A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (II)

Autor Samo Tomšič

O surgimento da fé a partir da compulsão de repetir

Depois de vincular a noção de mais-valor à transformação moderna do gozo, Lacan volta-se para Pascal e, em uma série de sessões do Seminário XVI, focaliza um detalhe específico dos Pensées de Pascal. Observa a notória aposta com que Pascal se empenha, por um lado, em desenvolver um argumento probabilístico para a existência de Deus e, por outro, em lançar luz sobre o mecanismo da conversão, a transformação do incrédulo em crente.

Se a ligação de Pascal com o capitalismo deve ser buscada em algum lugar, este vem a ser o vínculo – a princípio um tanto excêntrico – entre a questão da existência de um ser supremo e o jogo de aposta, na função estrutural dessa aposta e no surgimento da fé. A aposta, de fato, representa uma sofisticada mudança na tradição filosófica já que o esforço fundamental da filosofia sistemática consistiu sempre em fornecer provas sólidas da existência de Deus. Ao longo de sua história, a filosofia investiu muito esforço nessa empreitada, mas os resultados foram fracos; particularmente com o advento da ciência moderna, já que, por causa dela, a certeza da existência de Deus tem sido cada vez mais minada internamente pela dúvida ateísta.

Em suma, ao invés de submeter Deus à prova, Pascal, ao contrário da tradição filosófica, insiste que é preciso apostar em Sua existência e conviver com as consequências da decisão ontológica imposta nesta aposta. A relação entre o sujeito (crente ou não crente) e Deus é aqui radicalmente invertida: enquanto na prova filosófica Deus é como que humilhado, rebaixado a “objeto” da prova, na aposta a degradação atinge o indivíduo. Eis que este é confrontado com a questão da existência de Deus.

Em outras palavras, depende da prova ontológica se o indivíduo aceitará Deus como uma ficção efetiva ou ineficaz e se a fé será fortalecida por meio da prova. Mas, como antecipado, o caminho da prova apenas amplia o espaço da dúvida sobre a existência de Deus e sobre a legitimidade ontológica da fé. Não é de estranhar, portanto, que Lacan, em determinado momento, tenha declarado os teólogos como os principais ateus, já que ousam falar de Deus – e o fazem baseando-se justamente na prova escolástica minuciosa e, assim, enredam a fé em labirintos de demonstrações. Ao fazê-lo, expõem tanto Deus quanto a fé organizada ao risco do equívoco. A teologia, entendida como ‘ciência de Deus’, é a que mais prejudica esta última.

Pascal sabe disso e é por isso que, para ele, a existência de Deus não é uma questão de conhecimento, mas de correr risco. Em contraste com a tendência de Descartes de formular uma prova ontológica definitiva e absolutamente certa da existência de Deus, Pascal vincula a religião ao jogo, neutralizando assim efetivamente o outro risco a que a religião se expõe pela mera tentativa de aplicar a demonstração (científica) ao seu próprio objeto.[1] Em contraste com as “sutilezas metafísicas e sutilezas teológicas” (como diria Marx), a aposta de Pascal desloca o risco da existência de Deus (e de seus guardiões institucionais) para o sujeito (crente).

Deus aqui permanece o que a religião afirma ser e não está menos dividido entre a existência e a inexistência. Mas a questão que se coloca é o que cada sujeito deve fazer com sua vida diante dessas duas possibilidades metafísicas do Outro. Como eles devem investir sua vida da maneira mais lucrativa; como eles devem extrair lucro ou excedente de sua própria vida terrena finita. Se o sujeito aposta na inexistência de Deus, então não pode haver nenhum excedente – há apenas vida aqui e agora.

Essa vida é caracterizada por seu inevitável movimento em direção à morte – é essencialmente vida-para-a-morte (ou como diria Heidegger, ser-para-a-morte). Tal vida é sempre já nada; seu valor é zero – é marcado por nenhum crescimento, nenhum aumento potencial ou real; ora, é por isso que, segundo Pascal, podemos, na verdade devemos renunciar a correr esse risco. É somente por meio dessa renúncia que podemos garantir que um movimento diferente do ser-para-a-morte emergirá na vida, e a vida-para-a-morte será substituída pela vida excedente: uma moral moderna que merece o rótulo de “vitalismo capitalista”.

