Marx e Keynes: os limites da política econômica

Note-se uma certa candura ideológica dos atuais economistas que propugnam por reformas do sistema, mudanças institucionais e regulação econômica, que melhorariam supostamente a vida dos trabalhadores. O texto do autor progressista abaixo traduzido ignora totalmente a questão da socialização do capital – vista como financeirização e/ou dominância financeira. Ele discute a política econômica de um modo até interessante, mas anacrônico porque não compreende bem o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Note-se: mesmo se a taxa de ganho do capital financeiro fica menor do que a taxa de lucro do capital industrial, se o volume de capital financeiro é muitas vezes maior do que o volume de capital industrial operando no sistema econômico, a necessidade de drenar recursos do segundo para alimentar o primeiro impede uma política econômica até mesmo em prol do crescimento. Logo, impede também uma política distributivamente progressista.

O texto abaixo – muito bem escrito e muito instrutivo – julga ainda que o desenvolvimentismo é possível num mundo estruturado de modo não desenvolvimentista. A sua marca não é o crescimento, mas a austeridade. É até mesmo anacrônico ser progressista num mundo regressista em que ocorre ocaso do capitalismo.

eLEUTERIO f s pRADO

Limites das variações salariais

Autor: Nick Johnson – Blog: The political economy of development – Data: 21/09/2022

Marx é muito claro na afirmação de que o trabalho é explorado e que um salário mais alto tornaria a vida dos trabalhadores menos miserável, mesmo se isso não elimina a exploração em si mesma. Mas ele não acredita, porém, que um salário mais alto possa fazer com que o sistema funcione melhor ou mesmo que melhore a situação dos trabalhadores como um todo.

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Pode o capitalismo global durar?

Autor: William I. Robinson [1]

Introdução

Se a história do capitalismo consiste numa de transformação sem fim, as crises geralmente marcam – antes e depois – os momentos decisivos. No período de 2008 até a terceira década do século XXI ocorreu uma crise prolongada que, longe de ser resolvida, foi agravada pela pandemia do novo coronavírus. Essa crise é tanto econômica e estrutural, quanto política, ou seja, de legitimidade do Estado e da hegemonia capitalista.

Como muitos observaram, a crise é também existencial devido à ameaça de colapso ecológico, bem como à ameaça renovada de guerra nuclear, à qual devemos acrescentar o perigo de futuras pandemias que podem envolver micróbios muito mais mortais do que os da espécie coronavírus.

O capitalismo global pode resistir e durar? A humanidade sobreviverá? Estas são, com certeza, duas questões distintas. É perfeitamente possível que o sistema ainda perdure mesmo que a maioria da humanidade passe a enfrentar lutas desesperadas pela sobrevivência.  Muitos vão perecer nos próximos anos e nas décadas vindouras.

Cada grande crise no capitalismo mundial envolveu previsões de que o sistema entraria em colapso diante de contradições insolúveis. No entanto, o capitalismo provou repetidamente ser mais resiliente e adaptável do que acreditaram os seus previsores apocalípticos. Como se explora neste ensaio, o sistema vem passando por uma nova rodada de reestruturação e transformação desde o colapso financeiro de 2008. E ela acontece com base numa tecnologia da digitalização muito avançada que afeta toda a economia e a sociedade globais.

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Policrise: pensando na corda bamba

Autor: Adam Tooze [1]

Chartbook nº 165 – 29/10/2022

Policrise é um termo que encontrei pela primeira vez quando estava terminando Crashed,[2] em 2017. Foi invocado por Jean-Claude Juncker para descrever a situação perigosa da Europa no período após 2014. No espírito do “Eurotrash” [3], entusiasmei-me com a ideia de passar a usar um “conceito” encontrado nessa fonte específica. Juncker confirma o maravilhoso retrato de Nick Mulder do “Homo Europus”. Descobriu-se que Juncker obteve a ideia do teórico francês da complexidade e do veterano da resistência, Edgar Morin, mas isso é uma outra história.

Entretanto, policrise surgiu também como um termo no subcampo dos estudos da arte na União Europeia, tendo sido retomado, entre outros, por Jonathan Zeitlin.

Considerei a ideia de policrise interessante e oportuna porque o prefixo “poli” chamava a atenção para a diversidade dos desafios, sem especificar uma única contradição dominante ou fonte de tensão ou disfunção.

