A sociedade não existe? Parte III

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Ao invés de concluir

 Lacan repetidamente argumentou que Marx inventou a noção de sintoma e acabou especificando que “há apenas um sintoma social – cada indivíduo é realmente um proletário, pois nenhum discurso pode fazer um laço social” (Lacan, La troisième). Poder-se-ia imediatamente censurar Lacan por repetir o privilégio dado por Marx ao trabalhador industrial, excluindo assim outros sintomas sociais, tais como, por exemplo, a mulher ou o escravo colonial. Mas talvez essas figuras distintas apontem para um “comum negativo”, por assim dizer, uma figura da subjetividade em estado de exclusão do laço social.

Então, o “proletário de Lacan” se colocaria como um possível nome genérico para essa subjetividade foracluída. O próprio Marx exemplificou essa rejeição na figura social do trabalhador industrial e, de maneira mais geral, insistiu que o capitalismo impõe relações sociais entre coisas (mercadorias) e não, diretamente, entre subjetividades. Nesse sentido, a economia capitalista realiza uma espécie de foraclusão do sujeito homóloga àquela operada pela ciência moderna (ver Lacan, Écrits). Depois de fazer essa observação sobre o proletário, Lacan passa a apontar a especificidade da psicanálise em comparação com outros discursos e/ou vínculos sociais:

Socialmente, a psicanálise tem uma consistência diferente dos outros discursos. É um elo entre dois [indivíduos]. Nesse sentido, a psicanálise se coloca no lugar da falta de relação sexual. Isso não basta para fazer dela um sintoma social, já que a relação sexual carece de serem todas as formas de sociedades. Isso está ligado à verdade que estrutura cada discurso. Por isso, aliás, não existe uma verdadeira sociedade fundamentada no discurso analítico. Existe uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. (La troisième).

Continuar lendo

A sociedade não existe? Parte II

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Solidariedade e Vida Afetiva

O axioma político-ontológico de Thatcher implica que a soma dos indivíduos (e suas famílias) de forma alguma excede suas partes, que não há excedente social sobre a organização da subjetividade (individualidade) e parentesco (família). Insistir, ao contrário, que existe algo como a sociedade implicaria que o “ser-com” ou o ser social excede e constitui o indivíduo e, consequentemente, que a individualidade não implica indivisibilidade. Eis o que ela disse:

Eles [os fracos, os carentes e os ressentidos] jogam os seus problemas para a sociedade, mas quem é a sociedade? Não existe tal coisa! Existem homens e mulheres individuais e famílias, e nenhum governo pode fazer nada exceto por meio das pessoas e as pessoas olham primeiro para si mesmas

Continuar lendo

A sociedade não existe? Parte I

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Prólogo

Em 1964, a Abadia de Royaumont, em Ilê-de-France, sediou um colóquio sobre Nietzsche, onde Michel Foucault apresentou sua famosa palestra “Nietzsche, Freud e Marx”. Nele, ele argumentou que esses três nomes representam uma ruptura radical na história das técnicas interpretativas. Eis que expõem a autonomia da ordem simbólica (do valor moral, em Nietzsche; do valor econômico, em Marx; do valor linguístico, em Freud) expondo, assim, a descentração do sujeito humano.

Juntas, a genealogia de Nietzsche, a crítica da economia política de Marx e a psicanálise de Freud fazem ainda um outro insulto ao amor-próprio humano, comparável ao Kränkungen científico – que Freud associava à Física do início da modernidade (descentração da realidade física; abolição do modelo cosmológico geocêntrico) e à biologia evolutiva (descentração da evolução da vida; abolição da exceção humana na hierarquia dos seres).[2]

Continuar lendo

Sobre as origens da realidade psíquica

Autor: Jon Mills[1]

A arché [2] da psique

Quando começa a vida psíquica? A emergência do ego constitui propriamente a subjetividade humana ou podemos apontar legitimamente para forças ontológicas anteriores? Como mencionado anteriormente, não desejo reduzir essa indagação metafísica a um empreendimento meramente materialista, apenas para reconhecer que certas contingências fisiológicas da corporeidade são uma condição necessária, embora não suficiente para explicar a origem psíquica.

Embora a psicologia do processo psíquico seja sensível ao trabalho contíguo e compatível feito nas ciências biológicas e neurocientíficas, isso não precisa nos preocupar aqui. Se alguém se contenta com uma abordagem materialista, que recorra ao discurso sobre o óvulo e o esperma.

