Do “homem”, talvez, ao homem (sujeito)

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

No pequeno texto que se segue faz-se um comentário sobre o escrito de Ian H. Angus, A dissolução do humanismo marxista (Angus, 2018) publicado neste blog (aqui e aqui), com o objetivo de mais bem compreendê-lo. Esse filósofo norte-americano parte da constatação de que, nos anos sessenta do século passado, o marxismo relevante – para além do marxismo soviético que dominava nos partidos comunistas influenciados pelo estalinismo – veio a ser um “humanismo marxista” ou, o que seria o mesmo, um “marxismo existencial”.

Para essa corrente, que prosperou às margens da corrente principal bem mais volumosa, haveria uma essência humana, mas ela estaria perdida por enquanto nas formas de vida social existentes e que existiram no passado. Se está assim negada pelas condições históricas prevalecentes até a atualidade, pode ser recuperada eventualmente por meio de uma luta contra essas condições, visando mudá-las.  

Angus conceitua o humanismo marxista por meio dos escritos de Erich Fromm. Em 1961, esse segundo autor publica o seu O conceito de homem em Marx, um livro inovador que continha – e no qual comentava – uma tradução para o inglês dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844.  Aí, buscando uma síntese de suas descobertas como filósofo e psicanalista, ele escrevera que “Marx era um humanista, para quem a liberdade, a dignidade e a atividade do homem eram as premissas básicas da ‘boa sociedade’” (apud, op. cit.).  Como nessa sentença o homem está posto já no início como ser humano pleno, ou seja, como senhor de si mesmo e livre nessa condição, Marx teria fundado a sua crítica do capitalismo numa antropologia positiva. Nessa perspectiva, o capitalismo como forma de organização social realmente existente permite que exista não mais do que uma contrafação do homem verdadeiro.

Ora, nessa leitura enviesada, Marx surge como um filósofo idealista: eis que ele teria tentado compreender a sociedade civil moderna a partir de uma ideia fundante de homem. No entanto, em Meu encontro com Marx e Freud, Fromm apresenta a coisa de modo bem diferente. Remetendo-se ao mesmo texto, lembra que, para Marx, “a essência do homem não é uma abstração inerente a cada indivíduo”, ou seja, uma “essência não-histórica”. Na verdade – diz –, “a natureza do homem é um determinado potencial”; pois “ele é produto da história e se transforma em sua evolução; torna-se o que é em potência.”  (Fromm, 1979, p. 32-33).

Portanto, ao invés de uma antropologia positiva, parece que agora se encontra no jovem Marx uma antropologia evolucionista já que parte do homem insuficiente, que vem pelejado em condições históricas desfavoráveis por milênios, mas também em processo milenar de desenvolvimento, no qual recria essas condições em formas superiores:

A história é o processo de criação do homem por si mesmo, pela evolução – no processo de trabalho – das potencialidades que lhe são dadas ao nascer. “O conjunto do que se chama história mundial” – diz Marx – “nada mais é do que a criação do homem pelo trabalho humano, e a emergência da natureza para o homem; ele, portanto, tem a prova evidente e irrefutável de sua autocriação, de suas próprias origens”. (op. cit., p. 33).

Após, apresentar em grandes traços, o afloramento do marxismo humanista, Angus passa a apontar para a sua dissolução e para o advento do pós-estruturalismo; eis que a subida do segundo marca o abandono do primeiro, pelo menos nos círculos filosóficos ocidentais de esquerda. Fazendo referência ao A ordem das coisas: uma arqueologia das ciências humanas de Michel Foucault (publicado em francês, em 1966), mostra como a continuidade dessa linha de reflexão marxista foi bloqueada.

O filósofo francês aponta nesse livro que uma duplicação aparece na “episteme clássica” da qual o marxismo faria parte. Trata-se de um deslise que impede o seu desenvolvimento e que marca a sua dissolução: eis que a humanidade aparece aí como sujeito transcendental e como objeto do conhecimento.

Para Foucault, esse “duplo empírico e transcendental a que se chamou homem” contraria o que denomina de “analítica da finitude”; eis que nada pode ser tomado como eterno: “o homem, na analítica da finitude, é um estranho duplo empírico e transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento” (Foucault, 1987, p. 334).

Ademais, como se pode ver pela frase citada, essa separação não é sustentável porque ela afirma e nega a humanidade ao mesmo tempo, caindo em contradição. A investigação pressupõe o homem como se ele existisse plenamente no ego transcendental, mas também como inexistente – ou a ser descoberto – nas condições sociais investigadas.