Assim nos encontramos sob esse fim de valorizar economicamente a vida. Quando “a vida em sua totalidade é reduzida a um elemento de valor“, [2] surge na vida aqui e agora a possibilidade de uma vida além da vida; não simplesmente uma vida além da morte, mas uma vida sem negatividade, uma vida cuja característica definidora é, novamente, o crescimento. Ou, para a possibilidade de tal vida além da vida, deve-se assumir a existência de Deus e, ao mesmo tempo, renunciar à vida que só conduz à morte.

Por isso, Pascal insiste que ao apostar na existência de Deus, de fato, não renunciamos a nada, pois renunciamos a uma vida que sempre já é nada do ponto de vista de sua finitude e mortalidade. Somente com essa renúncia, o “nada” pode se tornar um elemento essencial do cálculo econômico, em relação ao qual perda e ganho, dívida e lucro, menos e mais, são doravante calculados. Somente quando investidos em um sistema moral sustentado por Deus é que a vida pode crescer e se expandir, superar seus limites e, assim, convertê-los em meras barreiras a serem continuamente superadas.

Este sistema moral realmente funciona como uma máquina, o que nos traz de volta àquela mesma noção em Pascal – não apenas a ‘máquina de calcular’, mas também a natureza mecanicista do próprio sistema moral. Não por acaso, Pascal apresenta e discute a aposta em um fragmento de Pensées intitulado justamente Discours de la machine. A formulação significa tanto um “tratado sobre a máquina” quanto um “discurso da máquina” (numa tradução mais lacaniana). Chegamos, assim, ao vínculo psicanalítico entre discurso e repetição compulsiva (automatismo). Pascal escreve o seguinte:

Deus é, ou não é. Mas para que lado nos inclinaremos? A razão não pode determinar nada aqui. Existe um caos infinito, que nos separa de qualquer lógica. No extremo dessa distância infinita, jogaremos cara ou coroa: em que apostar? Pela razão, não apostaremos nem em uma coisa nem na outra; pela razão não poderemos escolher nenhuma das duas opções.[3]

Novamente, a principal preocupação de Pascal é o ato de conversão dos incrédulos. Por isso, o fragmento continua por meio de um diálogo imaginário entre a apologia pascaliana da fé cristã e um libertino hesitante que questiona o sentido de renunciar à vida e seus prazeres em favor de uma vida de acordo com moralidade religiosa restritiva.

Da citação fica claro que a razão necessariamente permanece dividida diante da alternativa e não pode fundamentar uma decisão definitiva. A verdadeira conversão, a conversão do coração, não pode ser realizada com base no princípio da razão suficiente ou por meio de uma demonstração racional. O raciocínio filosófico pode convencer a razão, mas não o coração; em outras palavras, de acordo com Pascal, a filosofia não pode inspirar paixão.

Um olhar mais atento mostra que a aposta não é uma simples negação da prova, mas uma sofisticada negação da prova que não apenas desloca o foco de Deus para o sujeito, mas também contém um aspecto performativo em que a atividade da máquina discursiva transforma gradualmente o incrédulo em crente e gera fé.

Repetindo, o argumento de Pascal é probabilístico, o que significa não menos que é racional; é certamente mais científico do que a prova ontológica de Descartes nas Meditações, não apenas porque é sustentado pela matemática (cálculo de probabilidade), mas também porque não pretende provar, em primeiro lugar, a existência de Deus. Em vez disso, faz de Deus uma ordem econômica baseada na especulação com a vida do sujeito (e, em última análise, com a vida política). Quando o incrédulo pergunta se não está apostando demais ao investir toda a sua vida, Pascal responde:

Vejamos. Uma vez que é tal a incerteza do ganho e da perda, se tivermos que apostar duas vidas por uma, ainda poderíamos apostar. Mas se houvesse três para ganhar, seria preciso jogar (já que temos necessidade de jogar). Seria imprudente quando, forçados a jogar, não arriscássemos para ganhar três em um jogo em que é tamanha a incerteza da perda e do ganho.

