Pulsão, resistência e capitalismo

Samo Tomšič [1]

A mudança [3] para além da estreita questão psicológica sobre “quem resiste?” para a questão “de onde vem a resistência?” – a sua descentralização e afastamento do indivíduo psicológico e de sua consciência –, revelaram a Freud a onipresença da resistência. Disso resultou a fundamentação das estruturas libidinais e sociais numa ação constitutiva de resistência, a qual ele chamou de Urverdrängung, ou seja, repressão primária:

Temos motivos para assumir que existe uma repressão primária, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada na consciência do representante psíquico (ideia) da pulsão. Com isso, uma fixação é estabelecida; o representante em questão persiste inalterado a partir de então e a pulsão permanece presa a ele… O segundo estágio de repressão, repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido ou as sequência de pensamento que originaram outros lugares, entrando em conexão associativa com ele.

Por causa dessa associação, essas ideias experimentam o mesmo destino do que foi reprimido primeiramente. A repressão propriamente dita, portanto, é na verdade uma pós-pressão. Além disso, é um erro enfatizar apenas a repulsão, que opera a partir do consciente em direção ao que deve ser reprimido; tão importante é a atração exercida pelo que foi reprimido principalmente sobre tudo com o qual ela pode estabelecer uma conexão. Provavelmente, a tendência para a repressão falharia em seu propósito se essas duas forças não cooperassem, se não houvesse algo reprimido anteriormente para receber o que é repelido pelo consciente.

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A sociedade não existe? Parte III

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Ao invés de concluir

 Lacan repetidamente argumentou que Marx inventou a noção de sintoma e acabou especificando que “há apenas um sintoma social – cada indivíduo é realmente um proletário, pois nenhum discurso pode fazer um laço social” (Lacan, La troisième). Poder-se-ia imediatamente censurar Lacan por repetir o privilégio dado por Marx ao trabalhador industrial, excluindo assim outros sintomas sociais, tais como, por exemplo, a mulher ou o escravo colonial. Mas talvez essas figuras distintas apontem para um “comum negativo”, por assim dizer, uma figura da subjetividade em estado de exclusão do laço social.

Então, o “proletário de Lacan” se colocaria como um possível nome genérico para essa subjetividade foracluída. O próprio Marx exemplificou essa rejeição na figura social do trabalhador industrial e, de maneira mais geral, insistiu que o capitalismo impõe relações sociais entre coisas (mercadorias) e não, diretamente, entre subjetividades. Nesse sentido, a economia capitalista realiza uma espécie de foraclusão do sujeito homóloga àquela operada pela ciência moderna (ver Lacan, Écrits). Depois de fazer essa observação sobre o proletário, Lacan passa a apontar a especificidade da psicanálise em comparação com outros discursos e/ou vínculos sociais:

Socialmente, a psicanálise tem uma consistência diferente dos outros discursos. É um elo entre dois [indivíduos]. Nesse sentido, a psicanálise se coloca no lugar da falta de relação sexual. Isso não basta para fazer dela um sintoma social, já que a relação sexual carece de serem todas as formas de sociedades. Isso está ligado à verdade que estrutura cada discurso. Por isso, aliás, não existe uma verdadeira sociedade fundamentada no discurso analítico. Existe uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. (La troisième).

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A sociedade não existe? Parte II

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Solidariedade e Vida Afetiva

O axioma político-ontológico de Thatcher implica que a soma dos indivíduos (e suas famílias) de forma alguma excede suas partes, que não há excedente social sobre a organização da subjetividade (individualidade) e parentesco (família). Insistir, ao contrário, que existe algo como a sociedade implicaria que o “ser-com” ou o ser social excede e constitui o indivíduo e, consequentemente, que a individualidade não implica indivisibilidade. Eis o que ela disse:

