A dissolução do marxismo humanista (II)

Autor: Ian H. Angus

Publica-se agora a segunda parte do artigo de Ian H. Angus. A primeira foi publicada e está aqui. Em sequência se publicará uma nota do autor deste blogue:

3. A dissolução do marxismo humanista

Sugeri que a filosofia dos anos sessenta deveria ser entendida como um espaço discursivo próprio e não como uma doutrina específica. Agora quero me concentrar em certos aspectos problemáticos do humanismo marxista, os quais provocaram reações e desenvolvimentos subsequentes que levaram à sua dissolução. Usando a terminologia em uso no discurso filosófico contemporâneo, esses desenvolvimentos constituíram o campo do “pós-estruturalismo”. Podem, assim, ser explicados com referência a várias obras altamente influentes de Michel Foucault e Jacques Derrida. Abrindo um parêntese, pode-se dizer o discurso anglófono foi assim marcado por uma mudança na referência primária já que se transladou da filosofia alemã para a francesa. E essa dissolução começou já no auge do humanismo marxista.

A obra-prima inicial de Foucault, A ordem das coisas: uma arqueologia das ciências humanas, apareceu em francês em 1966 e em inglês em 1970. Uma de suas principais teses era a de que a tentativa moderna de compreender a realidade humana empírica por meio das ciências humanas implica numa duplicação. Por um lado, a humanidade aparece aí como objeto das várias ciências, as quais, pelo menos em princípio, se somariam para formar um conhecimento eventualmente completo da humanidade empiricamente existente; por outro, ela aparece também como sujeito do conhecimento – como um sujeito transcendental. É certo que esta não era, em si mesma, uma tese original. Notavelmente, ela apareceu já na fenomenologia de Edmund Husserl, especialmente em sua última obra, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental.

A tese específica de Foucault é a de que essa duplicação da humanidade, empírica e transcendental, não poderia ser mantida como duas dimensões separadas. A partir do conceito central de crítica, advém a ideia de que um verdadeiro discurso científico não pode ser transcendental e empírico ao mesmo tempo. “Na verdade, não se trata tanto de uma alternativa, mas de uma flutuação inerente a toda análise, que traz à tona o valor do empírico no nível transcendental.”[1] A flutuação necessária na duplicação do homem (sic) põe a questão radical de saber se o “homem” existe de fato – ou se ele pode ser extinto. Como diz a famosa última frase do livro, o pensamento moderno clássico pode terminar de tal forma que “o homem venha a ser finalmente apagado, tal como um rosto desenhado na areia à beira do mar“.[2]

No entanto, apesar dessa primeira e poderosa ressalva no ambíguo conceito de homem, central no humanismo marxista, era muito difícil que esse texto tivesse um efeito geral e muito extenso. A rejeição mais clara e influente do humanismo marxista veio no primeiro volume da História da Sexualidade, também de Michel Foucault, que apareceu em 1976 e foi traduzido para o inglês dois anos depois. Ele identificou o que chamou de “hipótese repressiva”. Eis que coloca em paralelo a repressão da sexualidade e a ascensão do capitalismo devido à incompatibilidade do prazer com o trabalho. Contra isso, ele afirmou que a ideia do sexo reprimido alimenta uma pose fácil de transgressão. Eis que isso caracteriza a sociedade que há mais de um século se castiga ruidosamente por sua hipocrisia e que fala verbosamente de seu próprio silêncio. Pois, ela se esforça para relatar detalhadamente as coisas não ditas, denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das próprias leis que a fizeram funcionar.[3]

O próprio programa de Foucault era, ao contrário, investigar o poder produtivo dos discursos sobre sexo e, para além do sexo. Assim, a ideia da produtividade do discurso na constituição das subjetividades tornou-se desde então a figura geral da análise social. Desse ponto de vista, Freud, ao invés de aparecer como um grande libertador, tornou-se produtor de discursos que constituíam subjetividades constrangidas.

