Sobre Eleutério F S Prado

Professor da Universidade de São Paulo Área de pesquisa: Economia e Complexidade

O trabalho é a base ontológica da sociedade?

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Eis o que se encontra num trecho de Tempo, trabalho e dominação social [2] de Moishe Postone:

Segundo essa visão [do marxismo tradicional que ele critica no livro como um todo], não somente o trabalho é considerado a fonte transistórica de riqueza, mas também aquela [fonte] que estrutura a vida social. A relação entre as duas está evidente na resposta de Rudolf Hilferding à crítica de Eugen Böhm-Bawerk:

“Marx parte de uma consideração do trabalho na sua significância como o elemento que constitui a sociedade humana e […] determina, em última análise, o desenvolvimento da sociedade. Ao fazê-lo, ele capta, com o seu princípio do valor, o fator cuja qualidade e quantidade […] controla causalmente a vida social”.

Ora, o “trabalho” se tornou aqui a base ontológica da sociedade – aquela que determina e controla causalmente a vida social. [3]

O trecho assim citado é um momento representativo da crítica de Postone ao marxismo tradicional, mas qual vem a ser, precisamente, o teor dessa crítica? Postone estaria no lado da dialética marxiana e o marxismo que censura teria recaído em erros cometidos já pela teoria clássica, baseada na lógica formal, isto é, no entendimento?

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Economia libidinal em Karatani (III)

Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte II)

Freud oferece uma resposta liberal para a questão maior de como a civilização gerencia as agressões coletivas encravadas e os ressentimentos gerais. Na conclusão de Civilization and Its Discontents, ele argumenta que o próprio reinado da propriedade privada é o melhor meio de inibir a pulsão agressiva.  Para Freud, parece que a própria persistência do modo C e o reinado da propriedade privada fornecem uma saída, juntamente com a cultura, para a agressão. Assim, há um grau de ressentimento que uma sociedade baseada na propriedade privada perpetua, que Freud parece lançar como necessário para manter um grau de repressão.

Lembramo-nos novamente da ambígua adesão de Freud à era progressista da Europa do pós-guerra e da insistência simultânea de que algo do sintoma da velha ordem permaneça dentro da nova. Essa posição coloca Freud em desacordo com a insistência de Karatani de que uma ordem social regida pela troca de mercadorias limita a liberdade. Nesse ponto de contraste, entra em foco o princípio invariante da natureza situado no núcleo da subjetividade – o que elaboramos acima como modo D – ou uma internalização da pulsão agressiva não determinada pela consciência. Karatani está utilizando o aparato freudiano de forma diferente do que o próprio Freud o fez e com objetivos políticos diferentes.

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Economia libidinal em Karatani (II)

Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte I)

Há, portanto, uma teleologia na lógica Karatani dos modos de troca, na medida em que a lógica do modo D realiza a troca de presentes com base nos outros modos. Em vários momentos, Karatani discute a lógica de movimento do modo D como “religião”. E por “religião” ele quer se referir a uma forma semelhante à “religião” de Kant, a qual se realiza supostamente numa república mundial que aboliu o Estado e o capital. Em outros momentos, ele se refere ao modo D como se fosse provocado pela repressão e pela pulsão de morte no sentido freudiano do conceito. 

Em geral, enquanto um modo político de mudança histórica, Karatani teoriza o comunismo como um “modo D”; trata-se, para ele, de uma demanda repetitiva para romper com o modo C de troca de mercadorias e retornar à troca recíproca em cada modo de troca. Nesse relato da história e da práxis, podemos tomar o exemplo da Revolução Francesa e dos períodos revolucionários subsequentes como encenações do modo D. A Revolução Francesa veio de uma demanda coletiva por um retorno a arranjos mais fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade. Essas demandas coletivas também foram pensadas como um levante libidinal. Essa lógica se repete na história como uma forma de negação que busca romper modos opressores que dominam as relações sociais.

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Economia libidinal em Karatani (I)

Autor: Daniel Tutt[1]

O filósofo japonês Kojin Karatani desenvolveu uma sofisticada teoria da história e da práxis, oferecendo uma leitura em “paralaxe” de Kant e Marx que alinha o sistema ético kantiano com uma crítica imanente da troca de mercadorias tal como Marx se desenvolve em O Capital.