Eles [os fracos, os carentes e os ressentidos] jogam os seus problemas para a sociedade, mas quem é a sociedade? Não existe tal coisa! Existem homens e mulheres individuais e famílias, e nenhum governo pode fazer nada exceto por meio das pessoas e as pessoas olham primeiro para si mesmas

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A sociedade não existe? Parte I

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Prólogo

Em 1964, a Abadia de Royaumont, em Ilê-de-France, sediou um colóquio sobre Nietzsche, onde Michel Foucault apresentou sua famosa palestra “Nietzsche, Freud e Marx”. Nele, ele argumentou que esses três nomes representam uma ruptura radical na história das técnicas interpretativas. Eis que expõem a autonomia da ordem simbólica (do valor moral, em Nietzsche; do valor econômico, em Marx; do valor linguístico, em Freud) expondo, assim, a descentração do sujeito humano.

Juntas, a genealogia de Nietzsche, a crítica da economia política de Marx e a psicanálise de Freud fazem ainda um outro insulto ao amor-próprio humano, comparável ao Kränkungen científico – que Freud associava à Física do início da modernidade (descentração da realidade física; abolição do modelo cosmológico geocêntrico) e à biologia evolutiva (descentração da evolução da vida; abolição da exceção humana na hierarquia dos seres).[2]

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A clínica psicanalítica é política

Autor: Samo Tômsic [1]

Este livro [2] desenvolve ainda uma linha de pensamento adotada num volume anterior.[3] Trata-se de uma discussão em curso sobre a atualidade da psicanálise para fazer uma crítica ao modo de gozo historicamente introduzido e imposto pela organização capitalista do trabalho social e da vida social, bem como do pensamento em geral. Minha preocupação tem se voltado para os esforços freudianos e lacanianos para elaborar algo que poderia ser chamado de crítica da economia libidinal.

Esta última, pode-se argumentar como base no envolvimento de Jacques Lacan com Karl Marx, pode ser considerada um componente essencial da crítica da economia política. Gostaria de iniciar o presente estudo referindo-me ao modo como o próprio Lacan definiu o significado político de sua disciplina:

A intrusão no político só pode ser feita reconhecendo que o único discurso existente, e não apenas o discurso analítico, é o discurso do gozo, pelo menos quando se espera dele o trabalho da verdade”.[4]

Nesta observação densa e, seguramente, um tanto enigmática, a primeira palavra já chama nossa atenção.

A psicanálise entrou na esfera do político como um intruso, um convidado não convidado ou mesmo um encrenqueiro, que perturbou o sono dos habitantes desse mundo e, portanto, encontrou resistência. No entanto, essa intrusão crítica não veio de fora, de algum lugar exterior aparente. Ocorreu mais como uma ruptura imanente ou como um curto-circuito que expôs algo inerente ao cerne da política, algo que até então permanecia desconsiderado: o papel problemático do gozo na constituição dos vínculos sociais e na reprodução das relações de poder.

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“Marx com Lacan”: para a crítica do capitalismo

Autor: Adrian Johnston [1]

Quais são – caso existam – os resultados da ligação feita pelo último Lacan entre a economia libidinal (centrada no gozo, no desejo, no “objeto a” etc.) e a economia política em geral, assim como, especificamente, a crítica histórico-materialista da economia política? Da mesma forma, como interpretar as glosas de Lacan sobre as analogias de Freud com o capitalista-empresário que põe uma interface entre a psicanálise e o marxismo? Samo Tomšič, em seu estudo de 2015, O inconsciente capitalista: Marx e Lacan, aborda assim esta segunda questão:

Freud não diz o que os freudo-marxistas dirão mais tarde, ou seja, que o inconsciente explica o capitalismo; ele afirma precisamente o contrário: é o capitalismo que elucida o inconsciente. O inconsciente descoberto em A Interpretação dos Sonhos nada mais é do que o inconsciente capitalista, o entrelaçamento da satisfação inconsciente com a estrutura e a lógica do modo de produção capitalista.