Com base nessa crítica, Foucault busca uma cientificidade mais opaca: apaga o homem como objeto de estudo em nome de uma pesquisa que investiga as condições de submissão dos indivíduos concretos às estruturas dos discursos historicamente válidos. É assim que esse filósofo francês, ao suprimir uma contradição do discurso, envereda pelo anti-humanismo.  E junto com ele, a filosofia francesa pós-68 operou para desenvolver esse campo de investigação filosófica que foi rotulado nos EUA como pós-estruturalismo.

Apresentado esse resumo – em si mesmo insuficiente para compreender o texto de Angus, mas suficiente para os propósitos deste adendo crítico –, é preciso agora ver como a dialética compreende a relação do jovem com o velho Marx. Saiba-se, entretanto, desde já, que o jovem Marx não tombou no idealismo como parece ter sugerido o autor do qual aqui se parte. E, para tanto, é preciso entrar nos labirintos dos escritos de um autor que tratou esse tema de um modo logicamente rigoroso. Ruy Fausto, o filósofo brasileiro que melhor explicou as formas da argumentação de Marx, em seu texto Sobre o jovem Marx, contido em Sentido da dialética (2015), trilha um caminho que vai da confusão para o esclarecimento.

De início, Fausto menciona que a obra do jovem Marx depois da crítica de Louis Althusser foi esquecida ou mesmo desvalorizada. Segundo ele, entretanto, mesmo se fica aquém da obra definitiva consumada sobretudo em O capital, “ela conduz para além do marxismo” (op. cit., p. 309) – ou seja, para além de uma leitura puramente econômica dessa obra. O seu reexame começa pelos Manuscritos de 1844 em que fica patente o teor antropológico dos escritos do jovem Marx:

Em primeiro lugar, é preciso dizer que os Manuscritos representam mais uma antropologia negativa do que uma antropologia positiva – o que já é diferente. O fundamento antropológico dos Manuscritos é menos o homem do que o homem alienado. Isto não nos remete ao velho Marx, mas representa uma diferença importante em relação à antropologia feuerbachiana. (idem, p. 310).

Como se sabe, Ludwig Feuerbach, ganhou um lugar na história da filosofia porque procedeu a dissolução da teologia protestante numa antropologia positiva cujo mérito foi assentar o homem na natureza e cujo demérito consistiu em idealizá-lo ainda como excelso. Pois, construiu um pensamento ateísta que partia de uma afirmação forte: eis que Deus era simplesmente uma imagem idealizada do homem. Se, portanto, o primeiro se esfumava nos céus, o segundo ganhava na terra as qualidades excepcionais a Ele atribuídas. Em seus Princípios da Filosofia do Futuro (publicado em 1843), ele escreveu que “a tarefa dos tempos modernos foi a realização e a humanização de Deus – a transformação e a resolução da teologia na antropologia” (Feuerbach , 2008, p. 6).

Se, portanto, o jovem Marx, diferentemente do velho Feuerbach, põe o homem como homem negado, ele o faz não apenas porque o despe das qualidades divinas que supostamente ainda teria, mas principalmente porque, nas condições históricas da época moderna, está submetido à lógica do dinheiro e, assim, ao trabalho que não cria apenas valores de uso, mas sobretudo, valor como tal. Se está assim posto, o que pode ainda ser suprimido quando Marx passa a apresentar o modo de produção capitalista? Ou seja, dizendo de outro modo, o que diferencia o jovem do velho Marx? Fausto tem uma resposta e ela consiste em dizer que mesmo essa posição negada está suprimida na obra madura:

Para passar dos Manuscritos ao universo do velho Marx, é necessário pôr (setzen) a “negação”, ou, se se quiser, é preciso “negar” o próprio homem negado; e isso representa, sem dúvida, um passo fundamental, mas diferente da simples passagem do homem à sua “negação” (da antropologia negativa à “negação” da antropologia. O que se perde de vista, frequentemente, é a ideia de que o homem “negado” está nos Manuscritos com tudo o que isso significa: nos Manuscritos temos, sem dúvida, o homem – antropologia, mas negado – antropologia negativa.  (idem, p. 310).

Portanto, ao invés da presença de uma antropologia negativa, o que se encontra em O capital é a sua ausência formal, ou seja, o silencio do homem enquanto tal. Eis que ele está aí mudo e quieto, esperando o desenrolar da história porque quer voltar aparecer apenas após a revolução socialista. Eis que quem fala e age ainda é o “homem” e este tem não só de continuar fazendo história, mas também de pôr o homem por meio de revoluções radicais.  

Fausto explica que Marx faz já nos Manuscritos, desde o começo portanto, uma crítica do antropologismo de Feuerbach a partir de Hegel. E essa crítica está baseada na “reabilitação da racionalidade da economia política”. Ora, isso significa que não apenas a economia política tem o que dizer, mas que ela se insere na história do homem de um modo bem revelador. Eis que consiste num movimento que torna possível – apenas possível – a passagem da pré-história para a história:

A crítica da antropologia feuerbachiana se faz pela introdução da ideia de que a história do homem não é “ainda” uma verdadeira história, mas uma história natural do homem, uma história da gênese do homem.  (…) Com efeito, se se afirmar que a história não é mais do que a pré-história do homem, o homem não está lá: perde-se então o direito de falar do homem, senão como uma pressuposição. (idem p. 311-312).