O termo parecia ainda mais relevante diante do choque da COVID. Empreguei-o em Shutdown [4] para contrastar essa visão europeia bastante indeterminada da crise, por um lado, com a visão americana, mais compacta, para não dizer solipsista, de uma grande crise nacional centrada na figura de Donald Trump e, por outro, com a perspectiva de Chen Yixin, um dos principais pensadores do aparato de segurança de Xi Jinping.

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Ocaso e fantasia: uma globalização melhor?

Autor: Eleutério F. S. Prado

Dani Rodrik é um economista e professor renomado que trabalha na Escola de Governo da Universidade de Havard. De origem turca, mas radicado nos Estados Unidos onde obteve o seu doutorado, trabalha nos temas da globalização, do crescimento econômico e da economia política administrativa. Recentemente, escreveu um artigo de divulgação em que apresenta a sua crença otimista de que das “cinzas da globalização” – que ele agora chama de hiperglobalização! – “pode surgir uma globalização melhor”. [1] Ora, supõe assim que uma globalização virtuosa possa vir superar uma globalização agora vista como desencaminhada, supostamente viciosa! Será?

Para encontrar uma resposta para essa dúvida não hiperbólica é preciso olhar seguramente para a história da taxa de lucro mundial do pós-guerra até o presente (apresentada na figura abaixo por meio de uma variável proxy, qual seja ela, a taxa de lucro média dos países do G20). Ela mostra, sem ilusão, que o capitalismo se encontra numa trajetória de declínio em nível global. 

Rodrik, porém, prefere não pensar nessa evidência empírica que comprova de algum modo a tese dos economistas clássicos e de Marx sobre a tendência declinante da taxa de lucro. Ora, como ele argumenta em favor de uma “globalização virtuosa” vista como possível? Será que esse momento feliz estaria esperando nas fórmulas abstratas da “melhor teoria” para ser implementada por meio de políticas econômicas “corretas”?

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Negacionismo in extremis

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Pouca gente acredita que se vive atualmente o ocaso do capitalismo e, talvez, o fim da história. Ao ser mencionada, a tese recebe frequentemente um sorrisinho de descaso como se autor fosse apenas um órfão do socialismo que não consegue ver a pujança e a dominância do sistema realmente existente. Julga-se que a previsão apocalíptica vem de alguém que espera o colapso do capitalismo para que se realize, como um milagre, a utopia milenar de uma sociedade em que as contradições estruturais e os conflitos manifestos foram abolidos.

Será? Eis como Murray Smith, o autor de Twilight capitalism caracteriza a situação atual da humanidade: “o capitalismo vai logo terminar – seja por um esforço consciente dos trabalhadores do mundo como um todo para substitui-lo por uma ordem social e uma organização econômica mais sustentável ou o capitalismo vai destruir a humanidade”. Veja-se: essa tese está fundamentada na própria natureza do capitalismo: ele se move pelo lucro e só pelo lucro e, para tanto, em consequência, não pode parar de explorar os trabalhadores e a natureza.

O capitalismo pode ser salvo de sua força evolutiva que se transformou já de predominantemente criativa em predominantemente destrutiva? O capital vai superar ainda as barreiras que ele própria cria como previu Marx em O capital? Reformadores keynesianos, seguidores de Karl Polanyi, marxistas, assim como outros, parecem acreditar que sim: os planos de salvamento não param de sair dos computadores para se instalar na internet e, assim, viajar pelo mundo. Ficam quase sempre aí nesse repositório do imaginário social concreto já que não podem se transformar em políticas econômicas efetivas.

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Estagflação renitente

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Uma das contradições que sustentam a tese do ocaso do capitalismo se encontra na geopolítica do capital ou, o que é o mesmo, nas relações de concorrência – cooperação e competição – dos estados nacionais que formam a atual economia globalizada. O desenvolvimento das “forças produtivas” – diz Murray Smith em Invisible Leviathan[2] – “extrapolou os confins do sistema de estados-nações, mas são ainda as nações individuais que enfrentam os graves problemas”, isto é, os problemas causados pelo próprio processo contraditório de acumulação de capital.  

Eis alguns deles: a emergência climática, as pandemias, a poluição dos oceanos, a manutenção das cadeias da produção de mercadorias, a inflação global etc. Nesta nota quer-se tratar apenas do processo de estagflação que aparece agora como um fenômeno renitente e duradouro da produção capitalista. Baixo crescimento com inflação está aí como um novo “normal” que vai continuar assombrando o futuro das economias capitalistas em geral. Mas, para fazê-lo, é preciso dar dois passos iniciais com a finalidade de enquadrar esse fenômeno em suas condições objetivas.

