Competição, Solidariedade e Laço Social
Samo Tomšič [1]
Ao invés de concluir
Lacan repetidamente argumentou que Marx inventou a noção de sintoma e acabou especificando que “há apenas um sintoma social – cada indivíduo é realmente um proletário, pois nenhum discurso pode fazer um laço social” (Lacan, La troisième). Poder-se-ia imediatamente censurar Lacan por repetir o privilégio dado por Marx ao trabalhador industrial, excluindo assim outros sintomas sociais, tais como, por exemplo, a mulher ou o escravo colonial. Mas talvez essas figuras distintas apontem para um “comum negativo”, por assim dizer, uma figura da subjetividade em estado de exclusão do laço social.
Então, o “proletário de Lacan” se colocaria como um possível nome genérico para essa subjetividade foracluída. O próprio Marx exemplificou essa rejeição na figura social do trabalhador industrial e, de maneira mais geral, insistiu que o capitalismo impõe relações sociais entre coisas (mercadorias) e não, diretamente, entre subjetividades. Nesse sentido, a economia capitalista realiza uma espécie de foraclusão do sujeito homóloga àquela operada pela ciência moderna (ver Lacan, Écrits). Depois de fazer essa observação sobre o proletário, Lacan passa a apontar a especificidade da psicanálise em comparação com outros discursos e/ou vínculos sociais:
Socialmente, a psicanálise tem uma consistência diferente dos outros discursos. É um elo entre dois [indivíduos]. Nesse sentido, a psicanálise se coloca no lugar da falta de relação sexual. Isso não basta para fazer dela um sintoma social, já que a relação sexual carece de serem todas as formas de sociedades. Isso está ligado à verdade que estrutura cada discurso. Por isso, aliás, não existe uma verdadeira sociedade fundamentada no discurso analítico. Existe uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. (La troisième).
Claro, a passagem evoca abertamente a oposição de Lacan à Associação Psicanalítica Internacional e à Sociedade Psicanalítica Francesa (da qual ele foi excluído em 1963). Ao mesmo tempo, Lacan joga com o fato de que a société (assim como seu equivalente em português: sociedade) é uma duplicidade – e um homônimo –, significando tanto uma associação institucional quanto uma formação social. Pode-se ter a impressão de que também para Lacan não existe sociedade ou que esta designa, na melhor das hipóteses, uma instituição imaginária. No entanto, este não é o ponto fulcral de seu ceticismo em relação à sociedade.
Ao contrário, tanto como prática da cura quanto como vínculo social específico, a psicanálise só existe porque há uma falta (ou melhor, uma lacuna) na relação sexual.[1] Não é sem importância que todas as formas de sociedade são organizadas em torno da “inexistência de encaixe social” [non-rapport sociale][2] e, portanto, representam tentativas de “economizar” ou de “trabalhar” essa ausência radical.
Um ponto homólogo pode ser apresentado em relação ao materialismo histórico de Marx. Também para Marx, a existência de sociedade [verdadeira] está posta por meio de uma ausência radical, ou seja, da inexistência de “encaixe social”. Se O Manifesto Comunista insiste que toda a história humana é uma história de lutas de classes, isso implica precisamente que todas as formas sociais são organizadas em torno de um não-encaixe[3]. Mostra que a maioria das sociedades conhecidas está formada por uma desigualdade social e, eventualmente, pela luta de classes explícita (uma luta entre a organização exploradora e não exploradora do ser social).
E assim como a psicanálise busca estabelecer um laço social onde “não existe encaixe sexual”, a política emancipatória também visa estabelecer um laço social onde “não existe encaixe social”.[4] Em ambos os casos, o laço social é antes de tudo um laço de trabalho: entre dois corpos falantes no caso da psicanálise e entre uma multiplicidade de corpos falantes no caso do materialismo histórico e da política emancipatória. Por fim, assim como a transferência nomeia o trabalho afetivo em análise, a solidariedade poderia ser mobilizada como um nome possível para o trabalho afetivo na política.
Psicanálise e política emancipatória se cruzam no ponto do sintoma; eis que faz todo sentido que Lacan veja na psicanálise não um sintoma social, mas um método de fazer aparecer o caráter social do sintoma. O proletário, esse sintoma comum da psicanálise e da crítica da economia política, é definido como um sujeito sem laço social; ora, é justamente isso o que precisamente demarca a inexistência de laço social ou sexual. Em outras palavras, e talvez mais especificamente, o proletário designa a subjetividade resultante do desmonte capitalista da sociedade – uma subjetividade que só pode subjetivar sob a lei do valor econômico e da troca (mercantilização, valorização, competição).[5]
Mas, precisamente porque “falta um discurso que estabelece um vínculo social”, o proletário de Lacan deve ser diferenciado do proletariado industrial de Marx (entendido como uma categoria empírica e não estrutural), pois este último está integrado em algum tipo de vínculo social, mesmo que essa integração apareça e permaneça como sintomática.[6]
O trabalhador industrial é, por um lado, a personificação de uma abstração econômica (a força de trabalho) e, portanto, está reduzido a ser uma mercadoria dentre outras, ainda que seja simultaneamente uma mercadoria produtora de mercadorias; e por outro lado, ele é uma exemplificação da subjetividade explorada, ainda que não a única: a mulher e o escravo também não passam de coisas e ao mesmo tempo coisas produtoras de coisas, mas o que os distingue do trabalhador é que eles são, de fato, excluídos do vínculo social-coisal capitalista.