Tenho duas hesitações sobre essa leitura de Tomšič. A primeira revela uma preocupação:  pelo menos de uma perspectiva lacaniana, acho que ele corre o risco de historicizar excessivamente o inconsciente psicanalítico. Nem Lacan nem eu discordaríamos que as estruturas e dinâmicas do inconsciente são significativamente influenciadas por forças e fatores sócio-históricos, inclusive os do capitalismo. Mas acredito que Lacan sustentaria que as contribuições da modernidade capitalista para a descoberta e teorização do inconsciente freudiano caem na tese de Marx segundo a qual “a anatomia humana contém uma chave para a anatomia do macaco”. Dito de outra forma, o surgimento explícito do inconsciente analítico no capitalismo moderno revela uma metapsicologia já implicitamente operante na espécie homo sapiens muito antes do surgimento do modo de produção capitalista.

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“Marx com Freud”: para a crítica do capitalismo

Autor: Eleutério F. S Prado [1]

Sim, é preciso assentir que o saber sociológico em geral não pode prescindir do saber sobre as disposições psíquicas dos indivíduos socialmente situados – e vice-versa, deve-se acrescentar enfaticamente. E isso vale também para as teorias críticas do capitalismo e do ser humano submetido às condições de vida próprias desse modo de produção. Entretanto, as duas principais teorias dessa espécie, elaboradas na época moderna, respectivamente, por Karl Marx e Sigmund Freud, a crítica da economia política e a psicanálise, nunca se reconciliaram de um modo satisfatório.

Dizendo de outro modo, conforme Samo Tomšič, mesmo se a crítica da economia política exige uma crítica da economia libidinal, “a interação entre marxismo e psicanálise sempre foi marcada pela desconfiança mútua, pela crítica e pelo distanciamento” (2022a). Ora, foi com a finalidade de superar essa situação que escreveu o marcante livro O inconsciente capitalista – Marx e Lacan (2015), assim como, em complemento, diversos outros textos publicados em sequência. Aqui se faz uma crítica, ou melhor, uma apropriação crítica do artigo Labor/trabalho (2022b) em que esse autor procura aproximar a noção de trabalho mental que aparece em A interpretação dos sonhos com a categoria de trabalho social que permeia O capital como um todo.

Assim como Marx estabeleceu uma conexão sociológica entre trabalho abstrato e mais-valor na produção mercantil generalizada para explicar a dinâmica da acumulação de capital, Freud teria apresentado, segundo ele, uma ligação psicológica entre trabalho mental e gozo (ainda sob o nome de prazer) para explicar a dinâmica psíquica dos indivíduos na vida social. Assim, nessa perspectiva, Tomšič afirma no artigo em discussão que “o processo mental pode e deve ser visto como trabalho produtivo”. Segundo ele, o pai da psicanálise teria igualado “pensamento e trabalho”, formulando desse modo uma “teoria do trabalho do inconsciente”.

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Marxismo e psicanálise: a tese de Samo Tomsic

Autor: Samo Tomšic[1]

Introdução: a frágil aliança entre marxismo e psicanálise

Na última década, os desenvolvimentos do capitalismo impulsionados pela crise desencadearam um interesse renovado nas interseções teóricas e políticas entre o marxismo e a psicanálise. O valor político da psicanálise continua atrelado ao fato de que Freud ressignificou significativamente a problemática da alienação com sua teoria do inconsciente. Ademais, ele elaborou uma complexa concepção desnaturalizada da sexualidade e forneceu insights abrangentes sobre o entrelaçamento entre o poder e o gozo.

O fio condutor de várias tentativas históricas e contemporâneas de aliar marxismo e psicanálise consiste, portanto, no reconhecimento de que a crítica da economia política sempre exige uma crítica da economia libidinal e vice-versa. No entanto, a interação entre marxismo e psicanálise sempre foi marcada pela desconfiança mútua, pela crítica e pelo distanciamento. É claro que trabalhar em sua aliança não implica que o método terapêutico de Freud, seus marcos conceituais e objetivos clínicos, estejam inteiramente em sintonia com as perspectivas da política emancipatória.