O primeiro deles consiste em apresentar o atual estágio do processo de expansão da mundialização do capital. Um indicador desse processo histórico se encontra na figura abaixo; ele mostra graficamente a evolução da razão entre as exportações mundiais totais e o PIB mundial. Aparecem nesse perfil, notoriamente, três ondas de globalização que marcam a história do capitalismo: entre 1870 e 1914, entre 1945 e 1980 e entre 1980 e 2008; assim como, também, um período de desglobalização entre 1914 e 1945. Em adição, o gráfico indica o surgimento de um novo período de contração do comércio internacional, o qual ocorre após a grande crise de 2008.

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A droga que cura a doença que produz!

Autor: Eleutério F. S. Prado

Poderá o dinheiro salvar o capitalismo? – eis a questão.

Quando ocorreu a quebra do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, uma professora consagrada no meio acadêmico brasileiro, numa roda de economistas, declarou: “vamos voltar para a roça!”. Aludia ao efeito dominó possível que estava para ocorrer e que levaria certamente a economia mundial a um baque de proporções catastróficas. Se os bancos “too big to fail” quebrassem uns aos outros, a cadeia de tombos que se seguiria quebraria também um grande número de empresas produtoras de bens e serviços, de tal modo que o desemprego poderia atingir níveis altíssimos, cerca de trinta por cento ou mais da força de trabalho mundial.

O que garantiu a sobrevivência do sistema foi, como se sabe, uma política monetária inédita na história do capitalismo. A emissão em larga escala de dinheiro fiduciário pelos bancos centrais dos países ricos para comprar títulos dos bancos em situação de risco evitou que ficassem sem liquidez e, em consequência, ruíssem por inadimplência generalizada. Essa política econômica ficou conhecida pelo termo “relaxamento monetário” ou Q E (quantitative easing). Ora, um raciocínio simples diria: o dinheiro salvou o capitalismo; por sua causa, não voltamos todos a capinar para garantir o sustento da família!

Eis, na figura em sequência, um gráfico que dá uma ideia visual da dimensão do relaxamento monetário nos Estados Unidos. Note-se que o montante de ativos do banco central cresceu fortemente entre 2008 e 2014, estacionou daí até 2019, mas voltou a se elevar fortemente em consequência da crise do Covid-19. Em resumo, entre 2007 e 2021, cresceu oito vezes!

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Dilema energético: eficiência ou eficácia?

Autor: Cédric Durand

Blog Sidecar, 5/11/2021

A bifurcação ecológica não é um jantar de gala. Após um verão de eventos climáticos extremos e um novo relatório do IPCC confirmando suas previsões mais preocupantes, grande parte do mundo está agora sendo sacudida por uma crise de energia que prefigura crescentes problemas econômicos no futuro. Essa conjuntura enterrou o sonho de uma transição harmoniosa para um mundo pós-carbono, trazendo à tona a questão da crise ecológica do capitalismo. Na COP26, o tom dominante foi de impotência. As tragédias iminentes deixaram a humanidade encurralada entre as demandas imediatas de reprodução sistêmica e a aceleração dos distúrbios climáticos.

Prima facie, pode-se pensar que medidas estão sendo tomadas para lidar com esse cataclismo. Mais de 50 países – além de toda a União Europeia – se comprometeram a cumprir as metas de emissões líquidas zero. Se isso ocorrer as emissões globais de CO2 relacionadas à energia cairiam em 40% entre hoje e 2050. No entanto, uma leitura sóbria dos dados científicos mostra que a transição verde está fora do bom caminho.

Ficar aquém desta meta, acréscimos nulos de emissões globalmente, significa que as temperaturas continuarão a aumentar, levando o mundo a ficar em média bem acima de 2° C até 2100. De acordo com o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), os países foram solicitados a apresentar antes da COP26 as contribuições que poderiam dar. Se elas se efetivarem, reduziriam as emissões de 2030 em 7,5%. No entanto, uma queda de 30% é necessária para limitar o aquecimento a 2° C, enquanto 55% seriam necessários para 1,5° C.

