A sociedade não existe? Parte III

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Ao invés de concluir

 Lacan repetidamente argumentou que Marx inventou a noção de sintoma e acabou especificando que “há apenas um sintoma social – cada indivíduo é realmente um proletário, pois nenhum discurso pode fazer um laço social” (Lacan, La troisième). Poder-se-ia imediatamente censurar Lacan por repetir o privilégio dado por Marx ao trabalhador industrial, excluindo assim outros sintomas sociais, tais como, por exemplo, a mulher ou o escravo colonial. Mas talvez essas figuras distintas apontem para um “comum negativo”, por assim dizer, uma figura da subjetividade em estado de exclusão do laço social.

Então, o “proletário de Lacan” se colocaria como um possível nome genérico para essa subjetividade foracluída. O próprio Marx exemplificou essa rejeição na figura social do trabalhador industrial e, de maneira mais geral, insistiu que o capitalismo impõe relações sociais entre coisas (mercadorias) e não, diretamente, entre subjetividades. Nesse sentido, a economia capitalista realiza uma espécie de foraclusão do sujeito homóloga àquela operada pela ciência moderna (ver Lacan, Écrits). Depois de fazer essa observação sobre o proletário, Lacan passa a apontar a especificidade da psicanálise em comparação com outros discursos e/ou vínculos sociais:

Socialmente, a psicanálise tem uma consistência diferente dos outros discursos. É um elo entre dois [indivíduos]. Nesse sentido, a psicanálise se coloca no lugar da falta de relação sexual. Isso não basta para fazer dela um sintoma social, já que a relação sexual carece de serem todas as formas de sociedades. Isso está ligado à verdade que estrutura cada discurso. Por isso, aliás, não existe uma verdadeira sociedade fundamentada no discurso analítico. Existe uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. (La troisième).

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A sociedade não existe? Parte II

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Solidariedade e Vida Afetiva

O axioma político-ontológico de Thatcher implica que a soma dos indivíduos (e suas famílias) de forma alguma excede suas partes, que não há excedente social sobre a organização da subjetividade (individualidade) e parentesco (família). Insistir, ao contrário, que existe algo como a sociedade implicaria que o “ser-com” ou o ser social excede e constitui o indivíduo e, consequentemente, que a individualidade não implica indivisibilidade. Eis o que ela disse:

Eles [os fracos, os carentes e os ressentidos] jogam os seus problemas para a sociedade, mas quem é a sociedade? Não existe tal coisa! Existem homens e mulheres individuais e famílias, e nenhum governo pode fazer nada exceto por meio das pessoas e as pessoas olham primeiro para si mesmas

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Criação destrutiva ou risco moral?

Michael Roberts – The next recession blog – 15/03/2022

Enquanto escrevo, os preços das ações e títulos dos bancos regionais dos EUA estão caindo. E um grande banco suíço internacional, o Credit Suisse, está à beira da falência. Uma crise financeira não vista desde a crise financeira global de 2008 parece estar se desenrolando. Qual será a resposta das autoridades monetárias e financeiras?

Em 1928, o então secretário do tesouro e banqueiro dos EUA, Andrew Mellon, pressionou por taxas de juros mais altas para controlar a inflação e o crédito alimentou a especulação no mercado de ações. Sob seu legado, o Federal Reserve Board começou a aumentar as taxas de juros e, em agosto de 1929, o Fed elevou a taxa a um novo patamar. Apenas dois meses depois, em outubro de 1929, a Bolsa de Valores de Nova York sofreu o pior crash de sua história no que foi chamado de “Terça-feira Negra ”. A história se repete, como a velha destruição criativa ou como um novo episódio de risco moral?

Em 1929, Mellon não se intimidou. Ele aconselhou o então presidente Hoover a “liquidar a mão-de-obra, liquidar as ações, liquidar os fazendeiros, liquidar os imóveis… isso eliminará a podridão do sistema. Os altos custos de vida e a alta qualidade de vida cairão. As pessoas vão trabalhar mais, viver uma vida mais moral. Os valores serão ajustados e as pessoas empreendedoras aprenderão com as pessoas menos competentes.”Além disso, ele defendeu a eliminação de bancos “fracos” como um pré-requisito, ainda que difícil, mas necessário, para a recuperação do sistema bancário. Essa “eliminação” seria realizada por meio da recusa de emprestar dinheiro aos bancos (tomando empréstimos e outros investimentos como garantia) e recusando-se a colocar mais dinheiro em circulação. A Grande Depressão da década de 1930 seguiu-se a um grande colapso bancário.

