Da noção de capital financeiro

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

O capital financeiro e a financeirização são fenômenos conexos que se manifestaram no século XX, sem terem nascido ab ovo nem de novas hegemonias de classe nem de grandes mudanças de política econômica, historicamente datadas. Não podem, portanto, serem vistos como desvios sociais, políticos ou econômicos que não existiriam em um capitalismo alternativo e melhor, tal como costuma pensar certas correntes do marxismo vulgar e do keynesianismo crítico.

Eis que são processos inerentes ou próprios da lógica de desenvolvimento do capital, os quais não podem ser anulados ou revertidos ao bel-prazer de políticas econômicas alternativas. Ainda que estas em geral possam condicioná-los ou modificá-los, respondem, com graus de liberdade, às exigências estruturais e às crises do próprio capitalismo. Para entender tais fenômenos intrínsecos ao devir histórico desse sistema é preciso voltar à apresentação dialética em que consiste O capital. Contudo, é justo começar discutindo escritos do autor que examinou essa questão exaustivamente.

Continuar lendo

Tocar os corpos, mudar o mundo

IHU: Vivemos um tempo de mal-estar generalizado. Paradoxalmente, o mesmo sistema que o provoca nos oferece os remédios. No entanto, estes anestésicos ou alívios imediatos prometidos nos impedem de formular as perguntas necessárias para mudar desde a raiz as condições de vida daninhas. Como sair desta espiral catastrófica?

Em Capitalismo libidinal (Ned Ediciones, 2024), Amador Fernández-Savater nos propõe, de forma machadiana, trilhar um novo caminho para estar no mundo de uma forma diferente, reapropriando o nosso próprio mal-estar como energia de mudança e transformação. Chama este caminho de “políticas do desejo”. Eis que “As ideias que não tocam os corpos deixam o mundo igual”.

Spinoza dizia que a essência do ser humano é desejar, o que chamava de apetites naturais. Contudo, quando essas necessidades biológicas se tornam desejos socialmente construídos, e que demandam algo que não precisamos, tornam-se capitalismo.

Continuar lendo

Felicidade subversiva

A felicidade talvez tenha sido a maneira ocidental de discutir o que hoje é chamado de “bem viver” ou de “vida bem gostosa”. Ou seja, discutir a própria definição da vida boa

Amador Fernández-Savater[1] – 20/05/2023 – CTXT

Abraçando a nova direção / Acácio Puig

“Povos felizes não têm história”

A felicidade, hoje, pressiona negativamente o pensamento crítico. Eis que é considerada como uma ilusão. Mas também, soe ser pensada como um mandato obrigatório, como um sonho complicado da classe média: “seja feliz!”.

Postei no Facebook uma citação de Pasolini a favor da felicidade e alguém imediatamente respondeu: “Pasolini capacitista! – a felicidade está cancelada”.

Continuar lendo

Do “homem”, talvez, ao homem (sujeito)

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

No pequeno texto que se segue faz-se um comentário sobre o escrito de Ian H. Angus, A dissolução do humanismo marxista (Angus, 2018) publicado neste blog (aqui e aqui), com o objetivo de mais bem compreendê-lo. Esse filósofo norte-americano parte da constatação de que, nos anos sessenta do século passado, o marxismo relevante – para além do marxismo soviético que dominava nos partidos comunistas influenciados pelo estalinismo – veio a ser um “humanismo marxista” ou, o que seria o mesmo, um “marxismo existencial”.

Para essa corrente, que prosperou às margens da corrente principal bem mais volumosa, haveria uma essência humana, mas ela estaria perdida por enquanto nas formas de vida social existentes e que existiram no passado. Se está assim negada pelas condições históricas prevalecentes até a atualidade, pode ser recuperada eventualmente por meio de uma luta contra essas condições, visando mudá-las.  

Continuar lendo

A dissolução do marxismo humanista (I)

Publica-se aqui uma tradução de um artigo de Ian H. Angus The dissolution of Marxist humanism em duas partes para, numa data em sequência, publicar também um comentário do autor deste blogue sobre o conceito de “homem” – humanitas – em Karl Marx.

Autor: Ian H. Angus [1]

1.Introdução

Em 1906, Benedetto Croce, em seu O que está vivo e o que está morto na filosofia de Hegel, questionou a filosofia de uma nova maneira. Em vez de perguntar o que é verdadeiro e o que é falso na linguagem estabelecida da filosofia, ele colocou a questão de uma maneira que era imediatamente histórica: o que era verdadeiro poderia ter se tornado falso e o que era falso poderia ter se tornado verdade. Perguntava sobre o aqui e agora da filosofia, não sobre o seu conteúdo eterno.

É certo que essa referência histórica já existia em Hegel na medida em que a verdade era entendida como algo que vai surgindo, mas também era vista como culminação da lógica – isto é, a verdade encapsulava a história mesmo emergindo dela. Croce afirmou implicitamente a incompatibilidade entre lógica e história.

Continuar lendo

A ideia de progresso à luz da psicanálise

Autor: Herbert Marcuse[1]

Permitam-me que defina desde já os dois principais tipos de conceito de progresso, característicos do período moderno da cultura ocidental. Em primeiro lugar, o progresso é definido de forma predominantemente quantitativa e se evita ligar o conceito a qualquer valoração positiva. O progresso significa, portanto, que no curso da evolução cultural, apesar de muitos períodos de regressão, os conhecimentos e habilidades humanas geralmente crescem, e que, ao mesmo tempo, sua aplicação no sentido de dominação do ambiente humano e natural tornou-se cada vez mais universal. O resultado desse progresso é o aumento da riqueza social.