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Pulsão da morte e formação do sujeito (nova versão)

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

Esta nota tem por objetivo continuar tentando incorporar criticamente as descobertas da psicanálise na crítica da economia política. Mais especificamente, pretende continuar o questionamento feitos em duas notas anteriores[2], as quais se voltaram também para essa noção central da psicanálise, a noção enigmática de pulsão da morte. Aqui, considerando insuficiente o que foi dito naquela nota, volta-se ao tema, sabendo de antemão que ela tem um papel importante na definição do devir possível da sociedade atual. Aproveitando argumentos apresentados em outros textos, pressupõe-se aqui que o capitalismo está em seu ocaso.

Em resumo, pode-se dizer que se havia chegado à conclusão naquele pequeno estudo que a pulsão da vida era conservativa e que a pulsão da morte, ambas como noções provindas de Freud, era consumativa. Ademais, concluíra-se lá que esse autor atribuirá um caráter unilateral à pulsão da morte; pois, como não há morte sem vida e vida sem morte, vida e morte formam uma contradição. Em consequência, a mesma pulsão poderia ser tomada tanto como pulsão de mais-viver quanto como pulsão de mais-morrer. Ora, a prevalência de uma ou outra dependeria de condições pessoais, familiares e sociais determinadas. 

Nessa ótica, a pulsão da morte, tal como apresentada pelo psicanalista fundador, caracterizaria, na verdade, o sujeito sujeitado a uma compulsão interna e/ou externa que o domina – uma mortificação. Agora, quer-se testar melhor essa hipótese para ver se ela se sustenta. E, para tanto, vai-se comparar aqui interpretações críticas dessa noção: uma delas se encontra no livro Gozando com aquilo que não se tem de Todd McGowan (2013); uma outra se acha no livro O trabalho do gozo de Samo Tomšič (2019); uma terceira ainda é apresentada no livro O que é sexo? de Alenka Zupančič. Um texto de Slavoj Žižec será também usado para compreender melhor a questão. 

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Pulsão da morte e formação do sujeito

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Esta nota dá continuidade à anterior (publicada neste blog em 19/12/2021) que tratou do tema Pulsão da morte – Compulsão do capital, com o objetivo de buscar incorporar criticamente as descobertas da psicanálise na crítica da economia política. Aqui, considerando insuficiente o que foi dito naquela nota a respeito da noção freudiana de pulsão da morte, volta-se ao tema. A conjugação desses dois saberes afigura-se importante para compreender o devir possível da sociedade.

Em resumo, pode-se dizer que se havia chegado à conclusão naquele pequeno estudo que a pulsão da vida era conservativa e que a pulsão da morte, ambas como noções provindas de Freud, era consumativa. Ademais, concluíra-se lá que esse autor atribuirá um caráter unilateral à pulsão da morte; pois, como não há morte sem vida e vida sem morte, vida e morte formam uma contradição. Em consequência, a mesma pulsão poderia ser tomada tanto como pulsão de mais-viver quanto como pulsão de mais-morrer. Ora, a prevalência de uma ou outra dependeria de condições sociais determinadas. 

Nessa ótica, a pulsão da morte, tal como apresentada pelo psicanalista clássico, caracterizaria, na verdade, o sujeito sujeitado a uma compulsão interna e/ou externa que o domina – uma mortificação. Agora, quer-se testar melhor essa hipótese para ver se ela se sustenta. E, para tanto, vai-se comparar aqui interpretações críticas dessa noção: uma delas se encontra no livro Gozando com aquilo que não se tem de Todd McGowan (2013) e a outra se acha no livro O trabalho do gozo de Samo Tomšič (2019). Um texto de Slavoj Žižec será também usado para corroborar a tese contida nesta nota.   

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