Há, porém, uma eternidade de vida e felicidade e, sendo assim, havendo uma infinidade de chances, das quais apenas uma está seu favor, ainda estaríamos certos em apostar uma vida para ganhar duas. Agiríamos mal, quando obrigados a jogar, se recusássemos apostar uma vida contra três num jogo em que, numa infinidade de probabilidades, há uma a nosso favor; havendo uma infinidade de vida infinitamente feliz a ser conquistada. Mas aqui há uma infinidade de vidas infinitamente felizes a serem conquistadas, uma chance de ganhar contra um número finito de chances de perder; ora, o que apostamos é finito.

Jogo é jogo: sempre onde há o infinito e onde não há infinidade de probabilidades de perder contra a chance de ganhar, não há como hesitar, é preciso dar tudo. E, assim, quando somos forçados a jogar, devemos renunciar à razão para preservar a vida, em vez de arriscá-la por um ganho infinito, que é tão provável quanto perder nada.[4]

Claro, Pascal leva o libertino a renunciar à vida nos prazeres terrenos; mais fundamentalmente ainda, ele o incita a renunciar a um tipo específico de raciocínio. Esta renúncia não significa uma simples escolha do irracional contra o racional ou uma afirmação da irracionalidade da fé; a aposta, como antecipado, é baseada na valorização da vida, que é um procedimento racional-matemático.

Portanto, apostar contra a existência de Deus equivaleria a renunciar à razão. Ao mesmo tempo, ao aguçar a oposição entre aposta e prova, Pascal insiste de maneira não filosófica que a essência da fé não é a razão ou o pensamento, que estariam separados do corpo, mas o afeto, a união do pensamento e do corpo.

O principal objetivo da aposta é, portanto, despertar a paixão da crença, fortalecer a religião como um afeto duradouro no corpo. Para isso, a decisão do libertino sobre a existência de Deus é insuficiente; o que é necessário é a internalização da compulsão sob a qual se deve apostar (e Pascal, como veremos, insiste nesse ponto).

Quando Pascal aconselha o libertino a conter sua dúvida e hesitação, ele escreve as famosas linhas que Louis Althusser – e mais tarde Slavoj Žižek –, usou para ilustrar a natureza da ideologia: “veja-se a maneira pela qual [os crentes] se iniciaram, ou seja, começaram a agir como se acreditassem, tomando a água benta, mandando rezar missas etc. Naturalmente, isso o fará acreditar e o deixará perplexo”.[5] A aposta deve ser suplementada e apoiada pela repetição sem sentido (estúpida ou compulsiva) (o Wiederholungszwang de Freud), que constitui o “osso” estrutural das práticas e dos rituais espirituais.

Os comentadores do texto de Pascal tropeçaram no termo abêtir, que significa “tornar estúpido” e “tornar bestial”. Besta ou animal (bête) aparece aqui como a realização do autômato, refletindo a visão cartesiana de que os animais e os corpos vivos em geral são movidos por um mecanismo automático. Descartes reduzia o corpo a pura extensão geométrica, exemplificando assim uma operação característica tanto da ciência moderna quanto da valorização econômica: “redução material” (reduction de materiel).[6]

O “discurso sobre a máquina” de Pascal segue essa linha, concluindo que “a vida em sua totalidade se reduz a um elemento de valor” (para repetir a formulação bem apontada de Lacan). Uma vez que o incrédulo cessa de raciocinar, renunciando à dúvida (cartesiana) e, em vez disso, se envolve na repetição de rituais e práticas religiosas, ele gradualmente se transforma em um autômato: a materialidade de seu corpo (sua resistência, assim como a resistência de seus pensamentos) é reduzida; além disso, o processo dessa automação religiosa, o devir-autômato do corpo, afasta-se do dualismo cartesiano: mistura pensamento e afeto.

A emergência da fé é um evento afetivo, a materialização do autômato. Pascal, assim, antagoniza o sujeito ao impor um conflito epistemológico entre dois tipos de provas: intelectual e afetiva, racional e apaixonada, demonstrativa e experienciada. A comprovação pelo autômato é mais eficaz porque é, ao mesmo tempo, corpórea e compulsiva, conduz a uma fusão do simbólico e do somático. Portanto, não surpreende que Pascal o localize no coração, órgão que serve de metáfora para a afetividade e para o bombeamento automático de sangue pelo organismo.

