Economia libidinal em Karatani (III)

Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte II)

Freud oferece uma resposta liberal para a questão maior de como a civilização gerencia as agressões coletivas encravadas e os ressentimentos gerais. Na conclusão de Civilization and Its Discontents, ele argumenta que o próprio reinado da propriedade privada é o melhor meio de inibir a pulsão agressiva.  Para Freud, parece que a própria persistência do modo C e o reinado da propriedade privada fornecem uma saída, juntamente com a cultura, para a agressão. Assim, há um grau de ressentimento que uma sociedade baseada na propriedade privada perpetua, que Freud parece lançar como necessário para manter um grau de repressão.

Lembramo-nos novamente da ambígua adesão de Freud à era progressista da Europa do pós-guerra e da insistência simultânea de que algo do sintoma da velha ordem permaneça dentro da nova. Essa posição coloca Freud em desacordo com a insistência de Karatani de que uma ordem social regida pela troca de mercadorias limita a liberdade. Nesse ponto de contraste, entra em foco o princípio invariante da natureza situado no núcleo da subjetividade – o que elaboramos acima como modo D – ou uma internalização da pulsão agressiva não determinada pela consciência. Karatani está utilizando o aparato freudiano de forma diferente do que o próprio Freud o fez e com objetivos políticos diferentes.

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Economia libidinal em Karatani (II)

Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte I)

Há, portanto, uma teleologia na lógica Karatani dos modos de troca, na medida em que a lógica do modo D realiza a troca de presentes com base nos outros modos. Em vários momentos, Karatani discute a lógica de movimento do modo D como “religião”. E por “religião” ele quer se referir a uma forma semelhante à “religião” de Kant, a qual se realiza supostamente numa república mundial que aboliu o Estado e o capital. Em outros momentos, ele se refere ao modo D como se fosse provocado pela repressão e pela pulsão de morte no sentido freudiano do conceito. 

Em geral, enquanto um modo político de mudança histórica, Karatani teoriza o comunismo como um “modo D”; trata-se, para ele, de uma demanda repetitiva para romper com o modo C de troca de mercadorias e retornar à troca recíproca em cada modo de troca. Nesse relato da história e da práxis, podemos tomar o exemplo da Revolução Francesa e dos períodos revolucionários subsequentes como encenações do modo D. A Revolução Francesa veio de uma demanda coletiva por um retorno a arranjos mais fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade. Essas demandas coletivas também foram pensadas como um levante libidinal. Essa lógica se repete na história como uma forma de negação que busca romper modos opressores que dominam as relações sociais.

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Economia libidinal em Karatani (I)

Autor: Daniel Tutt[1]

O filósofo japonês Kojin Karatani desenvolveu uma sofisticada teoria da história e da práxis, oferecendo uma leitura em “paralaxe” de Kant e Marx que alinha o sistema ético kantiano com uma crítica imanente da troca de mercadorias tal como Marx se desenvolve em O Capital.

As reflexões éticas de Kant não são a-históricas e meramente abstratas, como apontam Marx e muitos marxistas. Pelo contrário, a dimensão universal da ética de Kant não pode ser realizada num arranjo social qualquer. Karatani argumenta que, para o “reino dos fins” kantiano possa acontecer, é preciso uma modificação materialista do modo de troca das coisas (os bens em geral).

 Kant torna-se, assim, um interlocutor necessário no âmbito da práxis marxiana. Karatani mostra que, mesmo para o próprio Kant, a troca de mercadorias que dominava no seu próprio tempo – o capitalismo mercantil – tinha que ser transcendida como pré-condição para qualquer promulgação da ética kantiana. Essa ética, portanto, é pensável junta não apenas com a crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria e ao capitalismo, mas a teoria ética kantiana informa a práxis tal como pensada por Marx, oferecendo um relato utópico da revolução mundial.

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A “mudança criativa” vai mudar o mundo?!