Eis que devemos proceder com um respeito cuidadoso à máxima de Freud segundo a qual é preciso resistir à tentação de reduzir a psique ao seu substrato anatômico. Como as abordagens empíricas sozinhas não podem abordar a epistemologia do nosso interior ou do vivido qualitativo inerente ao processo experiencial, devemos tentar abordar a questão dialeticamente.

Continuar lendo

Pulsão de morte: de Freud à Lacan

Resumo: As pulsões sexuais põem a vida num corpo (vivo por isso), o qual sem elas estaria morto; por isso mesmo a pulsão de morte, a morte pulsional melhor dizendo está pressuposta nas manifestações da vida.

Autora: Alenka Zupančič

Para os filósofos lacanianos a noção de pulsão de morte tem uma função muito importante e persistente, pois aparece geralmente em pontos cruciais de vários argumentos conceituais. Apesar de haver esclarecimentos (e exemplos) do que essa noção nomeia e se refere, há ainda muita confusão a esse respeito. Pode ser que essa confusão venha do fato maior de que essa noção está e permanece em processo de construção no interior da psicanálise.

 Não que as outras noções freudianas estejam simples e totalmente estabelecidas e fixadas, sem possibilidade de que possam ter ainda uma vida conceitual mais longa, mas a pulsão de morte parece carecer particularmente de algum tipo de ancoragem inicial ou fundamental. A razão é muito simples: o que Freud, em Além a princípio do prazer, apresenta primeiro sob o rótulo de pulsão de morte (Todestrieb) não é exatamente o que “nós” lacanianos (e eu me incluo entre eles) entende por ela.

Continuar lendo

A crítica de Marcuse à Fromm

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Como se sabe, a avaliação negativa de Herbert Marcuse da obra de Erich Fromm – assim como das teorias de Karen Horney e de Harry S. Sullivan, ou seja, ao que denomina de “revisionismo neofreudiano” – se encontra no epílogo do livro Eros e Civilização, publicado originalmente em 1955. A escola culturalista – diz ele – rejeita a teoria da pulsão de Freud e, ao fazê-lo, inibe o seu caráter crítico da sociedade: “o enfraquecimento (…) da teoria da sexualidade [original], conduz a um enfraquecimento [revisionista] da crítica sociológica” (Marcuse, 1978, p. 209).[2]

Aqui, apenas o primeiro autor acima mencionado, Fromm, será considerado. Ademais, a apreciação de autores diversos por atacado costuma perder a precisão, cometendo injustiças. E este, pelo menos à princípio, pode ser o caso aqui discutido.  

Veja-se, Marcuse sustentou em seu texto que Fromm havia se afastado da teoria da libido de Freud.  No entanto, Fromm, num de seus últimos escritos, esclareceu que nunca rejeitara a teoria das pulsões de Freud, ainda que tenha criticado o seu caráter estático: “minha crítica à teoria da libido não se dirige a sua orientação biológica como tal, mas antes (…) a fisiologia mecanicista na qual (…) se enraíza” (Fromm, 2013, p. 19).

Continuar lendo

A crítica frommiana da noção de “pulsão de morte”

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Em postagem anterior, procurou-se entender melhor a categoria psicanalítica de “pulsão de morte” tal como aparece na literatura mais recente, a qual tem feito um esforço contínuo para depurá-la de suas imprecisões.  Como foi visto nessa resenha, essa noção – e isso é algo bem conhecido – é bem ambígua e controversa; os psicanalistas em geral divergem não só quanto ao seu significado, mas também se ela deve ser acolhida ou não como válida no próprio corpo da teoria. Para apresentar uma crítica dessa suposta categoria, vale-se aqui de uma sua apresentação feita por Christian Dunker:

A hipótese mais especulativa de Freud, como cientista e materialista, consistiu em dizer que a vida é um parêntese entre dois estados inorgânicos. Por isso, haveria uma tendência de retorno ao estado anterior que explicaria o aparentemente gosto irracional do humano pela repetição, mesmo quando isso implica em dor, desprazer e morte.[2]

A pulsão de morte, portanto, está ligada às repetições compulsivas das experiências traumáticas. Manifesta-se, portanto, como um desejo de aniquilamento, de destruição seja de si mesmo seja dos outros. Por isso mesmo, a própria existência da sociedade dependeria de sua contenção, de seu enceramento dentro de limites.