Marx observou algo muito semelhante em sua análise da transformação do trabalho sob o capitalismo. O processo de trabalho se assenta igualmente na redução da materialidade, na quantificação das funções corporais e na sua conversão em trabalho, que é ao mesmo tempo força material e medida simbólica do valor da vida. Nesse processo, isola-se uma abstração de todas as formas concretas de trabalho, que Marx chama de trabalho abstrato (e que recebe sua expressão mercantilizada de maneira precisa por meio da comercialização da força de trabalho). O resultado desse processo é que o trabalho se torna o processo compulsivo central no universo capitalista.

Outrossim, aqui, surge um problema político crucial, a saber – novamente de acordo com o insight de Pascal – que é a compulsão do processo de trabalho que gera e reforça a fé do sujeito no sistema econômico capitalista. Assim como o incrédulo de Pascal acaba trabalhando para a religião repetindo rituais sem sentido, a transformação capitalista de corpos vivos em corpos trabalhadores multiplica os crentes em um sistema econômico que, em última análise, é indiferente à preservação da vida e à construção de laços sociais.

O proletariado de Marx é um exemplo paradigmático do autômato corporificado de Pascal; por meio do processo de produção, o sujeito se torna [objetivamente] um crente no sistema capitalista. Isso tem sérias implicações para o caráter presumivelmente revolucionário da classe trabalhadora e responde parcialmente à questão de saber por que essa classe social vota contra seus próprios interesses políticos.[7] A natureza compulsiva do trabalho, que está diretamente ligada ao imperativo moderno de renunciar à vida, é, portanto, um fator essencial para gerar fé no sistema.

Quem trabalha sempre-já acredita – e essa crença é condicionada pelo caráter compulsivo da geração de “trabalho abstrato”, o que é posto como tal em toda forma concreta de trabalho. A análise do trabalho também mostra que, para o sujeito, a única alternativa ao trabalho é a morte – e essa alternativa, ou trabalho ou morte, ou seja, ou renúncia à vida ou à morte, está igualmente no cerne da valorização pascaliana da vida, profundamente capitalista neste mesmo aspecto: do ponto de vista da possibilidade de uma vida excedente, a preservação de qualquer outra vida é um absurdo econômico e um escândalo moral. Indivíduos e sociedades devem abandonar toda esperança de inventar uma forma de vida que não seja organizada em torno da produção de mais-vida – que pertence menos a esses indivíduos e sociedades do que ao sistema capitalista em expansão.

Por meio da automação, então, o corpo é investido na emergência gradual da religião – é isso que a “redução material” representa, em última análise, a programação da matéria ou, no caso de Pascal, a codificação religiosa. Para onde vai o corpo, segue a mente – pois com o surgimento da paixão religiosa, a razão se transforma igualmente; por isso mesmo essa transformação é marcada pela já mencionada expressão “abêtir”. Uma nota editorial da edição francesa dos Pensées de Pascal comenta o seguinte: “Esta palavra “abêtir”, que me chocou, apenas aponta para a “teoria da máquina”. Uma parte do ser humano é mecânica; e esse “pedaço” de seu ser é objeto de treinamento”, ou seja, de adestramento.

A superioridade da inteligência é que ela sabe e reconhece isso: a inteligência pode escolher seus hábitos, mas não escapar deles.[8] “Abêtir” entra num jogo de palavras por meio do qual Pascal abarca o cerne insensato da religião e, ainda por cima, destaca o nascimento do sentido a partir do absurdo (ou a extração do sentido como forma de gozo, que Lacan condensou em seu neologismo “joui-sens” (sentido gozado).

O hábito é algo que precisa ser forçado. Mas o inverso é igualmente verdadeiro: uma vez estabelecido, o hábito é uma compulsão que assume a aparência de espontaneidade, compulsão refinada cujo caráter de força permanece imperceptível, não penetra na consciência e opera silenciosamente em seu fundo, no nexo do mental e do corporal (ou o simbólico e o material).