À medida que a cultura continua a se desenvolver, aumentam também as necessidades dos homens e os meios para as satisfazer, deixando em aberto a questão de saber se esse progresso também contribui para a plena realização do homem, para uma existência mais livre e feliz. Esse conceito quantitativo de progresso pode ser chamado de conceito de progresso técnico e contrastado com o conceito qualitativo de progresso, tal foi elaborado particularmente pela filosofia idealista, talvez mais vigorosamente por Hegel.

Continuar lendo

Em guerra com o “meu” neoliberalismo

Autor: Amador Fernández-Savater [1]

Vários exercícios de “economia libidinal” são ensaiados neste livro [Capitalismo Libidinal [2]] O que se quer dizer com esse título? O que ele significa?

Em primeiro lugar, uma espécie de escuta, acolhida de fenômenos que chamam a atenção, não apenas os discursos ou as identidades, os cálculos ou os interesses, mas também às posições do desejo e as flutuações de humor, desejos e relutâncias, assim como os estados anímicos.

Jean-François Lyotard, em seu livro intitulado Economia Libidinal, nos ensina a distinção entre signos e intensidades: o que é dito e o que acontece, o nível de informação e o nível das forças. Nosso ouvido, hipersemiotizado, registra (e acredite-se!) as retóricas, as declarações, as gesticulações, mas deixa escapar os funcionamentos, as ações e os movimentos que deslizam “por baixo”. É um ouvido incauto, que fetichiza sinais, que acredita no que é dito e mostrado, leva as coisas ao pé da letra. Mas não basta falar de algo (revolução, comunidade, cuidado) para que ele exista. E vice-versa: há existências imperceptíveis, sem nome, sem termo de referência, sem rótulo.

Continuar lendo

A onda reacionária e a pulsão de morte

Autor: Amador Fernández-Savater [1] – CTXT – 24/06/2023

O clima físico e afetivo hoje é revanchista, desigual, sacrificial para com os mais fracos. É aí que as mensagens da direita pegam. Não tanto por causa de sua força de convicção, persuasão ou sedução, mas porque ressoam com corpos tensos

  “Só o amor nos permite escapar da repetição” (Jorge Luis Borges)

O que significa a “onda reacionária” globalmente, aqui na Espanha [e na América Latina]? Como entender esse fenômeno complexo e multifacetado para melhor combatê-lo?

Proponho esta interpretação: a onda reacionária está tentando sustentar um mundo em crise, um modelo que está vazando para todos os lados.

O que hoje se chama de “policrise” (a combinação das crises climática, energética, alimentar, econômica etc.) refere-se fundamentalmente a uma “crise de presença”, entendida como a crise do modo de vida ocidental baseado no constante impulso de expansão, crescimento e conquista. Uma crise civilizacional de alcance planetário.

Continuar lendo

Uma teoria nas nuvens

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Segundo Yanis Varoufakis, em seu espantoso Technofeudalism: What Killed Capitalism[2], o capital agora está nas nuvens; para delírio da pós-modernidade, afirma peremptoriamente que o capital não se encontra mais tanto nas máquinas, mas se transformou em algoritmo e, como se fosse fumaça, subiu aos céus. É assombroso, já que ao ficar junto das estrelas, o danado desempregou os mercados. É também admirável porque, assim, o tinhoso conseguiu expandir o seu escopo: agora não explora só os trabalhadores assalariados na esfera da produção mercantil, mas arranca o couro também dos capitalistas. São afirmações tão abissais que é preciso provar que foram ditas:

 “O capital-nuvem (cloud capital) matou os mercados e os substituiu por uma espécie de feudo digital, onde não apenas os proletários — os precários —, mas também os burgueses e os capitalistas vassalos, estão produzindo mais-valor (…) [para certos senhores]. Eles estão produzindo aluguéis (rent). Eles estão produzindo aluguel de nuvem, porque o feudo agora é um feudo de nuvem, para os donos do capital de nuvem”.[3]

Continuar lendo

Teorias da taxa de juros

Autores: Stavros Mavroudeas[1] & Th. Chatzirafailidis[2]

Três abordagens distintas

Existem três abordagens principais no pensamento econômico sobre a determinação da taxa de juros. Primeiro, analisaremos as duas mais importantes teorias burguesas da taxa de juros e, em seguida, apresentaremos separadamente a relevante teoria de Marx. Como será argumentado mais adiante, essa distinção é feita não apenas por razões de apresentação, mas principalmente por razões de substância científica.

A primeira teoria burguesa dos juros é a teoria neoclássica dos fundos emprestáveis. Sua ideia central gira em torno da existência de uma taxa natural de juros. Isso significa que a taxa de mercado tende a se aproximar da primeira no longo prazo. Assim, o ônus do ajuste “recai” sobre a taxa de mercado sempre que a poupança divergir dos investimentos. Mais detalhadamente, quando os investimentos superam a poupança e a taxa de juros de mercado é menor que a natural, a primeira aumenta até igualar a segunda, de modo a trazer a equalização da poupança com os investimentos. O mecanismo de ajuste inverso ocorre quando o investimento fica aquém da poupança, de modo que, no final, a economia sempre acaba em um estado de equilíbrio.

Continuar lendo