No entanto, Marx elaborou o conceito de população excedente e precarizada, que corresponde melhor à compreensão de Lacan do proletário. Se, no capitalismo, a participação na esfera da produção significa tanto quanto a inclusão no vínculo (anti)social capitalista, então a população excedente descreve toda subjetividade rejeitada pela produção mercantil, uma população redundante que carece de todo laço social, que permitiria essa subjetividade resistir ativamente à exploração sistêmica e à violência.
O proletariado de Lacan, então, aponta mais para o Lumpenproletariat de Marx ou para os miseráveis da terra de Fanon: não apenas as massas sobrantes, que não têm lugar na produção social e na troca econômica, mas também a multiplicidade de corpos subjetivados, expostos a contínuos processos sexuais, raciais, econômicos e violência ambiental. De fato, todos esses corpos e identidades múltiplos apontam para o real da subjetividade capitalista; deve-se acrescentar que quando Lacan diz que “todo sujeito é realmente um proletário”, devemos reconhecer nesse “realmente” uma referência à categoria do real: o sujeito em sua posição impossível de pária do discurso, lixo produzido discursivamente.
A população excedente é certamente uma massa desorganizada, mas é também, além disso, uma figura de vida redundante, redundante pelo menos aos olhos do sistema capitalista. Essa massa merece ser rotulada como um sintoma social precisamente porque traz à tona – na verdade, à visibilidade – o processo de lumpenproletarização universal da humanidade, o fato de que o capitalismo progressivamente torna redundante a maior parte da humanidade.
Diante disso, a tarefa da psicanálise, de fato, parece impossível: proporcionar um laço social à subjetividade desprovida das condições de sociabilidade. Claramente, a psicanálise “realiza” essa tarefa apenas em relação – em solidariedade – com outras profissões impossíveis.[7] Sua principal tarefa continua sendo abrir o espaço no qual o sintoma passará a falar e assim afirmar seu caráter social (discursivo).[8] Quando Bertha Pappenheim (Anna O.), no início da década de 1880, batizou a técnica então ainda experimental desenvolvida pelo mentor de Freud, Joseph Breuer, de “cura pela palavra”, ela trouxe à tona o deslocamento fundamental, pelo qual a psicanálise ficou conhecida anos depois: a mobilização da causalidade material da linguagem na direção da cura.
Repetindo, assim o sintoma poderia ser reconhecido como uma formação social (e não apenas como um “sintoma particular”, separado de suas causas sociais). O fato de o sujeito em análise obter um laço, uma expressão afetiva no fenômeno da transferência, reflete o jogo entre a inexistência de relação sexual e a existência de laço social. A transferência vem com a lembrança de que não há laço social sem trabalho afetivo que persevera na formação desse vínculo e, justamente por isso, a psicanálise exige a dimensão da solidariedade entre analista e analisando. Também na política emancipatória os sintomas precisam falar entre si mesmos.
Ao fazê-lo, demonstram igualmente seu caráter social e se inserem no processo de construção de um vínculo, acompanhado do afeto social da solidariedade. De modo homólogo à análise, a política emancipatória afirma a inexistência do encaixe social afetivo e a necessidade da existência de laço social – e mais especificamente, a possibilidade de outra sociabilidade que não a imposta pelo mercado capitalista, a relação antissocial da competição acompanhada do afeto do ressentimento.
A psicanálise e a política emancipatória são atividades ou práticas impossíveis porque se resumem a um processo de trabalho aberto no qual devem lidar com a ambivalência dos afetos: a transferência oscila entre positivo (amor) e negativo (ódio); a solidariedade também pode ser positiva (inclusiva) ou negativa (exclusiva) – neste último caso ela se torna ressentimento.
E assim como muitas vezes falham a política e a pedagogia – no sentido de renovarem relações exploratórias atreladas à figura da autoridade – a prática psicanalítica permanece exposta ao abuso da transferência. Em todas as três profissões, porém, a solidariedade desempenha um papel igualmente importante, na medida em que não apenas designa um vínculo afetivo não explorador entre corpos falantes e, de fato, entre sintomas; sinaliza igualmente um processo contínuo de trabalho sobre tais vínculos sociais e, portanto, também um trabalho sobre a solidariedade.