A máquina de Pascal é, portanto, tanto a organização simbólica da corporeidade quanto a própria corporeidade. E é precisamente nesse sentido que a máquina se sobrepõe à noção de discurso de Lacan, uma estrutura linguística que opera tanto entre corpos (como vínculo social) quanto dentro dos corpos (como discurso). Em uma de suas inspirações cartesianas, que ao mesmo tempo vira Descartes de cabeça para baixo, Pascal escreve:

Não devemos nos reconhecer de modo errado: somos tanto autômatos quanto espírito. Portanto, o instrumento pelo qual se faz a persuasão não é mera demonstração. Quão poucas coisas são demonstradas! As provas convencem apenas o espírito; o costume torna nossas provas mais fortes e mais críveis: ele convence o autômato, que puxa [arrasta] o espírito sem que ele pense nisso.[9]

“Entraîner” é outra palavra que vale a pena enfatizar. De fato, Pascal fala do treinamento religioso, que ocorre independentemente da reflexividade e da intencionalidade conscientes, como repetição compulsiva.[10] Nessas linhas, Pascal antecipa um pouco a famosa definição de Kant do ser humano: “O humano é a única criatura que deve ser criada [erzogen]. Por criação [Erziehung] entendemos “sustento” (cuidado, manutenção), disciplina (amparo) e instrução além do cultivo [Bildung].”[11]

O termo “Erziehen” (criação ou educação) aborda explicitamente a dimensão da compulsão no verbo “ziehen” (puxar). Mas ao contrário de Kant, que visa a educação para que a razão seja posta, Pascal visa a educação para que a paixão o seja. Esta, entretanto, novamente, não se opõe à razão, já que é razão afetiva e, como tal, fonte de uma prova diferente, que se ancora no corpo e na fusão de sentido e gozo (gerando assim o que Lacan chamou de joui-sens).[12]

Pascal e Kant, no entanto, compartilham o reconhecimento de que os seres humanos precisam de disciplina. Eis como Kant apresenta isso: “o ser humano é um animal que, ao viver entre outros de sua raça, precisa de um mestre” que “quebrará sua vontade“.[13] A suspeita de Kant era que os seres humanos são fundamentalmente antissociais (uma “raça de demônios“, como ele escreve em outro lugar), pois a sua vontade está em contradição com o que ele chama de “vontade geral sob a qual todos podem ser livres“.[14]

O cerne das posições kantiana e pascaliana é que o ser humano é um “animal compulsivo”, um ser cuja vida deve contida por um mestre; e este nem precisa ser outro ser humano; ao contrário, como mostra Pascal, o melhor mestre é de fato uma abstração, precisamente uma forma de repetição automatizada ou compulsiva. A fonte dessa compulsão, em suma, não deve estar localizada em outro ser humano, mas no vínculo simbólico entre eles.

Pascal aponta isso quando confronta o incrédulo com o caráter imperativo de uma aposta: “Sim, mas é preciso apostar [il faut parier]. E isso não é voluntário, pois você está a bordo[15] [vous êtes embarque]”. Sim, o incrédulo já está sempre a bordo. Quando confrontado com o imperativo “isso não é voluntário”, ele já não pode escolher não apostar.

Ao buscar um argumento para a existência de Deus na probabilidade, somos instados a avaliar as consequências que decorrem da decisão de investir toda a nossa vida em uma aposta a favor ou contra a existência divina. Pascal foi um pioneiro do capitalismo com sua combinação única de matemática (o cerne da revolução científica moderna) e a produção do sentido religioso como excedente, que cresce na e pela compulsão.

Ele fez do além, cuja existência é pressuposta pela religião, uma questão de cálculo. O além pode ser calculado e, ao torná-lo calculável, ele é integrado no aqui e no agora. Essa integração acaba por produzir o objeto pelo qual a modernidade está obcecada: o mais-objeto atualizado pelo mais-valor.

A aposta de Pascal é um jogo e a ligação entre jogar e divertir é mais evidente em francês: jouer (jogar) é apenas uma mudança metonímica de jouir (aproveitar).[16] Mas no cenário de Pascal, um detalhe chamou a atenção de Lacan, que é a noção de felicidade, projetada no futuro e apresentada como um “infinito de vida infinitamente feliz”. Para Pascal, o libertino deve apostar porque está em jogo a sua felicidade futura, e somente apostar em Deus abre a possibilidade de obter uma vida sem fim além da vida caracterizada pela felicidade terrena.