Como advertiu um editorial recente da revista Nature, muitos desses países fizeram promessas de zerar o crescimento, mas não apresentaram um plano concreto para atingir esse objetivo. Quais gases serão os alvos? Até que ponto o valor líquido zero depende de redução efetiva em vez cair no esquema da compensação? Este último tornou-se particularmente atraente para países ricos e empresas poluidoras, uma vez que não reduz diretamente as suas emissões, pois envolvem a transferência do fardo do corte de carbono para as nações de baixa e média renda (que serão mais gravemente afetadas pela quebra do clima).

Sobre essas questões cruciais, informações confiáveis ​​e compromissos transparentes não foram estabelecidos, o que coloca em risco a possibilidade de um monitoramento científico internacional confiável. Conclusão: com base nas políticas climáticas globais atuais – as já implementadas e as propostas – o mundo está a caminho de um aumento devastador nas emissões durante a próxima década.

Apesar disso, o capitalismo já experimentou o primeiro grande choque econômico relacionado à transição para além do carbono. O aumento nos preços da energia se deve a vários fatores, incluindo uma recuperação desordenada da pandemia, mercados de energia mal projetados no Reino Unido e na União Europeia, os quais exacerbam a volatilidade dos preços, assim como a disposição da Rússia em garantir sua receita de energia no longo prazo.

No entanto, em um nível mais estrutural, o impacto dos primeiros esforços já feitos para restringir o uso de combustíveis fósseis não pode ser negligenciado. Devido às limitações governamentais à queima de carvão, além da crescente relutância dos acionistas em se comprometer com projetos que poderiam estar obsoletos em trinta anos, o investimento em combustível fóssil tem caído. Embora essa contração da oferta não seja suficiente para salvar o clima, ela sacrifica de imediato o crescimento capitalista.

A reunião de vários eventos recentes dá uma ideia do que está por vir. Na região do Punjab, na Índia, uma grave escassez de carvão causou apagões de energia não programados. Na China, mais da metade das jurisdições provinciais impuseram medidas rígidas de racionamento de energia. Várias empresas, incluindo fornecedores importantes da Apple, foram recentemente forçadas a interromper ou reduzir as operações nas instalações na província de Jiangsu, depois que os governos locais restringiram o fornecimento de eletricidade.

Essas restrições resultaram de tentativas de cumprir as metas de emissões nacionais por meio da restrição à geração de energia usando carvão. Ora, essa fonte ainda responde por cerca de dois terços da eletricidade da China. Para conter a repercussão dessas interrupções, as autoridades chinesas colocaram um freio temporário em suas ambições climáticas, ordenando que 72 minas de carvão aumentassem seus fornecimentos; ao mesmo tempo, foram reiniciadas as importações de carvão australiano que haviam sido interrompidas por meses em meio a tensões diplomáticas entre os dois países.

Na Europa, um aumento dos preços do gás desencadeou a crise atual. Assombrados pela memória das rebeliões dos coletes amarelos (gilets jaunes)contra o imposto na emissão de carbono de Marcon, os governos intervieram criando subsídios de energia para as classes populares.

De forma inesperada, porém, aumentos do preço do gás precipitaram reações em cadeia no setor manufatureiro. O caso dos fertilizantes é revelador. Um grupo americano, CF Industries, decidiu encerrar a produção em suas fábricas de fertilizantes no Reino Unido, as quais deixaram de ser lucrativas devido aos aumentos de preços dos insumos. Ora, essa empresa fornecia anteriormente 45% do CO2 usado no setor alimentício do Reino Unido. De qualquer modo, essa decisão desencadeou semanas de caos na indústria, afetando vários setores, de cerveja e refrigerantes a embalagens de alimentos e carnes.

Globalmente, o aumento dos preços do gás está afetando o setor agrícola por meio do aumento dos preços dos fertilizantes. Na Tailândia, o custo dos fertilizantes dobrou desde 2020, aumentando os custos para muitos produtores de arroz e colocando em risco a temporada de plantio. Se isso continuar, os governos podem ter que intervir para garantir o fornecimento de alimentos essenciais. 

As repercussões globais e generalizadas da escassez de energia e dos aumentos de preços ressaltam as consequências complexas envolvidas na transformação estrutural necessária para eliminar as emissões de carbono. À medida que ocorre uma redução no fornecimento de hidrocarbonetos, o aumento das fontes de energia sustentável não se afigura suficiente para atender à demanda crescente. Isso cria uma insuficiência de energia que pode atrapalhar a transição completamente.