Marx foi tratado com mais cuidado. Foi mencionado apenas uma vez no texto de Foucault para mostrar que a burguesia demorou a reconhecer os corpos e o sexo do proletariado.[4] No entanto, a inversão direta da forma de crítica sugeria que “é um ardil fazer da proibição o elemento básico e constitutivo a partir do qual se seria capaz de escrever a história do que foi dito sobre o sexo a partir da época moderna“.[5]

Desde então, Foucault e sua análise do poder como produtivo e não repressivo tornaram-se onipresentes nas ciências sociais anglófonas. Podemos notar que, se essa abordagem fosse aplicada a Marx, sugeriria que também é um ardil afirmar que o trabalho em sua forma capitalista é uma proibição, uma contenção ou uma perda dos poderes verdadeiramente humanos do trabalhador. Talvez isso explique por que Marx desapareceu em grande parte dos escritos daqueles que partem da noção de produtividade discursiva.

A inversão do modelo de crítica de Foucault foi elaborada em oposição direta à figura humanista marxista da alienação. Se se aplicou muito bem a Freud ou Marx está aberto ao debate, mas certamente se aplicou à síntese de Marx e Freud através do conceito de alienação que imediatamente o precedeu. Isso nos leva a questionar a premissa humanista expressa sucintamente na frase de Fromm que mencionei anteriormente, de que alguém só pode “alcançar a liberdade (e a saúde) tomando consciência dessas forças motivadoras [e] tornando-se o senhor de sua vida (dentro das limitações da realidade) em vez de escravo de forças cegas“.[6]

Tudo o que está em causa depende desta pequena inserção, quase entre parênteses, “dentro das limitações da realidade“. Se há limites para ser senhor e não escravo, como conhecer esses limites? Há elementos do ser humano que não são captados adequadamente dentro da alternativa “senhor ou escravo”? Se não há sujeito humano original e, portanto, não há essência humana, como pode a revolução social pretender estabelecer poderes criativos humanos em uma forma social autêntica?

As intervenções de Derrida mostram uma oscilação semelhante entre as dimensões filosófica e popular. Em 1966, ele deu uma palestra na famosa conferência John Hopkins sobre A Linguagem da Crítica e as Ciências do Homem, que versava ostensivamente sobre o estruturalismo francês. No entanto, a palestra de Derrida – mais tarde publicada no livro amplamente lido que continha os artigos de conferência – anunciou o fim do estruturalismo. Como se sabe, a sua crítica se centrou especificamente numa crítica a Lévi-Strauss.

Argumentando que toda estrutura requer um centro que esteja acima da estrutura e que organize a sua dispersão, ele elaborou a desconstrução do duplo empírico-transcendental. A problemática da linguagem, determinante como tal do estruturalismo, entrou em pauta “quando tudo se tornou um sistema onde o significado central, o significado original ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças“.[7]

A superabundância, ou o caráter aparentemente transcendental, do centro deve, portanto, ser entendida como um suplemento da finitude ou da realidade empírica. Eis que deriva de uma falta dentro da própria realidade finita. O fim do conhecimento moderno estaria no abandono de qualquer centralidade humanista “diante do ainda inominável que se proclama a si mesmo“.[8]

Uma outra palestra, em 1968, solidificou o papel de Derrida na dissolução do humanismo. “Os fins do homem” começa com uma longa reflexão sobre o propósito dos encontros filosóficos internacionais e sobre o significado de categorizar a filosofia por nação, no curso do qual ele se referiu ao assassinato de Martin Luther King Jr., ao Vietnã e às convulsões universitárias de Paris. Embora essas referências fossem curtas e bastante indefinidas, ele afirmou que “esses sentimentos me parecem pertencer por direito ao domínio essencial e à problemática geral enfrentada por esta conferência“, dando-lhes uma referência histórica contemporânea nítida.[9]

Para abordar a questão de como a França se posiciona com a questão do homem, ele analisou, por meio de uma reação, os três pensadores alemães Hegel, Husserl, Heidegger, os quais havia definido amplamente o pensamento francês recente.  A sua tese é que a recepção francesa desses pensadores, todos tidos como críticos do antropologismo, ainda era uma crítica humanista. Nesse sentido, aludiu que a filosofia francesa atual “parece… amalgamar Hegel, Husserl e, de maneira mais difusa e ambígua, Heidegger, com a velha metafísica humanista“.[10]

A situação atual abre, assim, duas possibilidades: ou tentar uma desconstrução que repita os gestos fundadores da metafísica da presença ou “decidir mudar de terreno, de forma descontínua e eruptiva, pisando abruptamente para fora e afirmando a ruptura e a diferença absolutas“.[11] É naturalmente a última alternativa com a qual Derrida se identificou e que ele perseguiu por meio de uma aplicação da tese de Heidegger. Segundo essa tese, uma metafísica da presença infectava a filosofia desde Platão à filosofia francesa atual, marcando-a como insuficientemente anti-humanista. As referências pouco desenvolvidas à política contemporânea dos anos 1960 serviram para colorir essa tese filosófica com um radicalismo político, ou aparentemente político.

