Samo Tomšič [1]
A mudança [3] para além da estreita questão psicológica sobre “quem resiste?” para a questão “de onde vem a resistência?” – a sua descentralização e afastamento do indivíduo psicológico e de sua consciência –, revelaram a Freud a onipresença da resistência. Disso resultou a fundamentação das estruturas libidinais e sociais numa ação constitutiva de resistência, a qual ele chamou de Urverdrängung, ou seja, repressão primária:
Temos motivos para assumir que existe uma repressão primária, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada na consciência do representante psíquico (ideia) da pulsão. Com isso, uma fixação é estabelecida; o representante em questão persiste inalterado a partir de então e a pulsão permanece presa a ele… O segundo estágio de repressão, repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido ou as sequência de pensamento que originaram outros lugares, entrando em conexão associativa com ele.
Por causa dessa associação, essas ideias experimentam o mesmo destino do que foi reprimido primeiramente. A repressão propriamente dita, portanto, é na verdade uma pós-pressão. Além disso, é um erro enfatizar apenas a repulsão, que opera a partir do consciente em direção ao que deve ser reprimido; tão importante é a atração exercida pelo que foi reprimido principalmente sobre tudo com o qual ela pode estabelecer uma conexão. Provavelmente, a tendência para a repressão falharia em seu propósito se essas duas forças não cooperassem, se não houvesse algo reprimido anteriormente para receber o que é repelido pelo consciente.
O caráter constitutivo da resistência revela, neste último caso, a principal ação da estrutura: a estrutura é o que resiste, a estrutura é a resistência. Se nos escritos de Freud a repressão aparece como um mecanismo de defesa direcionado a algo (trauma, contradição, memória, unidade etc.), então a repressão primária responde pela resistência, o que precede o resistido e é constitutivo da diferença entre a resistência e o resistido. Em outras palavras, se a repressão é a resistência em seu caráter reacionário, a repressão primária significa resistência como ação produtiva, produção de diferença, contradição ou conflito psíquico, em relação ao qual resistência é constituía, portanto, a repressão propriamente dita aparece como “pós-pressão”.
A repressão secundária é então uma ação incitada pela repressão primária e em continuidade direta com ela ou com a sua resistência constitutiva. Freud observa que a força da repressão é dividida internamente. Se vista da perspectiva da consciência, ela aparece como repulsa, que parece manter o reprimido longe da consciência. Pelo contrário, se vista da perspectiva do inconsciente, ela aparece como uma força de atração. Esta última demanda o trabalho de repressão como um meio de satisfação pela tendência reprimida, a pulsão, que nem mesmo não pode aparecer na vida consciente como tal.
O reconhecimento do nível primário de resistência em termos de Urverdrängung e o fundamento das estruturas libidinais e sociais em uma resistência constitutiva complica significativamente as tarefas de análise e, de fato, a torna uma profissão impossível. A clínica implica trabalhar na disfunção e no desequilíbrio que definem a estrutura, combatendo as feridas que o discurso (linguagem, vínculo social, ordem econômica) causam no corpo e na mente do sujeito. Em outras palavras, a análise representa o processo de trabalho através do real da estrutura, por meio de suas impossibilidades. Isso pode ser visto na equação repetida por Lacan que Real é o impossível, algo que é “impossível de sustentar”, as consequências consumidoras e insuportáveis do que Freud descreveu como a junção do mental com o corpo.
Aqui, o esforço psicanalítico por elevar a posição subjetiva do analisando da impotência à impossibilidade se torna aparente de novo. Enquanto na posição de impotência, todo trabalho inconsciente é consumido para sustentar a repressão, a forma predominante de satisfação da pulsão, a posição de impossibilidade permite a “divisão do trabalho” analítica que divide esse consumo aberto e mobiliza o impasse estrutural, as impossibilidades e contradições da economia libidinal e das estruturas sociais, a fim de afrouxar a fixação existente da pulsão e desencadear um processo de sublimação. O imperativo analítico, Wo Es war, soll ich werden, representaria o esforço de forçar a mudança da estrutura como resistência à estrutura como vir a ser ou da fixação do impulso para a flexão da pulsão.
Isso certamente não implica que a resistência estrutural seja totalmente superada. Freud permaneceu pessimista a esse respeito. O que a análise busca, pelo contrário, é a conversão ininterrupta da resistência sem que ela se torne um vir a ser, ou seja, uma dinamização da estrutura que não assume a construção de uma estrutura completamente modificada, livre de impossibilidades e contradições, ao final desse processo. Ao assumir a posição de impossibilidade, o sujeito se torna o local de um conflito entre dois imperativos, formas e objetivos do trabalho.
Em contraste com a psicanálise freudo-lacaniana, a psicologia e várias variantes da psicoterapia permanecem no nível em que a resistência é restrita ao ego do analisando e onde a meta vem a ser a adaptação ou a reintegração do indivíduo em uma determinada estrutura socioeconômica. A esse respeito, a psicologia e a psicoterapia executam a tarefa de “costurar aparências”, uma tarefa que segundo Freud contribuiu, ainda que de outro modo, para as visões de mundo filosóficas e religiosas. O seus esforços contribuíram assim para a intensificação da repressão, que, surpreendentemente, reproduz a ordem socioeconômica exploradora. É de admirar que a resistência epistêmica à psicanálise seja o resultado?