As reflexões éticas de Kant não são a-históricas e meramente abstratas, como apontam Marx e muitos marxistas. Pelo contrário, a dimensão universal da ética de Kant não pode ser realizada num arranjo social qualquer. Karatani argumenta que, para o “reino dos fins” kantiano possa acontecer, é preciso uma modificação materialista do modo de troca das coisas (os bens em geral).

 Kant torna-se, assim, um interlocutor necessário no âmbito da práxis marxiana. Karatani mostra que, mesmo para o próprio Kant, a troca de mercadorias que dominava no seu próprio tempo – o capitalismo mercantil – tinha que ser transcendida como pré-condição para qualquer promulgação da ética kantiana. Essa ética, portanto, é pensável junta não apenas com a crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria e ao capitalismo, mas a teoria ética kantiana informa a práxis tal como pensada por Marx, oferecendo um relato utópico da revolução mundial.

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Marx e Adorno: dialética negativa e crítica da economia política

Autores: Werner Bonefeld [1] e Chris O’Kane [2]

O título do livro aqui apresentado, Adorno and Marx: Negative dialectics and the critique of political Economy (Bloomsbury Academic, 2022), resume uma história intelectual recente do desenvolvimento da crítica da economia política enquanto uma teoria social crítica. Ela surgiu no contexto da nova esquerda do final dos anos 1960 e, desde então, foi elaborada por sucessivas gerações de estudiosos críticos em diferentes instituições institucionais. A influência da Escola de Frankfurt foi de particular importância para o seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, está ligada à Nova Leitura de Marx, inspirada em Adorno, na então Alemanha Ocidental.[3]

No Reino Unido, surgiu como a análise da “forma social” no interior da estrutura da Conferência de Economistas Socialistas.[4] Essas novas leituras da crítica da economia política como uma teoria social crítica desenvolveram-se ainda mais na interseção entre a teoria crítica inicial da Escola de Frankfurt – principalmente Adorno, Horkheimer e Marcuse –, a Nova Leitura de Marx da Alemanha Ocidental e a análise da “forma social” sob a rubrica de “marxismo aberto”.[5]

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A “mudança criativa” vai mudar o mundo?!

Autor: Stavros Mavroudeas[1]

Num artigo recente (muito divulgado pelos círculos sistêmicos, assim como outros), Yanis Varoufakis, referindo-se à atual turbulência bancária internacional, proferiu o slogan supostamente radical “deixem os bancos queimarem”. É claro que esse autor não é famoso pela coerência das suas análises econômicas. Como ele mesmo se descreveu, é um criador de contos de fadas que se passa por um economista. O referido artigo se enquadra totalmente nesta categoria.

Além disso, as visões políticas de Varoufakis variam – muitas vezes simultaneamente – de radicais (mas nunca realmente de esquerda) a descaradamente conservadoras. Recentemente, por razões eleitorais puramente oportunistas, ele professou dar uma virada à “esquerda”. Em sua recente máscara, ele encontrou apenas alguns cúmplices dispostos e igualmente oportunistas, mas seu sucesso eleitoral ainda está em jogo. É claro que, como em suas análises científicas, a “ambiguidade criativa” (que é sinônimo de oportunismo e falta de confiabilidade) é a marca de sua virada política supostamente radical.

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O mundo à beira de uma catástrofe climática

Autor: José Eustáquio Diniz Alves – IHU – 11/04/23 [1]

Eis a epígrafe

“Presta atenção, querida

De cada amor, tu herdarás só o cinismo

Quando notares, estás à beira do abismo

Abismo que cavaste com teus pés”

Cartola (1908-1980), O mundo

Eis o. resumo:

A ultrapassagem do limite de 1,5 graus Celsius em relação ao período pré-industrial pode levar a uma série de consequências negativas para a sociedade e o meio ambiente.