A pulsão de morte explicaria por que parte substancial de nossa cultura, de nosso brincar e de nossos laços sociais depende de certa administração da agressividade e, portanto, da contenção, mas também da participação, de nosso gosto por destruir.[3]

Continuar lendo

A infinitude do desejo e da riqueza (II)

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Pulsão/Capitalismo

Como foi visto ao final do primeiro texto de um conjunto de dois, a questão ajuizada nesta investigação conceitual precisa ser reposta diante do modo como os psicanalistas lacanianos pensam a pulsão. Como foi visto, o próprio Lacan, na interpretação da herança de Freud, introduziu uma mudança bem fundamental nesse conceito. Diante desse desvio, o passo decisivo no esforço de repensar a questão da infinitude do desejo e da riqueza consiste em explicar melhor essa concepção renovada de pulsão. Por pulsão, entenda-se esse impulso interior contraditório que, em última análise, põe o humano como ser que luta pela vida, pelo menos em condições normais. Aqui se começa, entretanto, pelo fim.

Buscando aproximar os dois campos do conhecimento evolvidos na investigação da relação entre psique e capitalismo, Johnston concebe esse impulso de um modo transistórico.

A minha própria visão da interface do marxismo com a psicanálise não equivale a uma simples e direta historicização desta última – especificamente, ela não mantém a tese segundo a qual os impulsos da economia libidinal são apenas e tão somente criações sócio-históricas da economia política do capitalismo. [2]

Ora, essa tese parece fazer sentido. Afigura-se sensato pensar que o ser humano tem um caráter distintivo em relação aos outros animais, mas ainda assim ele possui uma constituição básica que se mantém grosso modo no tempo histórico: ele fala, é um ser que se constitui, se expressa e se realiza por meio de linguagem. Logo, ele não tem meros instintos que se mantém constantes, mas a sua potência vem à tona e se torna ato, necessariamente, nesse meio: o ser humano é e está no mundo das palavras como os peixes dentro da água. No entanto, o conteúdo específico desse caráter constitutivo ainda não foi exposto.

Continuar lendo

A crítica do puro gozo ou “o gozo não existe”

Autor: Adrian Johnston – Introdução ao livro A temporalidade da pulsão [1]

Um dos insights mais básicos da psicanálise é que os seres humanos dizem mais do que sabem. As suas declarações e os seus comportamentos são significativamente moldados por uma dimensão inconsciente, tecida sob a textura de sua consciência. Assim, a arte da análise não envolve desconsiderar dogmaticamente as características manifestas da existência cotidiana em favor de tatear em busca de alguma fraqueza psíquica, obscura e oculta.

Não vem a ser, em adição, uma psicologia profunda – mas vulgar – em que a fachada da cognição, superficialmente estruturada, mediada simbolicamente de modo social, opõe-se grosseiramente ao pântano obscuro e opaco de uma natureza carnal em sua essência selvagem e indomável.

O inconsciente está “lá fora”, inscrito no campo da consciência e da correlata realidade como um conjunto de configurações internamente excluídas. E essas configurações, em vez de serem suplementos ou marginalidades parasitárias relativamente supérfluas, emprestam a essa realidade a sua própria textura e determinam os contornos reais da própria consciência.

Continuar lendo

A infinitude do desejo e da riqueza (I)

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Aristóteles/Grécia Antiga

Aristóteles, no século IV a. c., sabia certamente a diferença entre o sensato e o insensato, o medido e o desmedido, em matéria de desejo e de riqueza. E essa percepção está bem patente em sua discussão da posse e da obtenção de bens nas condições da Grécia antiga, que se encontra como se sabe no capítulo III de A política.[2] Sendo assim, como é possível retomar a sua sabedoria milenar referente a uma sociedade escravista para vir a compreender melhor a relação interna entre o desejo e a riqueza no capitalismo, na perspectiva do encontro da psicanálise com a crítica da economia política?

Como se verá no curso da exposição que se segue, essa investigação nada tem de impertinente. Eis que há uma linha de pensamento que funda o capitalismo numa suposta natureza da psique humana e ela precisa ser contestada. As bases da crítica foram assentadas aqui há décadas atrás.