Essas intervenções de Foucault e Derrida na década de 1960 abriram uma brecha no discurso predominante do humanismo marxista. Na época, elas ocorreram em contextos filosóficos relativamente esotéricos, mas com o tempo sua tese do fim, ou morte, do “homem” passou a ser aceita como se provada sem sombra de dúvidas. Isso ocorreu, principalmente, por meio de sua popularização do volume I da História da sexualidade de Foucault.

Lembre-se que a discussão aqui está orientada para a mudança num discurso filosófico dominante; ela não questiona a validade intrínseca dos textos e seus argumentos em si. Em suma, eles serviram para deslocar o conceito central de “homem” que ancorava o humanismo marxista e para inaugurar um novo discurso, muitas vezes chamado de pós-estruturalismo, que não tinha o papel geralmente convincente do humanismo marxista. De fato, desde então, o discurso filosófico tornou-se muito mais plural; quanto a isso, note-se, uma substituição não está no horizonte.

4. Pontos cegos no humanismo marxista

Até agora, concentrei-me no termo central “homem” por meio do qual o humanismo marxista foi articulado, tendo sido depois criticado pelo emergente discurso pós-estruturalista. Essa crítica abriu o espaço do discurso para um fracionamento por raça, sexo, gênero e outras posições sociais e minou a unidade da teoria da libertação proposta pelo humanismo marxista.

Embora possamos marcar a dissolução do marxismo humanista com bastante clareza, ela não é suficiente para responder à questão de como seu papel emancipatório pode ser transformado e renovado à luz de novos desafios políticos e filosóficos. De fato, a rejeição total do humanismo marxista parece motivar um abandono em larga escala de uma filosofia da libertação humana – ou pelo menos de qualquer teoria unificada ou geral.[12] Façamos agora um exame mais detalhado das características específicas do marxismo humanista que exigiram reavaliação, tomando cada uma de suas três partes por sua vez: marxismo, humanismo, existencialismo.

O marxismo foi entendido nos termos da crítica inicial de Marx à sociedade capitalista, de tal forma que a crítica posterior, detalhada e teoricamente rica da economia política em O Capital foi interpretada como se não acrescentasse nada significativo ao conceito de alienação.[13] Na década de 1960, enquanto o humanismo marxista e o estruturalismo althusseriano eram vistos como uma decisão entre o primeiro e o último Marx, agora se tornou possível ver que a crítica tardia da economia política é um desenvolvimento da teoria da alienação inicial. Nesse sentido, é preciso buscar uma definição precisa de quais aspectos são significativamente melhorados. Quero fazer apenas duas observações sobre esse avanço.

Quando Marx retorna em O Capital à relação dialética entre humanidade e natureza que descreveu inicialmente em sua obra inicial, ele acrescenta significativamente a tecnologia como mediação entre humanidade e natureza.[14] Ele descreve as características transistóricas – ontológicas – do trabalho em seus componentes do processo de trabalho: o material natural trabalhado e os instrumentos (ou tecnologia) usados. A tecnologia é o aspecto especificamente humano do trabalho, que é ao mesmo tempo produto de um processo de trabalho anterior e operativo no trabalho vivo. A categoria de tecnologia é curiosamente elástica. Marx diz:

Em um sentido mais amplo, podemos incluir entre os instrumentos de trabalho… todas as condições objetivas necessárias para o prosseguimento do processo de trabalho. (…) A própria terra é um instrumento universal desse tipo, pois fornece ao trabalhador o chão sob seus pés e um “campo de emprego” para seu próprio processo particular. Instrumentos desse tipo, que já foram mediados por trabalhos passados, incluem oficinas, canais etc.[15]

Esse sentido mais amplo de tecnologia inclui, portanto, a Terra como ela foi modificada pela atividade humana anterior, bem como a Terra não modificada na condição de “solo nu”, na medida em que é uma condição necessária para o trabalho vivo – como água, ar, gravidade etc. Nesse sentido, Marx inclui o que Hegel chama de primeira e segunda natureza como aspectos da tecnologia. Tecnologia, mesmo “em um sentido mais amplo”, parece um nome estranho para se referir a tudo isso.