Autor: Stavros Mavroudeas[1]

Num artigo recente (muito divulgado pelos círculos sistêmicos, assim como outros), Yanis Varoufakis, referindo-se à atual turbulência bancária internacional, proferiu o slogan supostamente radical “deixem os bancos queimarem”. É claro que esse autor não é famoso pela coerência das suas análises econômicas. Como ele mesmo se descreveu, é um criador de contos de fadas que se passa por um economista. O referido artigo se enquadra totalmente nesta categoria.

Além disso, as visões políticas de Varoufakis variam – muitas vezes simultaneamente – de radicais (mas nunca realmente de esquerda) a descaradamente conservadoras. Recentemente, por razões eleitorais puramente oportunistas, ele professou dar uma virada à “esquerda”. Em sua recente máscara, ele encontrou apenas alguns cúmplices dispostos e igualmente oportunistas, mas seu sucesso eleitoral ainda está em jogo. É claro que, como em suas análises científicas, a “ambiguidade criativa” (que é sinônimo de oportunismo e falta de confiabilidade) é a marca de sua virada política supostamente radical.

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A China é a maior economia do mundo

Autor: Dean Baker[1]

É normal que políticos, repórteres e colunistas se refiram aos Estados Unidos como a maior economia do mundo e à China como a segunda maior. Suponho que essa afirmação seja boa para o ego dessas pessoas, mas isso não é mais verdade. Medindo pela paridade do poder de compra, a economia da China superou a dos EUA em 2014 e agora é cerca de 25% maior do que ela. [1] O FMI projeta que a economia da China será quase 40% maior até 2028, o último ano em suas projeções.

Fonte: Fundo Monetário Internacional.

A mensuração que os apologetas dos Estados Unidos da América do Norte usam comumente é baseada na taxa de câmbio. É assim que se mede o PIB de cada país em sua própria moeda para depois converter essa moeda em dólares na taxa de câmbio atual. Por essa medida, a economia dos EUA ainda é mais de um terço maior do que a economia da China. Ora, essa medida reflete não apenas a produção, mas a força do dólar como dinheiro mundial.

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A extrema-direita como expressão do declínio do Ocidente

Autor: Alejandro Pérez Polo [1]

1. O crash de 2008: aqui começou tudo

O ano era 2012. A crise económica resultante da Grande Recessão estava a grassar na Europa. As mobilizações populares em Espanha (15M e a greve geral de março de 2012) e os protestos violentos na Grécia tinham infetado todo o mundo ocidental. Chegaram ao coração do império: em Nova Iorque, os cidadãos manifestavam-se em Wall Street através de Occupy. Não havia quase vestígios da extrema-direita em lado nenhum. Nem mesmo em França a estreante Marine Le Pen lograva chegar à segunda volta das eleições presidenciais, que haveriam ser decididas entre Sarkozy e Hollande, com uma vitória socialista.

Estava em curso uma fase de decomposição ideológica e orgânica do neoliberalismo. Os consensos económicos da globalização, após a queda da U.R.S.S., tinham sido estilhaçados para sempre. A lua-de-mel que durou de 1991 a 2008, na qual o capitalismo desenfreado conseguiu incorporar na sua lógica todos os países da ex-União Soviética, terminou. Uma subsunção formal e material de todo o globo chegara ao seu fim.

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O dólar num mundo multipolar

Autor: Michael Roberts – Blog: The next recession – 22/04/2023

Contestadores da atual ordem mundial? Ler até o fim.

Christine Lagarde, chefe do Banco Central Europeu (BCE), na forma de “keynote”, fez um importante discurso na semana passada no Conselho de Relações Exteriores dos EUA, em Nova York.

Foi importante porque ela analisou os recentes desenvolvimentos no comércio e investimento globais e avaliou as implicações do afastamento em relação ao domínio hegemônico da economia dos EUA e do dólar na economia mundial e, assim, o movimento em direção a uma economia mundial “fragmentada” e “multipolar” – onde nenhuma potência econômica ou mesmo o atual bloco imperialista do G7-plus conseguirá dominar o comércio global, o investimento e o fluxo do dinheiro.