Como se sabe, para o estagirita a economia consistia na economia doméstica. Sob essa perspectiva, ele se pergunta, iniciando um questionamento, se a arte da aquisição faz parte das atividades atinentes ao domínio do domus. Ora, a primeira proporciona e a segunda faz uso dos bens obtidos.

Distingue, então, em primeiro lugar, o que classifica como meios naturais de obter de bens, quais sejam eles, a caça, a pesca, a agricultura e a indústria doméstica. Estes são, para ele, justos e necessários. “Há, portanto, uma espécie de arte da aquisição que é por natureza uma parte da economia doméstica, uma vez que esta deve ter disponíveis, ou proporcionar ela mesma, as coisas passíveis de atender as pessoas, necessárias à vida e úteis à comunidade composta pela família e pela cidade” (op. cit., p. 36).

No curso de sua argumentação, o filósofo distingue, implicitamente, duas modalidades de riqueza: a concreta e a abstrata. A primeira esta fundada na necessidade e consiste em bens uteis por si mesmos e em meios que permitam produzi-los. A provisão de riqueza dessa espécie, portanto, reclama ela mesma a arte aquisitiva do primeiro tipo antes mencionado. Note-se que essa espécie de riqueza está caracterizada por uma infinitude qualitativa; os bens podem se multiplicar, mas nenhum deles em particular pode ser usado, em princípio, em quantidade infinita. Dito de outro modo, o consumo dos bens específicos em geral é sempre saciável.

Mas o que seria a riqueza abstrata? Como ela surge? Quais seriam as suas características?

Em sequência, respondendo a essa pergunta, Aristóteles vai mencionar que há uma espécie de riqueza que não está sujeita à limitação, que há em consequência uma arte de aquisição que não impõe fronteiras ao enriquecimento. À esta última ele chama de “crematística”, designando assim o modo de obter riqueza por meio do mercado. Em sua forma simples, diz ele, ela se aproxima da economia já que um bem qualquer pode ser obtido pela troca por outro com a finalidade de atender às carências das famílias e da cidade. Entretanto, conforme a sociedade se concentrou no espaço e se tornou mais numerosa, a troca simples se tornou insuficiente e precisou ser substituída pelo comércio, o qual não se desenvolve sem o dinheiro. E este constitui a base da riqueza abstrata, uma riqueza que vale por toda outra.

Ao invés de trocar um bem por outro diretamente, o comércio começou a usar nas transações um material que, por si mesmo, fosse útil e de fácil condução nas diversas circunstâncias. E o emprego desse material transformou o modo de trocar: estas últimas passaram ser indiretas, ou seja, mediadas. A matéria primeira que recebeu a forma de dinheiro foi algum metal como o ferro e a prata. Inicialmente, funcionou no comércio com base apenas em suas caraterísticas de dimensão e peso, mas para obviar as medições constantes e impedir as falsificações – diz ele – passou-se a usar o dinheiro cunhado pelo Estado.

O dinheiro não é, como parece à primeira vista, apenas um meio inocente de prover bens; na verdade, ele cria uma forma específica de acumular. Como o comércio proporciona lucros, “daí emergiu a ideia de que a arte de enriquecer está especialmente vinculada ao dinheiro” (idem, p. 38). E, no pressuposto de que essa arte cria muita riqueza e posse, passou-se a presumir que a riqueza consista propriamente em grande quantidade de dinheiro. A acumulação de dinheiro, ao contrário da provisão dos bens comuns, afigura-se insaciável.

Se o desejo de bens em geral está regulado pela necessidade que os próprios bens atendem, ele tem sempre a sua própria medida; já o desejo de acumular dinheiro não tem qualquer limite, corre para além da necessidade e, assim, tende à desmedida. O filósofo aponta então a diferença entre esses dois tipos de riqueza, a abstrata e a concreta, anotando que um homem rico em metais cunhados pode em princípio ser carente em gêneros de primeira necessidade. “É possível” – menciona – “até acontecer o absurdo de um homem dispondo de dinheiro pode muitas vezes carecer do mínimo necessário à subsistência” (idem, p. 38). É evidente, pode-se acrescentar, que se ele gasta um pouco de seu dinheiro para comprar comida, transfigura-se de acumulador em consumidor ou gastador; ao se transformar, ele sacrifica o seu desejo infinito por um desejo finito, comezinho e de acordo com a natureza.