A solidariedade sempre vem com um loop interno, que pode indicar sua colocação na fronteira entre o subjetivo e o social, um afeto que sustenta a consistência do sujeito (poderia falar aqui de solidariedade internalizada) e da intersubjetividade (poderia chamá-la de solidariedade exteriorizada).
Ao mesmo tempo, a solidariedade também pode ser o afeto que nos permite liberar a diferença (entre corpos, identidades e subjetividades) das estratégias capitalistas em curso e em processo de intoxicação da vida. Desnecessário lembrar, se a diferença permanece toxicamente investida de ressentimento, a multiplicidade das lutas emancipatórias permanece presa na (não) relação de competição mútua, onde a subjetividade política é desorganizada e o
[1] “Não há encaixe sexual” é a famosa “abreviação” de Lacan da teoria da sexualidade de Freud. Ao introduzir uma concepção ampliada da sexualidade, Freud insistiu que a sexualidade humana sempre se destaca da anatomia e da biologia. Longe de serem enquadramentos normativos, a biologia e a anatomia são constantemente subvertidas pela pulsão sexual. Consequentemente, a sexualidade nunca é organizada em torno de uma relação estável e unívoca entre dois presumivelmente “sexos naturais”.
[2] N. T.: Para Marx, relação social é o nexo interno estrutural entre humanos que permite as interações sociais. Lacan, quando fala em “relação social” (non-rapport sociale], não se refere a nenhuma dessas duas acepções. Ele se refere a uma terceira que ele expressa pela palavra “rapport” do francês. Eis que ao falar em inexistência de relação social, ele está dizendo que não há “encaixe afetivo” e, também, um laço social, ou seja, que os afetos nunca se encontram de fato, adequadamente, e que, por isso, dois humanos nunca formam uma “unidade humana por meio do sexo”. Como a tradução para o inglês do original usa o termo “relação” por falta de uma boa tradução, tem-se uma confusão. O leitor deve se precaver contra esse uso problemático desse termo na leitura de textos de Lacan ou de lacanianos. Ademais, como Lacan é estruturalista, ele não é capaz de pensar a relação social ao modo de Marx. Para expressar o vínculo (externo) entre os indivíduos sociais que formam a família, as empresas etc., ele usa a expressão “laço social”.
[3] N. T.: Ou seja, não laço, falta de laço.
[4] Ao contrário disso, podemos concluir da observação de Thatcher que para o neoliberalismo existe apenas (e apenas um) laço social (antagônico diria Marx): a relação de competição; e apenas um laço sexual: a família tradicional. Portanto, não só não existe sociedade, mas também, além disso, não existe sexualidade. Para ser mais preciso, não existe sexualidade no sentido freudiano ampliado, ao passo que a sexualidade no sentido reprodutivo certamente existe. Do ponto de vista freudiano, a sexualidade neste sentido restrito, pseudo-naturalista, é uma fantasia violenta e exploradora
[5] Poderíamos talvez dizer que no ato abstrato da troca econômica – o quid pro quo ideal, do qual toda desigualdade real é removida – a economia política concebeu uma relação social fantasmática, embora sem sociedade. Pode-se impor essa fantasia de relação apenas sob a condição de total hostilidade contra a existência da sociedade.
[6] N. T. Samo Tomšič faz confusão aqui. O proletário para Marx é uma categoria estrutural, uma posição na relação social de capital, a qual tem expressão empírica, o trabalhador industrial – como, aliás, não pode deixar de ser. Mesmo se há um vínculo social-coisal entre o capitalista e o trabalhador industrial, falta de fato um laço social entre eles. Eis que são estranhos entre si. Logo, o proletário é categoria abrangente que inclui o trabalhador industrial e pode incluir também os trabalhadores precários, as trabalhadoras do lar etc.
[7] Para Freud, as três profissões impossíveis eram governar, educar e analisar, às quais Lacan surpreendentemente acrescentou a de fazer ciência. O ponto é que todas as quatro práticas – política, pedagógica, terapêutica e epistêmica – devem organizar a subjetividade política de uma maneira que avance os processos em curso de emancipação social. Desnecessário acrescentar, uma vez que todos os quatro processos se desenrolam em um ambiente hostil marcado pela antissocialidade do capitalismo, eles estão ininterruptamente expostos ao fracasso. É esse antagonismo interno que Freud se esforçou para acentuar com o rótulo de “profissões impossíveis”, que não são possíveis sem tensões internas, com as quais devem aprender a trabalhar.
[8] Lacan repetidamente jogou com a equivocidade do termo discurso, que carrega o duplo sentido de fala (articulada) e estrutura de relações intersubjetivas (laço social), trabalhando dentro e entre os corpos falantes e organizando-os tanto em um grupo social quanto como unidades particulares.
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