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A sociedade não existe? Parte I

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Prólogo

Em 1964, a Abadia de Royaumont, em Ilê-de-France, sediou um colóquio sobre Nietzsche, onde Michel Foucault apresentou sua famosa palestra “Nietzsche, Freud e Marx”. Nele, ele argumentou que esses três nomes representam uma ruptura radical na história das técnicas interpretativas. Eis que expõem a autonomia da ordem simbólica (do valor moral, em Nietzsche; do valor econômico, em Marx; do valor linguístico, em Freud) expondo, assim, a descentração do sujeito humano.

Juntas, a genealogia de Nietzsche, a crítica da economia política de Marx e a psicanálise de Freud fazem ainda um outro insulto ao amor-próprio humano, comparável ao Kränkungen científico – que Freud associava à Física do início da modernidade (descentração da realidade física; abolição do modelo cosmológico geocêntrico) e à biologia evolutiva (descentração da evolução da vida; abolição da exceção humana na hierarquia dos seres).[2]

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Um futuro estagflacionário: por quê?

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Nouriel Roubini é um singular economista do sistema. Se possui fama internacional, costuma ser olhado com irônica desconfiança. Eis que os seus pares o consideram como um “profeta da desgraça”.  No entanto, tudo o que diz tem enorme plausibilidade. Ele tem sustentado agora uma previsão nuviosa sobre a situação econômica nas próximas décadas do século XXI: o capitalismo em nível global sofrerá de estagflação renitente e essa será a sua condição normal doravante.  

Eis como Roubini, em seus próprios termos, apresenta essa antevisão:

Economias avançadas e mercados emergentes estão cada vez mais envolvidos em “guerras” necessárias. O futuro será estagflacionário e a única questão é quão ruim isso será. A inflação aumentou acentuadamente ao longo de 2022 nas economias avançadas e nos mercados emergentes. As tendências estruturais sugerem que o problema será secular – e não transitório.

Haverá, pois, guerras necessárias contra as novas pandemias, os efeitos do aquecimento global, as imigrações maciças, as pobrezas escandalosas etc.; haverá, inclusive, conflitos bélicos reais como o atual entre os Estados Unidos (atrás do palco), a Ucrânia e a Rússia (no próprio palco em que ocorrem efetivamente as batalhas). Como esses dois tipos de “guerras” atuarão seja para elevar a demanda agregada seja para contrair a oferta agregada, eles criarão as condições objetivas para a normalização do fenômeno “estagflação”. Os seus dois escritos em que essas “previsões” aparecem se encontram aqui e aqui.

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As causas da inflação atual

Autor: Michael Roberts – The next recession blog – 27/02/2023

A Eastern Economics Association (EEA) realizou sua conferência anual no último final de semana. Ela não é tão grande quanto a enorme conferência anual da American Economic Association (ASSA), mas incorpora apresentações de teses econômicas muito mais heterodoxas e radicais do que a ASSA.

Foram centenas de trabalhos apresentados. Vou me concentrar em apenas alguns trabalhos das sessões organizadas pela Union of Radical Political Economics (URPE), os quais me foram gentilmente enviados por seus autores.

Nesta primeira de duas postagens sobre temas da conferência, examinarei a palestra de abertura de Joseph Stiglitz. O professor Stiglitz é ganhador do prêmio Nobel (Riksbank) em Economia, ex-economista-chefe do Banco Mundial e ex-presidente da EEA; agora, é economista-chefe do centro de pesquisa Roosevelt Institute (nome este que indica já a sua orientação política). Stiglitz tem sido um dos principais críticos da economia neoclássica dominante; também se apresenta como defensor de um capitalismo que funciona para muitos – não para poucos.

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Sobre as origens da realidade psíquica

Autor: Jon Mills[1]

A arché [2] da psique

Quando começa a vida psíquica? A emergência do ego constitui propriamente a subjetividade humana ou podemos apontar legitimamente para forças ontológicas anteriores? Como mencionado anteriormente, não desejo reduzir essa indagação metafísica a um empreendimento meramente materialista, apenas para reconhecer que certas contingências fisiológicas da corporeidade são uma condição necessária, embora não suficiente para explicar a origem psíquica.

Embora a psicologia do processo psíquico seja sensível ao trabalho contíguo e compatível feito nas ciências biológicas e neurocientíficas, isso não precisa nos preocupar aqui. Se alguém se contenta com uma abordagem materialista, que recorra ao discurso sobre o óvulo e o esperma.