Se o devir da história é apenas possível, isso significa que o homem ainda em sua pré-história está apenas pressuposto e que isso precisa ser considerado na apresentação.

Essa pré-história não é, ademais, uma história no sentido vulgar de que ela consistiria numa mera apresentação da evolução do homem. Se assim fosse, ficar-se-ia nos limites do entendimento: haveria um ser humano cuja caráter estaria sendo preenchido aos poucos. Fausto acentua nesse sentido que é preciso compreender a questão nos termos da lógica dialética. Eis que os Manuscritos fixam (…) o movimento [de um devir apenas possível] (…): a “negação” do homem se torna posição do homem “negado”.

Mas isso é ainda insuficiente…, pois, repetindo o que foi dito, se o devir da história é apenas possível, isso significa que o homem ainda em sua pré-história está apenas pressuposto. A sua posição, vale lembrar, é apenas uma possibilidade, ainda que, como mostra a própria pré-história, trata-se de uma possibilidade real.

Para passar ao universo da maturidade será necessário, assim (…) pôr a pressuposição enquanto pressuposição. Ou, em outros termos, passar da negação do homem à negação do homem. [Perfazendo desse modo uma operação lógica que consistem em] deslocar a negação do conteúdo do fundamento ao fundamento como forma. (idem, p. 312).

A dialética enquanto forma discursiva, como explica Fausto, abstém-se sempre de pôr uma fundação primeira para deixar que passe o tempo da pré-história, aquele em que está ainda posto aquilo que precisa ser superado. Ao invés de pôr uma fundação que paralisa a temporalidade da constituição do homem, ela acolhe o homem apenas como uma pressuposição, na forma de um advento incerto que requer o concurso dos “homens” realmente existentes para que venha a existir. A partir desse ponto, Fausto faz uma série de citações dos Manuscritos de 1844, como forma de comprovar a sua tese. Essa série está reproduzida abaixo, ainda que com subtração dos termos em alemão que constam no texto original.   

Hegel só encontrou a expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da história, a qual ainda não é história efetivamente real do homem enquanto sujeito pressuposto, mas somente ato de engendramento, história do nascimento do nascimento do homem.  E como tudo o que é natural deve nascer, o homem tem também o seu ato de nascimento, a história, que entretanto é para ele uma história conhecida e por isso enquanto ato de nascimento, ato de nascimento que se suprime conscientemente. A história é a verdadeira história natural do homem. Mas como para o homem socialista toda a assim chamada história universal nada mais é do que o engendramento do homem pelo trabalho humano do que o devir da natureza para o homem, ele tem assim a prova intuitiva, irrefutável, da sua nascença através de si mesmo, do seu processo de nascimento. (idem, p. 312-313).  

Ora, isso que aqui se apresentou é também uma crítica ao anti-humanismo de Michel Foucault. Mesmo se ele é de certo modo crítico das formas de vida do “homem”, ou seja, do bípede sem plumas como mero objeto da história, ele tende a deixar tudo como está. A dialética, ao contrário, como pensamento que busca a transformação, é constitutiva da filosofia da práxis.

Contudo, esse pequeno artigo não poderia terminar sem questionar um pouco o otimismo da dialética marxiana. Por razões complexas, as quais não deixaram de ser investigadas pela psicologia social crítica[2], apareceram dificuldades de monta para que o “homem” pudesse pôr o homem na história. O destino das revoluções que se apresentaram como socialistas, o comportamento político da classe trabalhadora no centro, mas também na periferia, o aparecimento dos fascismos e dos extremismos neoliberais, tudo isso põe em dúvida o realismo das expectativas de Marx. O que surge no horizonte, agora, é antes o colapso da civilização – e não o verdadeiro socialismo.    

Referências

Angus, Ian H. – The dissolution of Marxist humanism. Texto apresentado na conferência “Then and Now: 1968-2018, na Universidade Simon Fraser, Vancouver (Canada), 2018.

Fausto, Ruy – Sentido da dialética – Marx: lógica e política. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

Feuerbach, Ludwig – Princípios da Filosofia do Futuro. Covilhã: Lusosofia, 2008.

Fromm, Erich – Meu encontro com Marx e Freud. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

Rouanet, Sérgio P. – Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2001.


[1] Professor aposentado da USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https://eleuterioprado.blob

[2] Ver Rouanet (2001), por exemplo, sobre isso.

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