No comércio – indica – a “arte de enriquecer está relacionada com o dinheiro, pois o dinheiro é o primeiro elemento e o fim do comércio”; ora, “a riqueza derivada desta arte de enriquecer é ilimitada” (idem, p. 39). Marx, como se sabe, nos primeiros capítulos de O capital, sintetizou essa diferença apontada por meio dos circuitos da mercadoria e do dinheiro como capital. No primeiro caso, a mercadoria é trocada por dinheiro para obter com ele outra mercadoria, M – D – M; ora, a síntese dessa operação é M – M; no segundo caso, o dinheiro é trocado por mercadoria para obter com ela mais dinheiro, D – M – D’, cuja síntese é agora D – D’. No primeiro caso, a troca está limitada pela necessidade de consumo; no segundo, a permuta se encontra subordinada a um fim ilimitado.

A existência do dinheiro, ademais, pode modificar o modo de comportamento do indivíduo social: ele pode se tornar um ser aquisitivo e acumulador. Eis que certas pessoas se engajam então em enriquecer tentando aumentar o seu cabedal ao infinito. “A razão disso” – diz Aristóteles – “é a estreita afinidade existente entre os dois ramos da arte de enriquecer” (idem, p. 39). As pessoas, algumas pessoas pelo menos, passam mesmo a acreditar que o seu dever enquanto “chefe de família” ou “cidadão da pólis” é aumentar indefinidamente as posses, dando origem a um novo etos. O trecho que se segue é bem importante para os fins desta exposição:

“Por isto algumas pessoas supõem que a função da economia doméstica é aumentar as posses, e estão sempre sob a impressão de que seu dever é preservar-lhes o valor em dinheiro ou aumentá-las infinitamente. A causa desse estado de espírito é o fato de a intenção dessas pessoas ser apenas viver, e não viver bem; como o desejo de viver é ilimitado, elas querem que os meios de o satisfazer também sejam ilimitados” (idem, p. 39).  

Como Aristóteles explica, assim, o aparecimento do desejo infinito de acumular dinheiro na sociedade constituída pela cidade? Ele é despertado pelo aparecimento do dinheiro, mas está fundado numa condição humana que ele vê seguramente como transistórica. A acumulação infinita de dinheiro vem, pois, se apropriar e mobilizar o desejo infinito de viver, mas em que ele consiste?

Provocado pelo dinheiro que atua primeiro no comércio, mas também na usura, ou seja, no comércio do dinheiro, ancora-se, segundo diz o texto citado, em algo da condição humana; algo que se manifesta de um modo desmedido. Ora, para Aristóteles, uma tendência à imoderação mora para sempre na alma humana. Mas não é ela que explica o aparecimento do dinheiro. Este surge como representante do valor, passando a atuar como meio de troca. Responde imediatamente ao imperativo da divisão social crescente do trabalho, mas seu aparecimento se deve, em última análise, à carência de meios e de bens para satisfazer a todos de um modo satisfatório.

Aristóteles descobre, assim, uma contradição na arte de obter riqueza na grande sociedade, tal como depois dirá Adam Smith. Diz, primeiro, que essa arte se desdobra em duas, aquela que se relaciona à economia doméstica e aquela que se refere ao comércio. Diante dessa oposição conflituosa, mesmo se a considera como inerente à provisão de bens na sociedade do seu tempo, ele não se omite de fazer um julgamento ético. A primeira é “necessária e louvável”, enquanto a segunda é “justamente censurada”; esta última desafia a natureza porque assim uns “homens ganham às custas de outros” e “o seu ganho vem do próprio dinheiro” (idem, p. 41). Os homens aqui referidos, como se sabe, são só aos homens do sexo masculino, ou seja, aqueles que tem plena cidadania na polis – nessa categoria, portanto, não estão incluídos nem as mulheres e nem os escravos.   

Antes de passar a focar a sociedade moderna sob a luz das reflexões da crítica da economia política e da psicanálise, é preciso sublinhar um ponto central. Como Aristóteles assenta a busca do dinheiro no desejo de viver, aqui se pensa que ele assumiu, implicitamente, uma ideia de pulsão. E por desejo de viver se entende que viver consiste sempre em desejar.