Não há felicidade fora do jogo; mas isso também implica que a felicidade é uma chance (sorte para poucos sortudos). Além disso, neste jogo de azar é preciso trabalhar – submeter-se ao autômato, entrar em um processo de trabalho compulsivo – em outras palavras, é preciso trabalhar para a felicidade, que permanece sempre uma promessa. Que o trabalho leva à felicidade é outro componente essencial da moralidade moderna, um axioma ideológico da Eudaimonia capitalista.

Mas, como mostra a hesitação do libertino, há uma assimetria embutida na aposta; todos os riscos recaem sobre quem aposta, e isso não é estranho à função de mestre no pensamento de Pascal, aquele que expõe seu destinatário ao risco:

Pascal não sabe o que diz quando fala da vida feliz, mas podemos ver aí a sua encarnação. O que mais poderia ser apreendido sob o termo “heureux”, senão precisamente a função que se encarna no mais-gozar? Além disso, não devemos apostar em um além para saber o que está em jogo onde o mais-gozo se revela em forma nua. Isso tem um nome – chama-se perversão.[17]

A perversão denota uma estrutura do sujeito que, em nome do Outro (no caso de Pascal, o Deus cristão), voluntariamente se reduz a objeto para responder à demanda do Outro. Ou, como nos ensina a psicanálise, o sujeito perverso se oferece ao Outro como objeto de gozo. O que Pascal não sabe é que essa é a verdade do que ele chama de felicidade; em sua crença apaixonada, ele esquece que está defendendo a perversão sistêmica, que consiste em colocar o incrédulo em uma posição onde a única escolha possível é deixar sua vida, e, portanto, a si mesmo, ser consumida pelo Outro.

Ao apostar em Deus, supostamente garantimos a possibilidade de adquirir uma vida que estará inserida em um processo de crescimento constante; assim optamos também por abandonar uma vida cujo limite é a morte. O objetivo da aposta é que existe uma vida sem negatividade; ora, Pascal insiste que, pela mera renúncia a uma vida marcada pelo vazio, pela finitude e pela morte, já conquistamos uma vida melhor e mais feliz, pois a vida em conformidade com a moral permanece mais valorizada do que a vida fragmentada nos prazeres, mas também no desespero e na infelicidade. No sistema da fé, a vida excedente não é meramente uma promessa, mas é produzida ativamente aqui e agora; devemos apenas renunciar a uma multidão de prazeres terrenos sem sentido e fúteis. Mas há um truque aqui, que Lacan aborda da seguinte maneira:

Em suma, você já ouviu falar de algo que está na aposta e que soa assim, renunciar aos prazeres. Isso é dito e repetido no plural. […] é o próprio princípio, sobre o qual se instala uma certa moral que se pode qualificar de moderna. […] A empresa capitalista, para nomeá-la adequadamente, não coloca os meios de produção a serviço do prazer.[18]

A moral moderna está assentada num corte e este não implica apenas na renúncia ao prazer, mas também substitui uma multiplicidade de prazeres por uma única forma de prazer: o mais-gozo compulsivo.[19] O termo plus-de-jouir, com o qual Lacan capta o objeto da aposta de Pascal, contém a ambiguidade de que, quando pronunciado, significa tanto “mais gozo” quanto “não mais gozo”.

Por meio da aposta, então, renunciamos ao gozo em nome do gozo e, em troca, recebemos uma promessa de gozo, um gozo constantemente dividido entre ‘ainda não’ e ‘não mais’, em suma, um gozo vazio. O sujeito divide-se entre o sentimento de ter perdido algo e o sentimento de ter ganho algo, apanhado entre a perda de nada e o espectro do excedente que, em última instância, é mera promessa. Este, em suma, é o paradoxo em que se encontra o libertino de Pascal. Lacan comenta essa situação por meio de uma observação marxista: que o capitalismo põe os meios de produção, não a serviço do prazer (subjetivo), mas a serviço de (gozo sistêmico), em que o sujeito está sempre perdido.

