Da noção de capital financeiro

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

O capital financeiro e a financeirização são fenômenos conexos que se manifestaram no século XX, sem terem nascido ab ovo nem de novas hegemonias de classe nem de grandes mudanças de política econômica, historicamente datadas. Não podem, portanto, serem vistos como desvios sociais, políticos ou econômicos que não existiriam em um capitalismo alternativo e melhor, tal como costuma pensar certas correntes do marxismo vulgar e do keynesianismo crítico.

Eis que são processos inerentes ou próprios da lógica de desenvolvimento do capital, os quais não podem ser anulados ou revertidos ao bel-prazer de políticas econômicas alternativas. Ainda que estas em geral possam condicioná-los ou modificá-los, respondem, com graus de liberdade, às exigências estruturais e às crises do próprio capitalismo. Para entender tais fenômenos intrínsecos ao devir histórico desse sistema é preciso voltar à apresentação dialética em que consiste O capital. Contudo, é justo começar discutindo escritos do autor que examinou essa questão exaustivamente.

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O mau estado do bom capitalismo – é isso?

Autor: Michael Roberts

The next recession blog – 28/03/2024

O livro The State of Capitalism: Economy, Society, and Hegemony – em português, O Estado do Capitalismo: economia, sociedade e hegemonia – (Verso, 2023), é uma obra ambiciosa.  Foi escrito por um grupo autodenominado de Coletivo, sob a liderança do professor Costas Lapavitsas, da Universidade SOAS, de Londres. A obra busca analisar todos os aspectos do capitalismo no século XXI a partir de uma perspectiva marxista.  Foi amplamente elogiado por nomes como Yanis Varoufakis e Grace Blakeley, estrelas luminosas entre os economistas de esquerda.

Segundo os autores, o livro “é o resultado de uma escrita coletiva que combina diferentes tipos de conhecimento e experiência”.  Eis que, durante vários anos, a Rede Europeia de Investigação em Política Social e Econômica (cuja sigla em inglês é EReNSEP) tem sustentado um esforço voluntário por parte de seus membros…. A escrita é coletiva, mas expressa uma voz comum.”

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Finança e capital industrial

Autores: Scott Sehon e Stephen Maher[1]

Tradução: Sofia Schurig (Jacobina, 5/04/2024).

Hoje, é praticamente dado como certo por figuras políticas desde Hillary Clinton até Bernie Sanders que o aumento da finança nas últimas décadas ocorreu às custas da indústria. Essas opiniões também são amplamente difundidas entre os economistas políticos críticos, talvez o mais proeminente deles seja Robert Brenner e Cédric Durand. Seu surgimento, diz Durand, está “enraizado no esgotamento da dinâmica produtiva nas economias avançadas e na reorientação do capital para longe do investimento produtivo doméstico”. Segundo essa visão, o capital industrial “real” foi superado pelas atividades “fictícias” da finança. O aumento desta última é um sintoma de uma “fase tardia” do capitalismo, um prenúncio da disfunção e declínio do sistema.

Para Brenner e Durand, o aumento deste setor financeiro corrosivo dependeu crucialmente de sua capacidade de capturar o estado – levando à formação do que Brenner e Dylan Riley chegaram a chamar de uma nova forma de capitalismo, “capitalismo político”. Segundo esses teóricos, isso tem sido talvez acima de tudo evidente na política de flexibilização quantitativa (QE) do Federal Reserve ao longo de décadas: “infusões monetárias ininterruptas dos bancos centrais”, que Durand vê como resultado de “chantagem” por parte de um setor financeiro corrosivo.

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A entropia requer o decrescimento

Autor: Crelis Rammel[1]

Introdução

Uma fera voraz devora o equivalente a um monte Everest inteiro de recursos a cada 20 meses. Também acelera o seu metabolismo, pois vai reduzir esse prazo para apenas 10 meses nas próximas duas décadas.[2] Ao encher a barriga, a fera esgota seu ambiente e o sobrecarrega com resíduos, interrompendo os sistemas naturais de renovação de recursos e gestão de resíduos. Em última análise, aniquila seu próprio habitat. Refiro-me, naturalmente, ao capitalismo global.

Esse sistema exige acumulação contínua de capital e vacila quando se vê prejudicado nesse processo. A resposta típica à crise ecológica não consiste, portanto, em restringir o crescimento econômico, mas em depositar toda a esperança na eficiência, circularidade, desmaterialização, descarbonização e outras inovações verdes orientadas para o lucro dentro do capitalismo.

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Uma teoria crítica da compulsão econômica

Autor: Werner Bonefeld[1]

Introdução

As preocupações do livro podem ser mais bem resumidas pela seguinte citação das Palestras sobre história e liberdade de Adorno, que proferiu na Universidade de Frankfurt, em 1964-65:

Dado o estado atual do desenvolvimento técnico, o fato de que ainda haja incontáveis milhões que sofrem fome e carência deve ser atribuído às formas de produção social, às relações de produção, e não à dificuldade intrínseca de atender às necessidades materiais das pessoas.

A concepção de Immanuel Kant do Iluminismo como meio de fuga da humanidade de sua imaturidade autoimposta ainda possui astúcia subversiva. Esse filósofo não fala apenas da imaturidade autoimposta tal como está posta pelo homem. Ele também vê a humanidade como um sujeito que pode se libertar da imaturidade implicada em suas condições sociais.