Nesse contexto, os países podem retornar à fonte de energia mais facilmente disponível – o carvão – ou então terão de aceitar uma contração econômica impulsionada pelo aumento dos custos. Ora, isso terá efeitos na lucratividade, nos preços de consumo e na estabilidade do sistema financeiro. No curto prazo, então, há uma contradição entre os objetivos ecológicos e a necessidade de promover o crescimento. Esse dilema energético se manterá no médio e no longo prazo? Enfrentar-se-á agora, necessariamente, uma escolha entre cuidar do clima ou promover o crescimento? – eis a questão.

Uma transição de carbono bem-sucedida implica o desenvolvimento harmonioso de dois processos complexamente relacionados nos níveis material, econômico e financeiro. Primeiro, um processo progressivo de abandono deve ocorrer. As fontes produtoras de carbono devem ser drasticamente reduzidas; dentre elas, sobretudo a extração de hidrocarbonetos. Mas também devem ser diminuídas a produção de eletricidade a partir do carvão e do gás, assim como a amplitude do uso dos sistemas de transporte à base de combustíveis. Sofrerão consequências tanto o setor da construção (devido ao elevado nível de emissões envolvido na produção de cimento e aço) quanto a indústria da carne (devido ao gás metano produzido pelo gado).

O que está em jogo em tudo isso é o decrescimento e isso no sentido bem direto: equipamentos devem ser descartados, as reservas de combustível fóssil devem permanecer no solo, a pecuária intensiva deve ser abandonada e uma série de habilidades profissionais deve se tornar redundante.

Tudo o mais igual, a eliminação de capacidade de produção implica em contração da oferta, o que leva ao aumento das pressões inflacionárias generalizadamente. Isso é ainda mais provável porque os setores mais afetados estão localizados no alto escalão das economias modernas. Na forma de uma cascata destes para outros setores, a pressão sobre os custos afetará o mark-up das empresas, os lucros globais e/ou o poder de compra do consumidor, desencadeando fortes forças recessivas. Além disso, o decrescimento da economia de carbono é uma perda líquida do ponto de vista da valorização do capital financeiro: enormes quantidades de ativos “podres” terão de ser eliminados, uma vez que os lucros esperados subjacentes estarão perdidos, abrindo caminho para vendas incendiárias e ricocheteando no massa de capital fictício. Essas dinâmicas inter-relacionadas vão se alimentar mutuamente, à medida que as forças recessivas elevarem a inadimplência. Diante desta última, uma crise financeira congelará o acesso ao crédito. 

O outro lado da transição é um grande impulso de investimento para acomodar o choque de oferta causado pelo decrescimento do setor baseado no carbono. Embora a mudança de hábitos de consumo possa desempenhar um papel, especialmente em países ricos, a criação de novas capacidades de produção sem carbono, melhorias na eficiência, eletrificação de transporte, sistemas industriais e de aquecimento (junto com a implantação de captura de carbono em alguns casos) também são necessários para compensar a eliminação progressiva das emissões de gases com efeito de estufa.

De uma perspectiva capitalista, isso poderia representar novas oportunidades de lucro, desde que os custos de produção não sejam proibitivos em relação à demanda disponível. Atraídas por essa valorização, as finanças verdes podem intervir e acelerar a transição, impulsionando uma nova onda de acumulação capaz de sustentar empregos e padrões de vida.

No entanto, é importante ter em mente que o tempo é tudo nesse processo: fazer esses ajustes em cinquenta anos é completamente diferente de ter que se desligar drasticamente em uma década. Dado onde se chegou e onde se está agora, as perspectivas de uma mudança suave e adequada para a energia verde são mínimas, para dizer o mínimo. A redução do setor baseado no carbono permanece incerta devido à contingência inerente dos processos políticos e à falta persistente de engajamento das autoridades estatais. É ilustrativo que um único senador, Joe Manchin III, da Virgínia Ocidental, foi capaz de bloquear o programa dos democratas dos EUA no sentido de facilitar a substituição de usinas movidas a carvão e gás. 