A despsicologização do conflito psíquico revela a conexão íntima entre repulsão e atração, dependendo da perspectiva que se assume ao analisar o trabalho da repressão (Verdrängungsarbeit). O que aparece como um mecanismo de defesa psicológico passa por uma transformação contínua na resistência da pulsão por meio da atração/extração do prazer excedente do trabalho de repressão. No conflito psíquico, em que o sujeito assume a posição de impotência, a resistência ao impulso é convertida com sucesso em resistência da pulsão, o que sustenta a sua fixação no objeto e reproduz os seus caminhos de satisfação.
Adicionalmente, a pulsão revela que existe um vínculo íntimo entre resistência e compulsão para repetir. Ambas se reúnem na demanda por gozo, o que mostra a repetição compulsiva do ato de satisfação. Freud, em várias ocasiões, chamou a atenção para o fato de que o Id está em aliança com o superego, o que significa que a demanda de gozo obtém a sua expressão na lei: o gozo se torna imperativo.
O superego não é, portanto, apenas aquela instância que proíbe o gozo; ao invés, ele eleva a demanda da pulsão a um imperativo categórico. No universo capitalista, o dever final de todos os sujeitos é a produção de prazer por causa do prazer, em outras palavras, tornar-se o que Lacan chamou de “o trabalhador ideal” (no que combinou, assim, a noção de trabalho abstrato de Marx[2] com a noção de trabalho do inconsciente de Freud). Para esse superego o imperativo é gozar: Jouis! O sujeito, por sua vez, só pode responder assim: J’jouis! “Eu ouço” ou “entendo ” daí a submissão ao trabalho. Consequentemente, o outro lado desse imperativo é a demanda por trabalho inútil por causa do trabalho. Novamente, encontramos o parasitismo da infinidade virtual e suas consequências mortificantes – ou seja, Verausgabung (gastos/exaustão) – para o sujeito.
No reconhecimento dessa dimensão fatal do gozo, o aspecto mais radical das descobertas clínicas e os desenvolvimentos metapsicológicos de Freud entram em cena: a pulsão de morte. Na compulsão de repetir, ou mais precisamente na interdependência da repetição e da resistência no centro da produção do gozo, Freud descobriu um “algo a mais”, em primeiro lugar algo demais para os próprios psicanalistas suportar.
Devido aos mal-entendidos que ainda acompanham o conceito, sempre vale a pena repetir que a pulsão de morte nunca foi pensada para designar algum esforço misterioso ou irracional para a morte ou mesmo uma simples tendência persistente para retornar ao estado sem vida da matéria, embora Freud ocasionalmente tenha escrito tais coisas. A pulsão de morte representa a indiferença radical e o desinteresse da demanda inconsciente por gozo em relação às tendências de autopreservação do próprio sujeito e, na verdade, inerentes à própria vida.
Nesse ponto, vale lembrar a famosa definição de vida de Xavier Bichat; ele a apresentou como um “conjunto de funções, que resistem à morte”; nela, a vida já é pensada do ponto de vista da resistência. Bichat, aqui, parece ter pelo menos intuído algo semelhante à noção de repressão primária de Freud: as estruturas da vida acabam se resumindo à resistência, que economiza a diferença entre vida e morte. Mas a descoberta freudiana, no entanto, contém um deslocamento crucial em relação à perspectiva de Xavier Bichat.
Bichat não reconheceu a repetição compulsiva no fenômeno da resistência, o que era crucial para Freud. Portanto, no cenário bio-ontológico especulativo freudiano, a diferença entre vida e morte é internalizada e a própria morte muda de significado. Não representa mais o fim da vida no sentido cotidiano do termo, mas, ao invés, a vida que se esforça por mais vida, para a produção excedente de vida na vida, sob um fundo da falta de vida na vida – a produção que inevitavelmente se manifesta de maneira destrutiva. A resistência da vida em si é aqui redobrada internamente em resistência como autopreservação (e, nessa medida, Freud fala da pulsão de autopreservação) e a resistência como produção de vida além da vida, da vida excedente (e, nessa medida, Freud fala de pulsão de morte).
A introdução do conceito de pulsão de morte ocorre num fundo de reconhecimento de que a vida da pulsão (Triebleben) exibe constantemente uma indiferença radical à vida do sujeito e que essa indiferença inevitavelmente se manifesta como a resistência da “morte” às tendências de autopreservação presentes no sujeito e dele próprias. Eis que essa morte, para repetir novamente, não representa mais o fim da vida, mas para o vitalismo invertido da pulsão, a conversão da resistência à morte na resistência mortificadora da pulsão. Parafraseando Freud, pode-se dizer, é claro, que o indivíduo ou o organismo quer viver, mas que há algo nesse indivíduo ou nesse organismo quer viver mais do que o próprio indivíduo. A autopreservação da vida, ou resistência da vida contra a morte, contém uma teleologia que sai pela culatra.