Freud/capitalismo

Atravessando então uma ponte de dois mil e quatrocentos anos de civilização e barbárie, chega-se a uma nova cidade cuja lógica de reprodução é bem mais complexa do que aquela da cidade grega. Em consequência, a apreensão da conexão entre essa lógica e a disposição da psique humana para recebê-la exige uma síntese bem difícil. Procura-se aqui abarcá-la, numa primeira visada, a partir do livro clássico de Herbert Marcuse, Eros e Civilização. [3]

De qualquer modo, este artigo sustenta que a tese básica do estagirita é verdadeira e que ela foi mantida e desenvolvida por Karl Marx em suas obras críticas do modo de produção capitalista.[4] Segundo ela, o desejo de acumular riqueza de modo insaciável, assim como o etos que lhe é característico, provém da instituição do dinheiro ou, mais propriamente, do capital. Eis o que se encontra já no terceiro capítulo do livro clássico:

“Essa contradição entre a limitação quantitativa [de toda soma de dinheiro] e o caráter qualitativamente ilimitado do dinheiro impulsiona incessantemente o entesourador ao trabalho de Sísifo da acumulação” (op. cit., p. 133).

“Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada do valor, é comum ao capitalista e ao entesourador, mas enquanto o entesourador é apenas o capitalista demente, o capitalista é o entesourador racional” (idem, p. 130).  

Com Freud, a compreensão da psique humana se torna muito mais complexa e mais profunda. Como explica Marcuse, se ele considera de início uma pulsão vital ligada à autopreservação em oposição a uma pulsão erótica, num momento posterior, compreenderá a primeira delas apenas como um momento subordinado da segunda, a qual passa a responder pelo evolver da vida como um todo.  Num momento final, oporá a pulsão de morte à pulsão de vida e ambas se subordinam a uma tendência da vida orgânica, biológica, de voltar a um “estado anterior de coisas que o ser vivo foi obrigado a abandonar, sobre a pressão perturbadora de forças externas” (op. cit., p. 42-43).

Na compreensão final de Freud, tem-se certamente uma dualidade de forças que se contrariam – Eros e Tânatos –, mas a sua teoria parece requer que essa dualidade seja compreendida como uma duplicidade, de tal modo que a pulsão figura agora como portadora de uma contradição inerente ao processo vital, a qual se manifesta por meio de tendências e contratendências. As condições internas e externas da história dos indivíduos sociais exigem constantemente a mobilização dos impulsos eróticos ou dos impulsos de agressão ou de morte, mas as pulsões, ao serem despertas, exigem retornos de prazer – ou gozo.[5] As pulsões eróticas estabelecem ou mantém os laços sociais e as pulsões de agressão os desfazem quando existem.[6]

No centro das concepções de Freud se encontra sempre uma luta de opostos. Eis que ele descobre contradições no interior da própria psique. Ora, como se sabe, as contradições, agora pensadas dialeticamente, orientam Marx na compreensão da sociedade. É por isso que um capítulo central do livro de Marcuse começa assim:

“Freud descreve o desenvolvimento da repressão na estrutura pulsional do indivíduo. A luta pelo destino da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na luta das pulsões – literalmente uma luta de vida ou morte – em que o soma e a psique, a natureza e a civilização participam” (idem, p. 41)

As condições em que essa luta acontece são sintetizadas na oposição entre o princípio do prazer – e de gozo (talvez) – e o princípio de realidade. No curso da vida humana, os impulsos de vida e os impulsos de morte não apenas estão constantemente em combate, mas, dependendo das condições, uns se intervertem nos outros, seus opostos, no curso da existência social.

O princípio do prazer (e do gozo) sustenta a própria vida e se manifesta como impulsos vitais. Mas, diante de dificuldades, os impulsos agressivos também podem aparecer manifestando-se como destrutividade. O princípio de realidade responde pela coerção e pela repressão dos desejos suscitando atitudes contrastantes que se balizam seja pelo amor seja pelo ódio, seja pela coexistência pacífica seja pela violência, seja pela construção seja pela destruição – em síntese, Eros e Tânatos.  