Conforme ilustrado pelas interrupções atuais, a falta de alternativas prontamente disponíveis também pode dificultar a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis. De acordo com a AIE (Agência Internacional de Energia): “Os gastos relacionados à transição […] permanecem muito aquém do que é necessário para atender à crescente demanda por serviços de energia de forma sustentável. O déficit é visível em todos os setores e regiões”. Em seu último Relatório sobre a questão energética, a Bloomberg estima que uma economia global em crescimento exigirá um nível de investimento em fornecimento de energia e infraestrutura entre US $ 92 trilhões e US $ 173 trilhões nos próximos trinta anos. O investimento anual precisará mais do que dobrar, passando de cerca de US $ 1,7 trilhão por ano hoje, para algo entre US $ 3,1 trilhões e US $ 5,8 trilhões por ano em média. A magnitude de tal ajuste macroeconômico seria sem precedentes.

Do ponto de vista da teoria econômica dominante, esse ajuste ainda é uma questão de acertar os preços. Em um relatório recente encomendado pelo presidente francês Emmanuel Macron, dois importantes economistas da área, Christian Gollier e Mar Reguant, argumentam que “o valor do carbono deve ser usado como parâmetro para todas as dimensões da formulação de políticas públicas”. Embora os padrões e regulamentações não devam ser descartados, uma “precificação do carbono bem projetada”, feita por meio de um imposto sobre o carbono, deve desempenhar o papel principal em relação a um possível mecanismo limitador da produção e da comercialização.

Espera-se que os mecanismos de mercado internalizem as externalidades negativas das emissões de gases de efeito estufa, permitindo uma transição ordenada tanto do lado da oferta quanto da demanda. “A precificação do carbono tem a vantagem de focar na eficiência em termos de custo por tonelada de CO2, sem a necessidade de identificar com antecedência quais medidas vão funcionar.” Refletindo a plasticidade do ajuste de mercado, um preço de carbono – “ao contrário de medidas mais prescritivas” – abre um espaço para “soluções inovadoras”. 

Essa perspectiva de livre mercado e tecno-otimista garante que o crescimento capitalista e a estabilização do clima sejam reconciliáveis. No entanto, apresenta duas deficiências principais. O primeiro é a cegueira da abordagem de precificação do carbono para a dinâmica macroeconômica envolvida no esforço de transição. Um relatório recente de Jean Pisani Ferry, escrito para o Peterson Institute for International Economics, minimiza a possibilidade de qualquer ajuste suave impulsionado pelos preços de mercado, ao mesmo tempo que destrói as esperanças de um New Deal Verde que possa levantar todos os barcos simultaneamente. 

Observando que “a procrastinação reduziu as chances de engendrar uma transição ordenada”, o relatório observa que “não há garantia de que a transição para a neutralidade de carbono será boa para o crescimento”. O processo é bastante simples: 1) uma vez que a descarbonização implica numa obsolescência acelerada de alguma parte do estoque de capital existente, a oferta será reduzida; 2) entretanto, serão necessários mais investimentos. A questão candente então é: existem recursos suficientes na economia para permitir mais investimento ao lado da oferta enfraquecida?

A resposta depende do tamanho da folga na economia – ou seja, da capacidade produtiva ociosa e do desemprego existente. Mas, considerando o tamanho do ajuste e o prazo reduzido, isso não pode ser dado como certo. Na opinião de Pisani Ferry, “o impacto sobre o crescimento será ambíguo, o impacto sobre o consumo deverá ser negativo. A ação climática é como uma preparação militar diante de uma ameaça: boa para o bem-estar no longo prazo, mas ruim para a satisfação do consumidor”. Transferir os recursos do consumo para o investimento significa que os consumidores inevitavelmente arcarão com o custo do esforço.

Apesar de sua perspectiva neokeynesiana, Pisani-Ferry abre uma discussão perspicaz sobre as condições políticas que permitiriam uma redução nos padrões de vida e uma guerra de classes verde travada ao longo das linhas de renda. Ainda assim, em seu apego ao mecanismo de preços, seu argumento compartilha com a abordagem de ajuste de mercado uma ênfase irracional na eficiência da redução das emissões de CO2.

A segunda lacuna da contribuição de Gollier e Reguant torna-se aparente quando eles exigem “uma combinação de ações climáticas com o menor custo possível por tonelada-equivalente de CO2 não emitida”. Na verdade, como os próprios autores reconhecem, a definição dos preços do carbono é altamente incerta. As avaliações podem variar de US$ 45 a US$ 14.300 por tonelada, dependendo do horizonte de tempo e da redução almejada. Com tal variabilidade, não adianta tentar otimizar o custo da redução de carbono de modo intertemporal. O importante não é o custo do ajuste, mas a certeza de que ocorrerá a estabilização do clima.