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Uma teoria nas nuvens

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Segundo Yanis Varoufakis, em seu espantoso Technofeudalism: What Killed Capitalism[2], o capital agora está nas nuvens; para delírio da pós-modernidade, afirma peremptoriamente que o capital não se encontra mais tanto nas máquinas, mas se transformou em algoritmo e, como se fosse fumaça, subiu aos céus. É assombroso, já que ao ficar junto das estrelas, o danado desempregou os mercados. É também admirável porque, assim, o tinhoso conseguiu expandir o seu escopo: agora não explora só os trabalhadores assalariados na esfera da produção mercantil, mas arranca o couro também dos capitalistas. São afirmações tão abissais que é preciso provar que foram ditas:

 “O capital-nuvem (cloud capital) matou os mercados e os substituiu por uma espécie de feudo digital, onde não apenas os proletários — os precários —, mas também os burgueses e os capitalistas vassalos, estão produzindo mais-valor (…) [para certos senhores]. Eles estão produzindo aluguéis (rent). Eles estão produzindo aluguel de nuvem, porque o feudo agora é um feudo de nuvem, para os donos do capital de nuvem”.[3]

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Teorias da taxa de juros

Autores: Stavros Mavroudeas[1] & Th. Chatzirafailidis[2]

Três abordagens distintas

Existem três abordagens principais no pensamento econômico sobre a determinação da taxa de juros. Primeiro, analisaremos as duas mais importantes teorias burguesas da taxa de juros e, em seguida, apresentaremos separadamente a relevante teoria de Marx. Como será argumentado mais adiante, essa distinção é feita não apenas por razões de apresentação, mas principalmente por razões de substância científica.

A primeira teoria burguesa dos juros é a teoria neoclássica dos fundos emprestáveis. Sua ideia central gira em torno da existência de uma taxa natural de juros. Isso significa que a taxa de mercado tende a se aproximar da primeira no longo prazo. Assim, o ônus do ajuste “recai” sobre a taxa de mercado sempre que a poupança divergir dos investimentos. Mais detalhadamente, quando os investimentos superam a poupança e a taxa de juros de mercado é menor que a natural, a primeira aumenta até igualar a segunda, de modo a trazer a equalização da poupança com os investimentos. O mecanismo de ajuste inverso ocorre quando o investimento fica aquém da poupança, de modo que, no final, a economia sempre acaba em um estado de equilíbrio.

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O capitalismo “já foi”?

Publica-se aqui uma resenha irônica e desdenhosa de quatro livros abaixo mencionados que analisaram criticamente o capitalismo após a crise econômica de 2008-09 e a pandemia de 2020-21 para anunciar que ele já foi superado – mesmo estando aí produzindo mercadorias, explorando trabalhadores e estraçalhando vidas.

Apesar do viés social-democrata pós-moderno do autor, apesar de falta de qualidade crítiica, ele fornece algumas informações que ajudam a fazer uma eventual avaliação desses folhosos. Segundo ele, esses livros surgiram porque essas duas crises ‘desferiram golpes devastadores em uma sociedade de mercado que já estava cambaleante – esvaziada que fora pela “financeirização” ou pela “desmaterialização” dos ativos”. Veja-se, pois, o que disseram em resumo.

O que foi o capitalismo?

Autor: James Livingston[1] – Project Syndicate – 16/02/2023

O que não acaba hoje em dia? O que não está à beira da extinção? A lista de isenções não é longa e, nós – seres humanos –, não estamos certamente nela.

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Bem-vindo ao mundo da policrise

Autor: Romaric Godin [1]– Sinpermiso – 02/01/2024

O historiador Adam Tooze ressuscitou a noção de “policrise”, que se tornou um tema favorito das elites políticas e econômicas mundiais. Consideramos, abaixo, a ascensão e queda dessa noção da moda.

Bruno Le Maire, Ministro das Finanças de França desde 2017, não é um escritor prolixo. Mas, nas horas vagas, ele também é profeta. No outono de 2021, quando apresentou a Lei das Finanças de 2022, disse aos deputados que o seu orçamento era a primeira pedra de uma “grande década de crescimento sustentável”. Foi um momento de otimismo: a economia global parecia estar se recuperando rapidamente da crise sanitária. Os comentários de Le Maire ilustram a euforia generalizada que aflorou nos círculos empresariais e entre os principais economistas após a superação da crise sanitária.

No dia 1º de janeiro de 2021, quando as feridas da Covid ainda estavam abertas, um dos principais colunistas do Financial Times, jornal da City de Londres, Martin Sandbu, abriu o ano novo de então com um texto intitulado: “Adeus 2020, ano do vírus; olá ‘loucos anos vinte’.” O termo final da alocução (…) refere-se à década de 1920, que, pelo menos nos Estados Unidos, foi um período de forte crescimento e de nascimento da sociedade de consumo. A posição de Martin Sandbu parecia simples. Os consumidores, tentando esquecer a crise sanitária, tal como um século antes tinham tentado esquecer os horrores da guerra, embarcaram num frenesi de gastos, colocando a economia num círculo virtuoso, ou seja, “na maior prosperidade num século”.

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Intepretação da forma valor em Marx

Autor: Michael Roberts

Como mencionei em uma nota recente em meu blogue The next recession, na conferência Historical Materialism em Londres, em novembro de 2023, foi lançado o novo livro de Fred Moseley, Marx’s Theory of Value. Ele discute como interpretar o primeiro capítulo de O Capital. E faz uma crítica à interpretação de Michael Heinrich no que se refere à forma valor. Michael Heinrich e Winfried Schwarz (marxista alemão crítico da interpretação de Heinrich) participaram da apresentação do livro.

O livro de Moseley é um exame da teoria do valor de Marx contida no capítulo 1 de O capital, quase parágrafo por parágrafo nas seções 1 e 2, e uma crítica detalhada da interpretação de Heinrich sobre o valor enquanto forma de valor, conforme apresentado em seu livro de 2021, How to Read Marx’s Capital, que é uma tradução de seu livro de 2018 Wie das Marxsche Kapital Lesen?

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