Segundo Marcuse, a teoria de Freud no curso de seu desenvolvimento requereu a formulação de um novo conceito do humano, ou seja, de um “sujeito” formado por id, ego e superego. O primeiro é o domínio do inconsciente, em que se encontra a fonte das pulsões. A sua lógica de atuação vem a ser exercer pressão apenas para obter satisfação de suas necessidades (em sentido amplo) pondo fins e objetos para o indivíduo social. Sob a influência do mundo externo, de seus obstáculos e suas exigências, desenvolve-se o ego, sede do consciente cuja função é fazer a mediação entre o id e o próprio mundo externo. Ao cumprir a sua missão, as funções do ego consistem, por um lado, em coordenar as ações da pessoa e, por outro, em controlar os impulsos instintivos do id, de modo a minimizar os conflitos com a realidade.

O superego é aquela parte do ego que se desenvolve para guardar as normas sociais, para representar a normatividade estabelecida pela sociedade perante o próprio “sujeito”, e para reprimir as pulsões.  De acordo com Freud, de modo geral, é o “ego que efetua as repressões a serviço e a mando do superego; contudo, recalcadas, as repressões logo se tornam inconscientes, passando a atuar como se fossem automáticas” (idem, p. 49). Eis aí – veja-se de passagem – o que gera um sentimento de culpa elusivo porque a sua fonte se mantém velada.  

Para compreender a relação entre a estrutura pulsional dos indivíduos sociais e a vida econômica, Marcuse apresenta a seguinte consideração que aqui se considera como chave:

“O princípio de realidade ampara o organismo no mundo externo. No caso do ser humano, esse mundo é histórico. O mundo externo que o ego em evolução defronta é, em qualquer estágio, uma organização histórico-social específica da realidade, a qual afeta a estrutura mental por meio de certas agências (…) Uma organização repressiva das pulsões é subjacente a todas as formas históricas do princípio de realidade na civilização” (idem, p. 50).

O que, para Marcuse, caracteriza o princípio de realidade? Trata-se de uma condição fundamental que ele chama de “ananke” ou de carência.  A existência é luta e a luta pela existência tem lugar num “mundo demasiado pobre para a satisfação das necessidades humanas sem restrição, renúncia e dilação constante” (idem, p. 51). Em síntese, qualquer satisfação possível requer esforço, necessita de trabalho e de discurso, implica em lutas com os semelhantes.

Diante das tarefas que nunca terminam, enquanto se mantiverem vivos, os indivíduos sociais têm de renunciar aos prazeres, entregando-se com ou sem gosto aos sacrifícios e mesmo a sofrimentos eventuais. O impulso básico do ser humano consiste em lutar pelo prazer e pela ausência de dor, mas como esse impulso é frequentemente obstado pela realidade, ele tem de ser reprimido. A pulsão contraditória produz então resultados diversos que oscilam entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, podendo se voltar contra os outros ou a favor deles ou mesmo se reverter contra ou a favor do próprio indivíduo. O prazer insatisfeito produz a condição neurótica – as doenças psíquicas em geral – ou pode ser eventualmente sublimado.

Havendo apresentado o que ele denomina de princípio de desempenho, ou seja, a forma histórica do princípio de realidade, Marcuse se interessa por investigar a questão da exploração e da dominação, já que as formas de resolver o problema da carência – e de distribuir os ônus e os ganhos da solução historicamente encontrada – variam conforme mudam os modos de produção. Aqui, no entanto, a preocupação se volta para compreender todo um etos posto pela existência do dinheiro, do entesouramento e do capital.

Nas concepções de Freud sobre a psique – e isso parece bem certo – há sim uma disposição pulsional que pode ser associada à acumulação infinita. Pois ele admitiu que uma pulsão parcial, a pulsão anal infantil pode se fixar e se tornar o fundamento de uma atitude na vida adulta voltada para a acumulação. “Assim, por exemplo, uma pessoa pode ter o impulso de guardar dinheiro e outros objetos, porque sublimou o desejo inconsciente de reter fezes”[7] Tese que, pelo menos para um economista, parece tímida para explicar a compulsão de acumular.

Trata-se, entretanto, de uma possibilidade que pode não se manifestar em outras circunstâncias. Não parece haver, portanto, na compreensão freudiana do ser social, uma constante que possa fundamentar a tese de que a busca do prazer seria infinita em sentido quantitativo, ou seja, que a pulsão originária seria naturalmente insaciável. Ademais, parece excessivo pensar que Freud tenha explicado, implicitamente, o capitalismo a partir das pulsões que supostamente movem os indivíduos.