Descortinando as especificidades do estado desenvolvimentista japonês, o cientista político Chalmers Johnson fez uma distinção que também poderia ser aplicada ao debate sobre a transição: 

Um estado regulador, ou racional de mercado, preocupa-se com a forma e os procedimentos – as regras, se preferir – da competição econômica, mas não se preocupa com questões substantivas […] O estado desenvolvimentista, ou estado racional planejador, ao contrário, tem como característica dominante precisamente o estabelecimento de tais objetivos sociais e econômicos substantivos.

Em outras palavras, enquanto o primeiro visa a eficiência – usar de modo mais econômico os recursos – o segundo se preocupa com a eficácia: ou seja, pela capacidade de atingir um determinado objetivo, seja na guerra ou na industrialização. Dada a ameaça existencial representada pelas mudanças climáticas e o fato de existir uma métrica simples e estável para orientar as decisões, a preocupação deve ser com a eficácia da redução dos gases de efeito estufa e não com a eficiência do esforço. Em vez de usar o mecanismo de preços para permitir que o mercado decida onde o esforço deve estar, é infinitamente mais simples somar metas nos níveis setorial e geográfico e fornecer um plano de redução consistente para garantir que a meta geral seja alcançada a tempo.

Ruchir Sharma do Morgan Stanley, escrevendo sobre essa questão no Financial Times, levanta um ponto que defende indiretamente o planejamento ecológico. Ele observa que o impulso de investimento necessário para a transição além de uma economia baseada no carbono apresenta um problema trivialmente material: por um lado, as atividades sujas – particularmente nos setores de mineração ou produção de metal – tornam-se não lucrativas devido ao aumento da regulamentação ou dos preços mais altos; por outro lado, o investimento para tornar a infraestrutura mais verde requer tais recursos para expandir as capacidades. A diminuição da oferta e o aumento da demanda são, portanto, uma receita para o que ele chama de “inflação verde”. Sharma, portanto, argumenta que “bloquear novas minas e plataformas de petróleo nem sempre será uma medida ambiental e socialmente responsável.”

Como porta-voz de uma instituição com grande interesse em commodities poluentes, Sharma dificilmente pode ser visto como um comentarista neutro. Mas o problema que ele articula – como fornecer material sujo suficiente para construir uma economia de energia limpa? – é bem real. E está relacionado com outra questão, ou seja, com uma suposta transição impulsionada pelo mercado: a precificação do carbono não permite que a sociedade discrimine entre os usos espúrios de carbono – como enviar bilionários para o espaço – e usos vitais, como construir a infraestrutura para uma economia sem carbono. Em uma transição bem-sucedida, o primeiro uso deveria ser impossível, enquanto que o segundo deveria o mais barato possível. Como tal, um preço único de carbono torna-se um caminho claro para o fracasso.

Isso nos traz de volta a um argumento antigo, mas ainda decisivo: reconstruir uma economia – neste caso, aquela que elimina gradativamente os combustíveis fósseis – requer reestruturar a cadeia de relações entre seus diversos segmentos, o que sugere que o destino da economia como um todo depende de seu ponto de menor resistência. Como Alexandr Bogdanov observou no contexto da construção do jovem estado soviético, “por causa dessas relações interdependentes, o processo de expansão da economia está inteiramente sujeito à lei do ponto mais fraco”. Essa linha de pensamento foi posteriormente desenvolvida por Wassily Leontief em suas contribuições para a análise de insumo-produto. Afirma que os ajustes de mercado simplesmente não dependem de uma transformação estrutural. Em tais situações, o que é necessário é um mecanismo de planejamento cuidadoso e adaptativo, capaz de identificar e lidar com um aparecimento complexo de gargalos.

Quando se consideram os desafios econômicos da reestruturação das economias para manter as emissões de carbono em linha com a estabilização do clima, essa discussão adquire um novo enquadramento. A eficácia deve ter precedência sobre a eficiência na redução de emissões. Isso significa abandonar o fetiche do mecanismo de preço para planejar como os recursos sujos restantes serão usados ​​no serviço de infraestrutura limpa. Esse planejamento deve ter alcance internacional, uma vez que as maiores oportunidades de descarbonização do fornecimento de energia estão localizadas no Sul Global.