 Provavelmente chamaríamos, agora, tudo isso de meio ambiente ou mesmo de ecologia, um ambiente construído, introduzindo assim um sentido mais amplo de tecnologia. Marx visava um sentido de natureza, ou ambiente, que pode muito bem ser alterado pela atividade humana, mas não tem sido em sua totalidade o objeto da atividade humana. Marx não chegou a essa conclusão, mas ela está implícita em sua concepção ampliada de tecnologia. A natureza e o ambiente construído são o resultado cumulativo e não intencional do trabalho anterior que sustenta e condiciona o trabalho vivo subsequente.

Uma vez que a atividade humana visa objetivos específicos, essa totalidade histórica cumulativa da natureza original e do ambiente construído modificado pela tecnologia não pode ser entendida como um produto pretendido da ação humana. Nesse sentido, o próprio Marx não me parece culpado do prometeanismo da dominação da natureza de que muitas vezes é acusado, mas que se aplica às versões oficiais dominantes do marxismo. A questão filosófica passa a ser a da ecologia natural inicial, sua transformação pela tecnologia no ambiente construído, e o trabalho excedente por meio do qual a atividade humana excede a simples reprodução e permite o desenvolvimento de tecnologia que altera historicamente o caráter do processo de trabalho.

No Livro I, curiosamente, enquanto Marx utiliza a produtividade excedente do trabalho para explicar o mais-valor que é apropriado no processo de trabalho pelo capitalista, ele não explica a sua origem até a discussão da renda fundiária no Livro III. Aí se torna evidente que o excedente de produtividade do trabalho acaba por assentar num fato natural que é mais evidente no trabalho agrícola, no intercâmbio direto entre o trabalho humano e a natureza.

A base natural do trabalho excedente em geral tem um pré-requisito natural sem o qual esse trabalho não pode ser realizado. E ele consiste no fato de que a natureza deve fornecer – sob a forma de produtos animais ou vegetais da terra, na pesca etc. – os meios de subsistência necessários em condições de um gasto de trabalho que não consuma toda a jornada de trabalho. Essa produtividade natural do trabalho agrícola (que inclui aqui o trabalho de simples coleta, caça, pesca e pecuária) é a base de todo o trabalho excedente, pois todo o trabalho é direcionado primária e inicialmente para a apropriação e produção de alimentos.[16]

Podemos chamar esse fato natural que torna possível a produtividade excedente de fecundidade natural. Ela está incrustada na ecologia natural antes da intervenção humana por meio da tecnologia, embora possa ser multiplicada por essa intervenção. Nesse sentido, o Marx tardio fundamenta a dialética da humanidade e da natureza na fecundidade da ecologia natural.

Enquanto a inflexão do marxismo humanista implicou numa preferência pelos escritos iniciais em relação aos tardios, a inflexão do humanismo marxista significou uma renovação da tradição humanista por meio de sua extensão para a esfera do trabalho e suas estruturas de exploração. A teoria inicial da alienação de Marx permitiu que essa extensão do humanismo fosse entendida como uma perda e posterior recuperação do verdadeiro sujeito humano.

O modelo de alienação é originalmente uma estrutura trinitária de uma autêntica interioridade, uma exteriorização, e depois uma nova internalização que incorpora algumas das características da exteriorização, mas as devolve a uma coerência interna. É claro que esse modelo tem sido complicado em muitas de suas aplicações, mas a estrutura básica persiste: o si mesmo outro expande o si mesmo. 

Esse modelo foi o que permitiu ao humanismo marxista assumir o sujeito humano como ponto de partida e de chegada e, assim, lançar críticas à alienação no mundo atual. Fundamenta também um paralelismo entre críticas individuais e sociais, o próprio paralelismo que permitiu a Fromm e outros tratar as críticas marxistas e freudianas como em princípio idênticas, de modo que a ideia de um retorno à autenticidade a partir da alienação social e da neurose individual governava a prática da crítica.

Colocando o sujeito humanista como ponto de origem autêntica, a constituição do sujeito como tal não era motivo de preocupação. Por essa razão, a base ética e o objetivo do humanismo marxista pareciam estar garantidos. Desde então, tornamo-nos muito mais conscientes da formação do sujeito como um processo sociopsicológico de tal forma que as pluralidades de gênero, raça etc. não são vistas simplesmente como alienações que devem ser descartadas, mas como construções que pluralizam a noção do próprio sujeito humano.