De qualquer modo, sendo em princípio infinito em sentido qualitativo – o desejo de viver, conforme Aristóteles, é “infinito” –, o ser humano se mostra em geral insatisfeito pois as pulsões fomentam sempre desejos de novas experiências. Ora, assim permanecem sob as condições sociais que são caracterizadas, como já foi dito, pela carência. Logo, apenas à medida que aparece uma forma social caracterizada como tal por um princípio de infinitude quantitativo, o desejo de viver pode e mesmo deve ser capturado por essa lógica. O ser humano pode aparecer então, erroneamente, como intrinsecamente insaciável, ou seja, como um ser adequado à lógica da acumulação de capital.

Para terminar, considera-se agora o que diz sobre isso um autor bem contemporâneo – Adrian Johnston – que está buscando juntar os saberes da psicanálise e da crítica da economia política de um modo inovador. Ao invés de Marcuse, que parte de Freud, ele pensa mais fortemente a partir de Jacques Lacan. Em seu livro A temporalidade da pulsão[8], ele apresenta o que chama de “dilema fundamental da pulsão em geral”: “a pulsão paradoxalmente ‘desfruta’ o que deseja exclusivamente à medida que nunca realiza tal desejo” (op. cit., p. xxiii-xxiv). Ora, essa interpretação feita por Johnston parece tornar as pulsões insaciáveis. De qualquer modo, eis o que diz: 

As pulsões não são reprimidas simplesmente porque estão em conflito com a realidade social e legal do mundo exterior (umwelt). Mesmo se os impedimentos externos forem eliminados, as pulsões ainda assim fabricariam a sua própria repressão a fim de preservar as formas fantasmáticas do gozo” (idem, p. xxiv).

Na verdade, com base supostamente em teorizações de Jacques Lacan, afirma nessa citação que a própria pulsão cria barreiras para si mesma independentemente de quaisquer restrições exteriores. Ela se satisfaz (ou melhor, goza) por meio da perene insatisfação. Ora, assim pensada, torna-se da ordem do mau infinito, uma característica da lógica evolutiva do capital! – não é? Se assim for, outro texto precisa ser escrito para examinar a questão da infinitude do desejo e da riqueza tendo em mente as considerações desse autor.

E este é o problema que, ao fim e ao cabo, se quer considerar numa próxima nota.


[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blog na internet: https://eleuterioprado.blog. O post foi publicado pela primeira vez em 21/08/2022 no blog Economia e Complexidade; contudo, o escrito foi modificado uma vez em 13/10/2022 e novamente em 17/03/2023.

[2] Aristóteles, A Política, em tradução direta do grego antigo feita por Mário Gama Kury. São Paulo: Editora Madamu, 2021.

[3] Marcuse, Herbert – Eros e civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. Segundo Samo Tomšič, “Herbert Marcuse foi indiscutivelmente aquele que levou mais o envolvimento da teoria crítica com a psicanálise freudiana.” Para ele, “a economia libidinal no interior do sistema [capitalista] estava agora organizada em torno do mecanismo da ‘dessublimação repressiva’”. “Da perspectiva psicanalítica – completa Tomšič – “o capitalismo aparece de fato como uma cultura de gozo imposto”. Ver The SAGE Handbook of Marxism, Vol. 2, ed. by B. Skeggs, S. R. Farris, A. Toscano and S. Bromberg, London: SAGE Publications Ltd., 2022.

[4] A nota de rodapé número cinco do primeiro capítulo de O capital resume a tese de Aristóteles sobre a existência de duas artes de aquisição de bens que se contrapõe: uma produz a “boa vida” e a outra gera a “vida ilimitada”; o advir da crematística transforma a finalidade da vida ao fazer do humano um ser insaciável porque agora ele busca uma riqueza infinita. Ver Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 129.

[5] Há aqui uma complicação, porque gozo (Lacan) não é prazer (Freud). Mas o que é gozo? Aquilo que a pulsão almeja e que permanece inconsciente. 

[6] Ver Tomšič, Samo – A sociedade não existe? https://aterraeredonda.com.br/a-sociedade-nao-existe/ ou https://eleuterioprado.blog/2023/03/12/a-sociedade-nao-existe-parte-i/

[7] Ver Fromm, Erich – O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1970, p. 229.

[8] Johnston, Adrian – Time driven – metapsychology and the splitting of the drive. New York: Northwestern University Press, 2005.