Além disso, como a transformação do lado da oferta não será suficiente, as transformações do lado da demanda também serão essenciais para permanecer dentro dos limites planetários. As necessidades de energia para fornecer padrões de vida decentes à população global podem ser drasticamente reduzidas, mas, além do uso das tecnologias disponíveis mais eficientes, isso implica uma transformação radical dos padrões de consumo, incluindo procedimentos políticos para priorizar entre reivindicações de consumo concorrentes.   

Com sua preocupação de longa data com o planejamento e o consumo socializado, o socialismo internacional é um candidato óbvio para assumir essa tarefa histórica. Embora o mau estado da política socialista não conjure muito otimismo, a conjuntura catastrófica em que estamos entrando – junto com a volatilidade dos preços e os espasmos contínuos das crises capitalistas – podem aumentar a fluidez da situação. Em tais circunstâncias, a esquerda deve ser flexível o suficiente para aproveitar qualquer oportunidade política que aumente a causa de uma transição ecológica democrática.

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O capitalismo se tornou insustentável

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

Para demonstrar empiricamente a tese contida no título deste artigo é preciso considerar, primeiro, o fenômeno da financeirização que vem se exacerbando desde os anos 80 do século passado. Eis que ele não se apresenta como uma passagem episódica na história do capitalismo, mas como um acontecimento decisivo. Faz ver que não se encontrou uma solução virtuosa para a crise de acumulação engendrada no período de ouro do capitalismo, ocorrido após o fim da II Guerra Mundial. Como se sabe, essa crise se manifestou já nos anos 70 por meio de uma forte e longa queda da taxa de lucro. Apontando para um impasse, a figura em sequência apresenta esse fenômeno. E o faz mostrando uma discrepância crescente entre o PIB global e a soma dos ativos financeiros globais. Por que isso ocorreu?

A crise de lucratividade dos anos 1970, que atingiu fortemente o centro do sistema – mas também a periferia –, nunca foi plenamente resolvida porque os principais estados capitalistas optaram por evitar uma recessão profunda. Como esta teria efeitos econômicos, sociais e políticos devastadores – por causa das ondas de falências e do altíssimo desemprego da força de trabalho que produziria –, preferiram uma alternativa que evitasse a destruição e a desvalorização dos capitais acumulados no passado. Ocorre que esse choque disruptivo é necessário para que ocorra uma verdadeira restauração da taxa de lucro.  Foi assim que o capitalismo se recuperou várias outras vezes no passado. Mas desta vez, não.

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Morbidez capitalista e a crise global

Murray Smith, Jonah Butovsky e Josh Watterton[1]

A convulsão social de 2020-21 pode muito bem marcar uma virada importante na história mundial. A emergência global de saúde pública trazida pela Covid-19 e a crise econômica associada produziram efeitos sociais e políticos extremamente disruptivos e de longo alcance.  Mesmo antes do início da pandemia – note-se –, a economia mundial já estava à beira de uma recessão severa, titubeando após uma prolongada – e notavelmente morna – recuperação da Grande Recessão de 2008-09. Foi só isso o que era capaz de apresentar após várias décadas decrescimento lento, austeridade e problemas persistentes de lucratividade na esfera do capital industrial, em que se produz o valor e o mais-valor.  A recessão, então, foi grandemente ampliada por bloqueios (totais ou parciais) impostos pelos estados nacionais às indústrias, serviços governamentais e pequenas empresas. Como resultado desse processo, chegou-se a níveis de desemprego e de contração econômica que rivalizam com aqueles observados na Grande Depressão da década de 1930.

Como se deve encarar essa crise global “combinada” ocorrida entre 2020 e 2021?  Com poucas exceções, a resposta da mídia corporativa, dos estratos gerenciais profissionais, das elites políticas e de muitos economistas são notavelmente uniformes.  Consistente com a maioria das avaliações convencionais sobre os atuais problemas da humanidade, vê-se essa ocorrência como um fenômeno natural: eis que, súbita e “misteriosamente”, surgiu um vírus invulgarmente infeccioso e furtivo… Diante dessa emergência, fala-se muito então das decisões consciente e das ações de indivíduos (profissionais de saúde, políticos, líderes empresariais e jornalistas da grande mídia) em reação a ele. Assim, minimiza-se o papel decisivo desempenhado por poderosas forças sociais estruturais que instigam, exploram e determinam a forma e a magnitude da crise.

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