Hoje em dia há uma tendência generalizada, que se assemelha à da invocação de Foucault ou Derrida, de citar a noção de sujeito interpelado de Althusser como se fosse característica dos anos sessenta. Mas se o sujeito é estruturalmente gerado, como ele pode permanecer eticamente importante? Uma vez que entendemos o indivíduo como constituído por meio de processo sociais – e não simplesmente alienado por processos sociais –, o sentido em que se poderia retornar a um eu autêntico torna-se bastante incerto. Como consequência, muitas vezes parece que perdemos esse senso de universalidade humana em um sentido ético que animava o humanismo marxista. Nossa tarefa agora, eu sugeriria, é compreender a constituição plural das subjetividades ao lado de uma universalidade ética.

Isso é especialmente significativo para a interpretação de Freud como humanista. Certamente, a análise freudiana visa libertar o sujeito para que as neuroses não dominem mais a ação em um sentido automático, como afirmava Fromm. Mas não há nenhum sentido em que o inconsciente freudiano possa ser tornado plenamente consciente – de modo que a constituição do sujeito significa que ele nunca poderia se recuperar em uma apropriação plena de seu próprio terreno. Um ponto semelhante pode ser feito em referência ao entendimento de Marković de revolução como transgressão dos limites internos de uma formação social.

Parece bastante incrível que tais limites pudessem ser plenamente conscientes dentro da formação social de modo a permitir que ela fosse ativamente transformada de modo a romper esses limites e se tornar uma nova forma social na qual o que esses limites ocultam pudesse ser evidenciado. Uma forma social, assim como a transição entre formas sociais, provavelmente não se tornará transparente nesse sentido.

A questão é que a compreensão marxista do humanismo por meio da história da alienação simplificou muito a questão de como o indivíduo humano é construído por forças que o indivíduo não pode controlar – nem mesmo em princípio – e, consequentemente, a questão de como as limitações de uma ordem social podem ser evidenciadas dentro dela. E, mais ainda, como tais percepções e entendimentos limitantes podem se tornar objeto de ação revolucionária.

Essa mesma questão aparece dentro da inflexão existencialista que colapsou o que Husserl chamou de ego transcendental e ego empírico. Para Husserl, o significado intencional mundano em sua estrutura inerentemente dual de perceptivo-percebido, agido-agido sobre ou pensador-objeto de pensamento, significava que, para revelar e compreender essa estrutura, era necessária uma perspectiva que pudesse ir abaixo dela até a sua origem.

Ele chamou isso de ego transcendental. Não vou entrar nisso agora, mas não está nada claro por que Husserl pensava que a reflexão transcendental tinha a estrutura de um ego – especialmente porque englobava tanto o perceptivo quanto o percebido etc. Mas não há dúvida de que chamá-lo de ego fez parecer que era um ego no mesmo sentido, ou similar, em que um ego concreto, ou uma pessoa individual, é um ego. Husserl chamou isso de “paradoxo da subjetividade humana”, a de ser o sujeito de toda experiência possível do mundo e, ao mesmo tempo, ser um objeto dentro do mundo.

Embora ele tenha chamado isso de “equivocação”, ele ainda assim o achava essencial ou mesmo inevitável – o que deve ser, se o campo transcendental é, em algum sentido, um ego.[17] Assim, havia um ponto válido a ser feito quando Sartre argumentou que o ego transcendental no sentido de Husserl era uma fuga da inserção concreta de alguém no mundo da ação. Como disse Husserl, o ego transcendental é imortal, não nasce e não morre.[18]

Mas não há razão para rejeitar a própria transcendentalidade como uma indagação sobre os fundamentos do sentido que constituem a correlação entre o sujeito concreto e suas percepções, ações e pensamentos. De fato, a menos que sejamos deixados presos dentro do mundo social realmente dado – que é onde Sartre nos deixa – alguma investigação transcendental sobre os fundamentos e pressupostos de um mundo significativo deve ser possível.

