A sociedade não existe? Parte I

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Prólogo

Em 1964, a Abadia de Royaumont, em Ilê-de-France, sediou um colóquio sobre Nietzsche, onde Michel Foucault apresentou sua famosa palestra “Nietzsche, Freud e Marx”. Nele, ele argumentou que esses três nomes representam uma ruptura radical na história das técnicas interpretativas. Eis que expõem a autonomia da ordem simbólica (do valor moral, em Nietzsche; do valor econômico, em Marx; do valor linguístico, em Freud) expondo, assim, a descentração do sujeito humano.

Juntas, a genealogia de Nietzsche, a crítica da economia política de Marx e a psicanálise de Freud fazem ainda um outro insulto ao amor-próprio humano, comparável ao Kränkungen científico – que Freud associava à Física do início da modernidade (descentração da realidade física; abolição do modelo cosmológico geocêntrico) e à biologia evolutiva (descentração da evolução da vida; abolição da exceção humana na hierarquia dos seres).[2]

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A clínica psicanalítica é política

Autor: Samo Tômsic [1]

Este livro [2] desenvolve ainda uma linha de pensamento adotada num volume anterior.[3] Trata-se de uma discussão em curso sobre a atualidade da psicanálise para fazer uma crítica ao modo de gozo historicamente introduzido e imposto pela organização capitalista do trabalho social e da vida social, bem como do pensamento em geral. Minha preocupação tem se voltado para os esforços freudianos e lacanianos para elaborar algo que poderia ser chamado de crítica da economia libidinal.

Esta última, pode-se argumentar como base no envolvimento de Jacques Lacan com Karl Marx, pode ser considerada um componente essencial da crítica da economia política. Gostaria de iniciar o presente estudo referindo-me ao modo como o próprio Lacan definiu o significado político de sua disciplina:

A intrusão no político só pode ser feita reconhecendo que o único discurso existente, e não apenas o discurso analítico, é o discurso do gozo, pelo menos quando se espera dele o trabalho da verdade”.[4]

Nesta observação densa e, seguramente, um tanto enigmática, a primeira palavra já chama nossa atenção.

A psicanálise entrou na esfera do político como um intruso, um convidado não convidado ou mesmo um encrenqueiro, que perturbou o sono dos habitantes desse mundo e, portanto, encontrou resistência. No entanto, essa intrusão crítica não veio de fora, de algum lugar exterior aparente. Ocorreu mais como uma ruptura imanente ou como um curto-circuito que expôs algo inerente ao cerne da política, algo que até então permanecia desconsiderado: o papel problemático do gozo na constituição dos vínculos sociais e na reprodução das relações de poder.

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