Eis o artigo:

O mundo está à beira de um aquecimento global catastrófico, em função do aumento das atividades antrópicas que geram danos profundos nos ecossistemas e no clima. O ser humano tem sido egoísta e tem apresentado uma avareza sem limites pelo domínio das riquezas naturais. Com uma soberba sem igual tem desprezado as demais espécies vivas do Planeta e provocado uma degradação em larga escala na biosfera. A civilização está à beira de um abismo climático e ambiental e, como alertou Cartola (1908-1980), é uma situação auto infringida: “Abismo que cavaste com teus pés”.

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A China é a maior economia do mundo

Autor: Dean Baker[1]

É normal que políticos, repórteres e colunistas se refiram aos Estados Unidos como a maior economia do mundo e à China como a segunda maior. Suponho que essa afirmação seja boa para o ego dessas pessoas, mas isso não é mais verdade. Medindo pela paridade do poder de compra, a economia da China superou a dos EUA em 2014 e agora é cerca de 25% maior do que ela. [1] O FMI projeta que a economia da China será quase 40% maior até 2028, o último ano em suas projeções.

Fonte: Fundo Monetário Internacional.

A mensuração que os apologetas dos Estados Unidos da América do Norte usam comumente é baseada na taxa de câmbio. É assim que se mede o PIB de cada país em sua própria moeda para depois converter essa moeda em dólares na taxa de câmbio atual. Por essa medida, a economia dos EUA ainda é mais de um terço maior do que a economia da China. Ora, essa medida reflete não apenas a produção, mas a força do dólar como dinheiro mundial.

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A extrema-direita como expressão do declínio do Ocidente

Autor: Alejandro Pérez Polo [1]

1. O crash de 2008: aqui começou tudo

O ano era 2012. A crise económica resultante da Grande Recessão estava a grassar na Europa. As mobilizações populares em Espanha (15M e a greve geral de março de 2012) e os protestos violentos na Grécia tinham infetado todo o mundo ocidental. Chegaram ao coração do império: em Nova Iorque, os cidadãos manifestavam-se em Wall Street através de Occupy. Não havia quase vestígios da extrema-direita em lado nenhum. Nem mesmo em França a estreante Marine Le Pen lograva chegar à segunda volta das eleições presidenciais, que haveriam ser decididas entre Sarkozy e Hollande, com uma vitória socialista.

Estava em curso uma fase de decomposição ideológica e orgânica do neoliberalismo. Os consensos económicos da globalização, após a queda da U.R.S.S., tinham sido estilhaçados para sempre. A lua-de-mel que durou de 1991 a 2008, na qual o capitalismo desenfreado conseguiu incorporar na sua lógica todos os países da ex-União Soviética, terminou. Uma subsunção formal e material de todo o globo chegara ao seu fim.

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Fim da hegemonia das finanças?

Introdução: Eleutério F. S. Prado

Cédric Durand, o economista francês de esquerda (marxista) em ascensão, sustenta que a hegemonia das finanças está terminando. Essa tese conflita com a tese que o autor deste blog vem propondo segundo a qual a financeirização é apenas a aparência do processo de socialização do capital. Este último, iniciado já em meados do século XIX, atingira já no final do século XX ao seu amadurecimento. Daí em diante, o grande capital industrial se torna constrangido a obter lucros para servir o capital financeiro, ou seja, os detentores de ações e fundos de vários tipos.  Essa tese concerne, pois, às tendências inerentes ao desenvolvimento da relação de capital e não fica apenas na análise dos fenômenos econômicos (algo que permeia em geral as análises da financeirização).  

Em minha opinião a sua argumentação é fraca, muito fraca.  Afirma que após duas crises supostamente financeiras, a hegemonia das finanças se tornou irracional e que, portanto, aqueles que estão no cimo da política econômica – e que comandam o sistema – tomarão providências para salvá-lo, voltando, provavelmente, à hegemonia do capital industrial. Que, dada a competição geopolítica, o Estado possa passar a intervir mais fortemente no desenvolvimento industrial, essa possibilidade, no entanto, é bem real. Ele vê a desfinanceirização uma como tendência possível, mas parece duvidar que essa transformação se dê de forma bem rápida. Ora, duvidoso mesmo é que o termo “hegemonia” faça sentido para tratar da relação entre o capital financeiro e o capital industrial: eis que são momentos conjugados da produção capitalista; a relação entre eles muda historicamente com a socialização do capital e a crise estrutural da acumulação de capital.

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