Como Herbert Marcuse nunca deixou de enfatizar, é a filosofia que, por sua transcendência em relação ao mundo existente, preserva as bases conceituais para a transformação da realidade social.[19] Em suma, o equívoco de Husserl levou ao achatamento de Sartre, e o achatamento de Sartre levou tanto a uma apreciação do mundo concreto como o único mundo para os humanos existentes quanto à exclusão de uma investigação suficiente sobre os fundamentos desse mundo para poder formular o projeto de sua superação – exceto como o fiat de uma escolha individual.

Várias vertentes de nossa reflexão sobre a dissolução do humanismo marxista convergem nesse ponto: como perceber e agir sobre o limite interno essencial de uma determinada formação social? O sujeito humanista é constituído e, portanto, não consiste num ponto de origem; contudo, ele é ainda um objetivo ético. Não há um paralelismo demasiado simples entre o indivíduo e o sujeito social que possa ser apreendido por meio do paradigma da alienação.

De fato, o próprio Husserl observou que a resolução do paradoxo da subjetividade de uma maneira que removesse o equívoco poderia ocorrer por meio da abordagem da constituição da intersubjetividade – em vez de passar diretamente do eu individual para o sujeito social, seria preciso passar por todas as mediações que reúnem os indivíduos em grupos e, a partir daí, para um sujeito universal que pudesse fundamentar um humanismo ético.

Assim, emerge uma diferença crucial entre a subjetividade individual e a mudança social – uma diferença que requer muita análise e ação – que foi encoberta e tornada evidente simplesmente chamando-a de escolha existencial. Um último aspecto dessa fusão de dimensões individuais e sociais deve ser mencionado: o paradigma de alienação de Marx nos Manuscritos de 1844 deixou de lado a inevitabilidade da morte individual como algo sem interesse, justamente por não se encaixar na definição de ser humano como espécie-ser e, portanto, universal (Gattungswesen).[20]

A interpretação humanista do existencialismo por meio do “compromisso” de Sartre e não por meio do “ser-para-a-morte” de Heidegger, bem como a perda da dimensão trágica da psicanálise freudiana, fazem assim todo o sentido. Embora a dissolução tenha sido, sem dúvida, motivada e talvez inevitável, pode-se ser perdoado por pensar que algo foi perdido no processo.

5. O que pode ser uma filosofia para o nosso tempo?

Assim, pode-se entender o significado original do humanismo marxista, sua dissolução e algumas razões internas para essa dissolução. Lembre-se de que sugeri que a ênfase no Marx primeiro negligenciava o papel da tecnologia e do ambiente construído no estabelecimento da dinâmica histórica entre os seres humanos e a natureza.

Atualmente, a relação entre a crítica madura de Marx ao capitalismo e à tecnologia, ao ambiente construído e à ecologia natural é uma questão urgente que tem sido abordada de muitos pontos de vista. Também sugeri que a hegemonia da história da alienação sobre a compreensão do humanismo ignorava as forças externas que constituem a subjetividade e as formas de intersubjetividade. Como consequência, simplificou demais a possibilidade revolucionária de identificar o limite de uma formação social a partir de seu interior, perdendo o sentido em que o inconsciente freudiano de um indivíduo ou de um mundo histórico nunca pode ser tornado transparente dentro dele, de modo que a relação marxiana de análise e ação se tornou muito mais problemática.

Por fim, sugeri que o colapso existencialista da distinção entre a constituição transcendental da possibilidade de sentido e a subjetividade concreta que encena o sentido colocou uma ênfase muito alta no que pode ser realizado por decisão ou escolha individual e, além disso, ocluiu o significado da morte e da tragédia para as subjetividades individuais. Como o esboço geral de uma filosofia para o nosso tempo pode emergir ao levar essas críticas adiante?

Isso exigiria uma filosofia da tecnologia que considerasse o papel da tecnologia tanto no ambiente construído quanto na ecologia natural. Exigiria uma recuperação da universalidade da humanidade contra a fragmentação contemporânea das diferenças em uma política identitária que não vê semelhança no “humano” e, portanto, não pode pensar em conjunto as diferentes formas de opressão e exploração. Exigiria uma aceitação da morte, da limitação e da tragédia como destino das subjetividades individuais. Isso exigiria uma justificação renovada da dimensão transcendental da experiência humana em contraposição à tendência contemporânea de limitar os indivíduos dentro de sua experiência imanente.[21]


[1] Michel Foucault, The order of things: an archeology of human science. Londres: Tavistock, 1970, p. 349.