Eis que devemos proceder com um respeito cuidadoso à máxima de Freud segundo a qual é preciso resistir à tentação de reduzir a psique ao seu substrato anatômico. Como as abordagens empíricas sozinhas não podem abordar a epistemologia do nosso interior ou do vivido qualitativo inerente ao processo experiencial, devemos tentar abordar a questão dialeticamente.

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Marx e Keynes: os limites da política econômica

Note-se uma certa candura ideológica dos atuais economistas que propugnam por reformas do sistema, mudanças institucionais e regulação econômica, que melhorariam supostamente a vida dos trabalhadores. O texto do autor progressista abaixo traduzido ignora totalmente a questão da socialização do capital – vista como financeirização e/ou dominância financeira. Ele discute a política econômica de um modo até interessante, mas anacrônico porque não compreende bem o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Note-se: mesmo se a taxa de ganho do capital financeiro fica menor do que a taxa de lucro do capital industrial, se o volume de capital financeiro é muitas vezes maior do que o volume de capital industrial operando no sistema econômico, a necessidade de drenar recursos do segundo para alimentar o primeiro impede uma política econômica até mesmo em prol do crescimento. Logo, impede também uma política distributivamente progressista.

O texto abaixo – muito bem escrito e muito instrutivo – julga ainda que o desenvolvimentismo é possível num mundo estruturado de modo não desenvolvimentista. A sua marca não é o crescimento, mas a austeridade. É até mesmo anacrônico ser progressista num mundo regressista em que ocorre ocaso do capitalismo.

eLEUTERIO f s pRADO

Limites das variações salariais

Autor: Nick Johnson – Blog: The political economy of development – Data: 21/09/2022

Marx é muito claro na afirmação de que o trabalho é explorado e que um salário mais alto tornaria a vida dos trabalhadores menos miserável, mesmo se isso não elimina a exploração em si mesma. Mas ele não acredita, porém, que um salário mais alto possa fazer com que o sistema funcione melhor ou mesmo que melhore a situação dos trabalhadores como um todo.

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O decrescimento é, sim, necessidade imperiosa

Autor: Eleutério F S Prado [1]

Não há dúvida, o capitalismo é globalmente hegemônico. Em quase todos os países que conformam o mundo atual domina o modo de produção histórico que se orienta pela acumulação de capital. Em todos eles, por isso, o crescimento econômico figura como um imperativo socialmente cristalizado. Em consequência, a expansão da produção como riqueza efetiva e da riqueza fictícia na forma de dívidas empapeladas (ou digitalizadas) não pode ser desafiada de modo eficaz. O decrescimento, assim, aparece como uma má utopia.

No entanto, acumulam-se já nos sítios da internet e nas prateleiras das bibliotecas artigos e livros que defendem o decrescimento como uma necessidade imperiosa e mesmo definitiva para o caso de que a humanidade deseje sobreviver nas próximas décadas deste e do próximo século pelo menos. Como se sabe, a razão imediata do surgimento dessa ansiedade teórica – e mesmo prática – advém da preocupação crescente com as mudanças climática enquanto uma mega-ameaça à existência de vida altamente organizada na face da Terra.

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Pulsão de morte: de Freud à Lacan

Resumo: As pulsões sexuais põem a vida num corpo (vivo por isso), o qual sem elas estaria morto; por isso mesmo a pulsão de morte, a morte pulsional melhor dizendo está pressuposta nas manifestações da vida.

Autora: Alenka Zupančič

Para os filósofos lacanianos a noção de pulsão de morte tem uma função muito importante e persistente, pois aparece geralmente em pontos cruciais de vários argumentos conceituais. Apesar de haver esclarecimentos (e exemplos) do que essa noção nomeia e se refere, há ainda muita confusão a esse respeito. Pode ser que essa confusão venha do fato maior de que essa noção está e permanece em processo de construção no interior da psicanálise.

 Não que as outras noções freudianas estejam simples e totalmente estabelecidas e fixadas, sem possibilidade de que possam ter ainda uma vida conceitual mais longa, mas a pulsão de morte parece carecer particularmente de algum tipo de ancoragem inicial ou fundamental. A razão é muito simples: o que Freud, em Além a princípio do prazer, apresenta primeiro sob o rótulo de pulsão de morte (Todestrieb) não é exatamente o que “nós” lacanianos (e eu me incluo entre eles) entende por ela.

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