A separação dos meios de produção do prazer significa também sua separação da satisfação das necessidades vitais. Renunciar aos prazeres significa, em última instância, renunciar às condições básicas para a manutenção da vida. E como o capitalismo exige que seus sujeitos renunciem justamente a esse aspecto vital da organização social da produção (economia), ele se estabelece como um projeto antissocial e como um sistema sistemicamente organizado anti-socialidade.

Com a solidificação da moral moderna, o que se renúncia é a dimensão social do prazer, ou simplesmente o prazer social. Em troca, impõe-se um tipo de gozo antissocial, que como tal não pertence ao sujeito da renúncia, mas ao próprio sistema capitalista. O sistema repousa sobre uma renúncia imposta à vida; exige que todos renunciem à preservação e ao cuidado da vida – a própria, a dos outros e a da sociedade.

Junto com a vida, qualquer sistema do bem comum e da sociedade como espaço em que esse bem comum é praticado, é excluído ou proibido. Por meio dessa renúncia, o sujeito é “convidado” a deixar-se consumir pelo sistema, ou seja, transformar-se no gozo sistêmico que é o mais-valor. Para repetir o argumento de Lacan, estabelece-se assim uma ordem socioeconômica que reforça o vínculo entre prazer e perversão, na qual aquele que vive segundo essa moral aceita ser transformado em gozo do Outro.

Mas, em vez de colocar todo sujeito na posição de perversão, a moral moderna estabelece um regime compulsivo em que o sujeito permanece alienado e suspenso na posição de renúncia, onde o trabalho finalmente encontra seu lugar. O fragmento de Pascal sobre a aposta certamente retrata uma situação em que o ato da conversão integra o descrente em uma máquina extrativista que suga a vida do sujeito e a insere numa mais-vida sistêmica.

Novamente, o mestre é aquele que vive da vida dos outros e, ao fazê-lo, tanto mais vivo se torna quanto mais vida extrai da inesgotável multiplicidade dos corpos vivos. Se Pascal é um mestre, então ele o é apenas à medida em que não é um súdito, na medida em que sua perversão – o jansenismo – o torna indiferente se ele será salvo ou não. Ao se submeter à máquina, ele se sacrificou a Deus sem necessidade ou esperança de recompensa. A sua felicidade é a felicidade do sistema.


[1] Se quisermos encontrar uma ligação com o capitalismo, vem a ser aqui mesmo. A ligação entre religião, jogo e especulação é uma característica essencial do capital – todo investimento implica em risco. A estrutura e a função da aposta de Pascal ilustram o fundamento do laço social capitalista na necessidade de renunciar à vida, bem como à socialidade, ou seja, todo o quadro em que a vida é sustentada. A “outra vida” na qual se deve investir toda a existência – a vida do capital, a vida das abstrações financeiras entendida como crescimento econômico contínuo – torna-se não apenas mais valorada, mas a única vida “verdadeira”.

[2] Lacan, D’un Autre à l’autre, p. 18.

[3] Blaise Pascal, Pensées (Paris : Classiques Garnier, 1991), p. 469.

[4] Pascal, Pensées, p. 469.

[5] Ibid., p. 471. Ver também Slavoj Žižek, The Sublime Object of Ideology, Londres: Verso, 1989, p. 38-9.

[6]A redução material significa que a lógica começa no momento preciso da história em que alguém, que conhece essas coisas, substitui certos elementos da linguagem, que funcionam em sua sintaxe natural, por letras simples. Ora, é isso que fundamenta a lógica” (Lacan, D’un Autre à l’autre, 34). Outro exemplo da redução material é a mercantilização da força de trabalho, que reduz toda corporalidade a uma força de trabalho quantificada e valorizada medida em tempo de trabalho que custa reproduzi-la; a mesma redução está contida na aposta de Pascal, onde toda a vida é reduzida a um valor mínimo (para Pascal, igual a ‘zero’), que é investido (renunciado) na escolha da existência divina.

[7] Isso foi o que concluíram os comentaristas após eventos políticos como o Brexit ou as eleições americanas de 2016. Claro, deve-se acrescentar imediatamente que essa interpretação era prematura e, à sua maneira, refletia o desprezo das “elites” liberais pela classe trabalhadora. Os membros da classe trabalhadora que contribuíram com seus “votos de protesto” em ambos os casos foram meramente arrastados para a revolta reacionária mais ampla da classe média branca e dos fundamentalistas de mercado. Não é só a classe trabalhadora que vota contra seus próprios interesses; todos que aceitam o status quo capitalista como o único jogo no mundo também caem nessa armadilha.