[2] Ibid, p. 422.

[3] Michel Foucault, The history of sexuality, Volume I: an introduction. Nova York: Random House, 1978), p. 8.

[4] Foucault, The history of sexuality, p. 126 em diante.

[5] Foucault, The history of sexuality, p. 12.

[6] Fromm, Beyond the chains of illusion, p. 86.

[7] Jacques Derrida, “Structure, Sign and Play in the Discourse of the Human Sciences” in Richard Macksey e Eugenio Donato (orgs.), The Structuralist Controversy: The Languages of Criticism and the Sciences of Man. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1970, p. 249.

[8] Ibidem, p. 265.

[9] Jacques Derrida, “Structure, Sign and Play in the Discourse of the Human Sciences” in Richard Macksey and Eugenio Donato (eds.), The Structuralist Controversy: The Languages of Criticism and the Sciences of Man (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1970) p. 249.

[10] Ibidem, p. 39.

[11] Ibidem, p. 56.

[12] Marilyn Nissim-Sabat contestou recentemente a atual leitura pós-colonial de Fanon que lhe impõe uma rejeição total do humanismo em oposição a uma leitura decolonial que reconhece o espírito ético humanista de Fanon ao lado das deformações desse espírito pelo colonialismo. Ver Marilyn Nissim-Sabat, “Decolonial Humanism: Reflections on Fanon, Marx, and the New Man” no blog Brotherwise Dispatch Vol. 3, Issue 5, Dec. 2018/Fev. 2019. Disponível em https://brotherwisedispatch.blogspot.com/2018/12/decolonial-humanism-reflections-on.html.

[13] Essa figura dominante não foi implantada por todos os humanistas marxistas, no entanto, especialmente aqueles que tentaram estabelecer uma continuidade entre um marxismo anterior e a Nova Esquerda. Por exemplo, ver Raya Dunayevskaya, “Marx’s Humanism Today”, in Erich Fromm (ed.), Socialist Humanism, 68-70.

[14] A partir do momento em que se apreciam as análises da tecnologia e da produtividade excedente de O Capital, Tomo I, fica claro que a obra de Jacques Derrida, classe trabalhadora, pode ser explorada em maior grau e, ao mesmo tempo, ganhar um padrão de vida mais elevado. Como consequência, a reivindicação de Marx pelo papel crucial da classe trabalhadora dentro do capitalismo como força revolucionária torna-se complicada, para dizer o mínimo, e provavelmente insustentável.

[15] Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy, Vol. I, trad. B. Fowkes (Nova York: Vintage, 1978), 286-7.

[16] Karl Marx, O Capital, Vol. 3, ed. Frederick Engels. Londres: Lawrence e Wishart, 1972, 632.

[17] Edmund Husserl, The Crisis of the European Sciences and Transcendental Phenomenology, tradução de David Carr. Evanston: Northwestern University Press, 1970, p. 184.

[18] Edmund Husserl, Analyses Concerning Active and Passive Synthesis: Lectures on Transcendental Logic, Collected Works.

[19] Herbert Marcuse, “The concept of essence”, in Negation (tr.) J. J. Shapiro. Boston: Beacon, 1968, p. 87; Herbert Marcuse, Reason, and revolution: Hegel and rise of social theory. Boston: Beacon, 1969), pp. 251–57; Herbert Marcuse, “On Science and Phenomenology”, Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 2: In Honor of Philipp Frank (Proceedings of the Boston Colloquium for the Philosophy of Science, 1962-4), (ed.) R. S. Cohen e M. W. Wartofsky. New York: Humanities Press, 1965, p. 280.

[20] Karl Marx, Karl Marx: Early Writings, p. 157-8.

[21] Esses são os desafios que meu recente livro Groundwork of Phenomenological Marxism: Crisis, Body, World. Lanham: Lexington Books, 2021, tenta abordar.


[1] Ian H. Angus é professor emérito da Simon Fraser University, na Colúmbia Britânica. É autor de nove livros e muitos ensaios em filosofia e humanidades. Um Festschrift sobre sua obra foi editado por Samir Gandesha e Peyman Vahabzadeh: Crossing Borders: Essays in Honour of Ian H. Angus, Beyond phenomenology and critique (Arbeiter Ring, 2020). O seu livro mais recente é Groundwork of Phenomenological Marxism: Crisis, Body, World (Lexington Books, 2021)