Lagarde explicou: “A economia global vem passando por um período de mudanças transformadoras. Após a pandemia, a guerra injustificada da Rússia contra a Ucrânia, a transformação da energia em arma, a súbita aceleração da inflação, bem como uma crescente rivalidade entre os Estados Unidos e a China, as placas tectônicas da geopolítica estão mudando mais rapidamente”.

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Capital no século XXI – entre a estagnação e a guerra

Autor: Domenico Moro [1]

A realidade geopolítica do início do século XXI deve ser estudada a partir da categoria de modo de produção. Esta categoria define os mecanismos de funcionamento do capital em geral, abstraindo de economias e estados individuais. Por esta razão, devemos inter-relacionar a categoria do modo de produção com a da formação económico-social historicamente determinada, o que nos dá a imagem de estados individuais e as relações entre eles num dado momento.

Além disso, a nossa abordagem deve ser dialética, ou seja, baseada na análise das tendências da realidade económica e política. Estas tendências não são lineares, mas estão muitas vezes em contradição com outras tendências. Só o estudo das várias tendências conflituantes pode permitir-nos delinear possíveis cenários futuros.

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Compulsão muda

Como um sistema econômico tão hostil à vida perdura por séculos?

Autor: Peter Dolack[1]

Quando conceituamos o poder que mantém o capitalismo, o tema da violência e da ideologia prontamente vêm à mente. Apesar da vasta desigualdade, da exploração grotesca, do desprezo pela vida e pelo meio ambiente, da instabilidade crônica e das rebeliões que surgem repetidamente e, às vezes, tomam o poder, o capitalismo parece mais firme na sela do que nunca, lançando as suas flechas mortíferas para praticamente todos os lugares da Terra.

“Como é possível que uma ordem social tão volátil e hostil à vida possa persistir por séculos?” – pergunta Søren Mau na introdução de seu livro Mute Compulsion: A Marxist Theory of the Economic Power of Capital. A violência tem estado com o capitalismo desde o seu início – de fato, o capitalismo não poderia ter se enraizado sem a coerção maciça por meio da violência, leis draconianas, escravidão e colonialismo. As construções ideológicas que mantêm tantos escravizados tornam-se cada vez mais sofisticadas, com um vasto aparato de meios de comunicação de massa, “think tanks” e outras instituições, as reforçam os mantras burgueses, complementados por escolas, militares, locais de trabalho e outros aplicadores do condicionamento social.

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Pulsão, resistência e capitalismo

Samo Tomšič [1]

A mudança [3] para além da estreita questão psicológica sobre “quem resiste?” para a questão “de onde vem a resistência?” – a sua descentralização e afastamento do indivíduo psicológico e de sua consciência –, revelaram a Freud a onipresença da resistência. Disso resultou a fundamentação das estruturas libidinais e sociais numa ação constitutiva de resistência, a qual ele chamou de Urverdrängung, ou seja, repressão primária:

Temos motivos para assumir que existe uma repressão primária, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada na consciência do representante psíquico (ideia) da pulsão. Com isso, uma fixação é estabelecida; o representante em questão persiste inalterado a partir de então e a pulsão permanece presa a ele… O segundo estágio de repressão, repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido ou as sequência de pensamento que originaram outros lugares, entrando em conexão associativa com ele.

Por causa dessa associação, essas ideias experimentam o mesmo destino do que foi reprimido primeiramente. A repressão propriamente dita, portanto, é na verdade uma pós-pressão. Além disso, é um erro enfatizar apenas a repulsão, que opera a partir do consciente em direção ao que deve ser reprimido; tão importante é a atração exercida pelo que foi reprimido principalmente sobre tudo com o qual ela pode estabelecer uma conexão. Provavelmente, a tendência para a repressão falharia em seu propósito se essas duas forças não cooperassem, se não houvesse algo reprimido anteriormente para receber o que é repelido pelo consciente.

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