[8] Pascal, Pensées, p. 471. A última observação poderia estender-se à noção de liberdade: a liberdade é sempre relacional, ou seja, não apenas limitada pela liberdade dos outros, como muitas vezes se repete, mas mais fundamentalmente, inserida num sistema de constrangimentos que a torna possível tanto liberdade. Recursivamente falando, a liberdade é a possibilidade de trabalho transformador sobre as restrições da liberdade. Não há liberdade onde as restrições da liberdade não possam ser alteradas, ou mais precisamente, onde a luta por uma restrição diferente da liberdade e, portanto, por uma liberdade diferente é tornada impossível. A esse respeito, o capitalismo é um sistema que trabalha para a abolição total das condições de possibilidade da liberdade, apesar de todo o barulho liberal e neoliberal sobre “liberdade sem fronteiras”, com o que, é claro, eles querem dizer antes de tudo “liberdade do mercado’. A condição de liberdade para o mercado desregulado, que o (neo)liberalismo almeja, é a abolição da liberdade relacional, que está ligada a pelo menos dois outros elementos, a igualdade e a solidariedade (“fraternidade”).

[9] Pascal, Pensées, p. 451.

[10] Segundo Freud, a repetição compulsiva é comum às práticas religiosas e à neurose obsessiva – ver Sigmund Freud, Zwangshandlungen und Religions übungen, in Studienausgabe , vol. 7, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2000, p. 21. No cerne de ambas as ordens compulsivas, a neurose como “religiosidade individual” e a religião como “neurose obsessiva universal”, está precisamente a renúncia da pulsão (Triebverzicht).  Por isso mesmo o “Triebverzicht” deve ser entendido como a renúncia construída na própria pulsão, ou seja, como a própria renúncia pulsional à satisfação constitutiva daquilo que Freud alhures chama de “Triebleben”, a vida pulsional.

[11] Immanuel Kant, Über Pädagogik, en Werkausgabe, vol. XII (Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991), p. 697.

[12] Pascal é aqui uma figura do contra-iluminismo avant la lettre; ele até nos dá uma visão da lógica das teorias da conspiração, onde crença, prova e afeto são igualmente fundidos em um.

[13] Immanuel Kant, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltb ürgerlicher Absicht, em Werkausgabe, vol. XI. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991, p. 40.

[14] Kant, Idee zu einer allgemeinen Geschichte, p. 40.

[15] Pascal, Pensées, p. 469.

[16] O fato de o prazer surgir no processo do jogo é ilustrado na descrição de Freud do jogo “fort-da” em Além do Princípio do Prazer. Segundo a interpretação de Freud, seu neto subverte um acaso desagradável (a partida de sua mãe) e assim transforma a perturbação do prazer em fonte de prazer, a renúncia à satisfação em fonte do que Lacan ocasionalmente chama de “outra satisfação” (por meio do discurso) e, assim, por meio da repetição na ordem simbólica.

[17] Lacan, D’un Autre à l’autre, p. 23.

[18] Ibidem, p. 109.

[19] Pascal pode ser contrastado com outro pioneiro mais óbvio do capitalismo e fundador de uma moralidade capitalista diferente, Adam Smith, que, em contraste com Pascal, promete a salvação universal aqui e agora, garantida pela Providência do mercado. Temos, assim, o cenário da aposta (religiosa) e da Graça de um lado – e do conhecimento (econômico) e da Providência do outro. Smith está na origem de uma tradição que pressupõe a estabilidade interna, a autoregulação e o conhecimento (racional) do mercado; conhecimento e moralidade coincidem na Providência, que é um conceito mais importante nos escritos de Smith do que a notória “mão invisível”. Com a noção de Providência, Smith assume que os mercados são inerentemente sociais, que existe algo como uma sociedade de mercado: a mão invisível ou mercado providencial garante a distribuição justa da riqueza forçando os ricos a um comportamento social, voltado para a justiça econômica.