na hierarquia dos mercados, que caracteriza a forma histórica de uma economia de mercado capitalista, os mercados financeiros (mercado monetário e de crédito) estão e estão sempre colocados no topo. Nesses mercados trocam-se ficções. É aí que o mundo extremamente artificial, “de cabeça para baixo”, do capitalismo se ergue, anda e salta “de cabeça”. Para o capitalismo, como religião cotidiana, a mitologia dos mercados financeiros é indispensável.

Os mercados financeiros sempre tiveram caráter internacional. Hoje, são multipolares, em rede e quase globalizadas. Alguns dos mestres desses mercados, como fundos multinacionais e operadores do mercado de ações, são o que chamamos de players globais. No entanto, os seus clientes, as pessoas comuns desses mercados, não são. O capital que circula nesses mercados comporta-se de forma altamente móvel e globalizada participando de muitos negócios no interior dos limites do mundo dos mercados financeiros internacionais. O volume dos mercados financeiros internacionais, ou seja, a soma total das transações neles realizadas, de alguma forma explodiu durante as décadas de 1980 e 1990.

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Inflação produzida por aumento dos lucros

Autor: Michael Roberts

Título original: Custo de vida e lucros – – The next recession blog – 12/07/2023

O último relatório de emprego da OCDE é um revelador da crise do custo de vida. Eis que permite saber se os aumentos salariais ou os lucros deram a maior contribuição para o aumento da inflação. Sobre os salários, a OCDE constata que os salários reais caíram em média 3,8% no último ano na OCDE. Pois, o relatório afirma: “Os mercados de trabalho elevaram os salários nominais, mas menos do que a inflação, levando a uma queda dos salários reais em quase todas as indústrias e países da OCDE.”

As quedas variaram consideravelmente de país para cada país da OCDE.  As maiores quedas foram na Escandinávia e no Leste Europeu, onde os preços da energia subiram mais devido à perda de petróleo e gás russos, enquanto a queda dos EUA é uma das mais baixas, já que os preços da energia, embora subindo, não dispararam tanto.  A Europa teve que mudar da energia de gasodutos da Rússia para passar a receber gás natural liquefeito (GNL), muito mais caro por causa do transporte.

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A desdolarização em processo

Autor: Justin Podur[1] – Counterpunch – 26/06/2023

A desdolarização, aparentemente, “goste-se ou não”, está acontecendo e vem para ficar. É o que mostra um vídeo de maio de 2023 do Quincy Institute for Responsible Statecraft, um “think tank” voltado para a paz com sede em Washington, DC. Mas ele não está sozinho na discussão da desdolarização: os economistas políticos Radhika Desai e Michael Hudson delinearam a sua mecânica em quatro programas realizados entre fevereiro e abril de 2023, no canal do YouTube, Geopolitical Economy Hour.

O economista Richard Wolff forneceu uma explicação de nove minutos sobre esse tópico no canal Democracy at Work. Por outro lado, meios de comunicação como o Business Insider garantiram aos seus leitores que o domínio do dólar não terá continuidade. O jornalista Ben Norton, numa audiência bipartidária de duas horas no Congresso, realizada em 7 de junho – “Dominância do dólar: preservando o status do dólar americano como moeda de reserva global” – falou sobre a defesa da moeda americana diante da desdolarização. Durante a audiência, os membros do Congresso expressaram otimismo, mas também grande ansiedade, sobre o futuro do papel supremo do dólar. Mas o que motivou esse debate?

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Socialismo do capital

Autor: Eleutério F. S. Prado

Muitos na esquerda estão preocupados: o espectro da crise e das perdas econômicas vultuosas paira mais uma vez sobre as economias capitalistas, principalmente no Ocidente. Mas os capitalistas, sempre no centro, na direita e mesmo na extrema-direita, estão mais ou menos tranquilos. Por quê?

Michael Roberts escreveu recentemente um artigo – Risco moral ou destruição criativa? – em que compara a política econômica nas grandes crises de 1929 e de 2008. Eis que, como se sabe, mas é sempre bom lembrar, ela mudou entre uma e outra de pouca água para muito vinho… e da melhor qualidade. 

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