Enquanto em Bichat, a oposição entre vida e morte ainda pode ser entendida como externa e sua definição de vida por meio da resistência integrada na compreensão teleológica da autopreservação, para Freud a vida envolve um antagonismo mais dramático entre a autopreservação do organismo e o autopreservação da pulsão. Repetindo, a morte aqui não representa mais um estado privado de vida, mas uma força pulsional constante e compulsiva no interior da própria vida, a morte como pulsão. Para Freud, a vida seria, portanto, definida por meio da partição da resistência em resistência à morte (autopreservação) e resistência de morte (pulsão de morte).
A segunda resistência representa a subordinação de todas as funções vitais para a produção de gozo excedente. Repetindo, de acordo com a especulação bio-ontológica de Freud em Além do princípio do prazer, a produção de vida em excesso consiste no objeto privilegiado da morte de morte. Com a pulsão da morte, Freud concebeu a vida como um processo compulsivo e como um processo de alienação. Somente aqui fica claro que a psicanálise, como Freud a concebeu, de forma alguma promove um vitalismo ingênuo (“potenciais criativos da pulsão etc.), mas assume, ao invés, um ponto de vista nitidamente crítico.
Novamente, Freud é aqui mais radical que Bichat: a vida não é simplesmente um conjunto de funções vitais que resistem à morte enquanto o limite imanente da vida, expondo assim a sua finitude, mas, de outro modo, uma força conflitual internamente dividida, que se relaciona consigo mesma por meio da resistência ao seu próprio excesso imanente. A pulsão de morte representa o parasitismo da infinidade virtual sobre a finitude – e o escândalo do livro de Freud, Além do princípio do prazer, consiste na tese de que esse parasitismo não apenas caracteriza a vida cultural, mas também a vida biológica, rejeitando assim antes toda fetichização da vida e, de modo mais geral, todo “vitalismo positivo” fundamentado na rejeição da negatividade (algo que a definição de vida de Bichat em termos de resistência contra a morte ainda sustenta, ou pelo menos pode ser apropriada).
Em seu controverso passo especulativo além da estrutura clínica inerente à psicanálise, Freud acreditou que poderia legitimamente estender suas observações sobre a pulsão na esfera da vida cultural para a vida biológica, afirmando, consequentemente, que as funções vitais de todos os organismos biológicos contêm o mesmo excesso imanente que as funções simbólicas do ser falante. Em outras palavras, a vida como tal aparece como uma doença ou pelo menos é acometida por uma doença chamada excedente de gozo. Embora a extensão dessa dimensão da pulsão ao campo biológico feita por Freud seja um alvo fácil para as críticas – e ele foi extensivamente criticado por muitos psicanalistas. Ademais, ele provocou algo como uma resistência à psicanálise na própria psicanálise –, mas, apesar disso, na verdade, formulou uma lição crítica e materialista crucial.
Este último retroativamente fornece valor especulativo para o material clínico mais banal, um lembrete de que a vida da pulsão e o conflito que essa vida implica não devem ser contrastados ou opostos à ideia de algum tipo de vida homeostática e harmoniosa. Nesta, todos os traços de negatividade e conflito estariam removidos, de tal modo que o único conflito subsistente seria o da finitude. Não há vida sem negatividade e, mais especificamente, não há vida sem infinito virtual. Para Freud, o problema não está na finitude da vida, no fato inevitável de que “todas as coisas devem passar”, mas sim que, embora essa finitude se esforce para se autopreservar, sua falta ou incompletude ontológica está sendo explorada para sustentar a preservação de uma demanda infinita e insaciável por gozo excedente.
A pulsão aponta para a “oposição” da vida contra a vida, para além da oposição da vida contra a morte, portanto, para além do princípio do prazer, na medida em que o princípio do prazer ainda se move dentro da oposição de prazer e desprazer. Ora, o reino além do princípio do prazer supera a oposição, revela seu caráter fictício e leva o desprazer, ou o que o sujeito experimenta como desprazer, como mais uma fonte de prazer.
Do ponto de vista da pulsão de morte, a morte se torna uma fonte privilegiada de prazer pelo prazer (ou seja, prazer excedente). Traduzido em uma estrutura capitalista, a morte – e particularmente a guerra como a forma mais organizada de morte, a morte como indústria militar –, é uma fonte crucial de valor excedente. Com a pulsão de morte, Freud realmente traz sua concepção de prazer à culminação, que é totalmente estranha à identificação aristotélica do prazer com o bom. Do ponto de vista da pulsão de morte, o prazer aparece na forma do prazer compulsivo, prazer pelo prazer ou gozo excedente. Aqui a conclusão só pode ser que o prazer é o mal.
Outro detalhe que sempre vale a pena lembrar é que Freud introduziu a pulsão de morte para descrever a natureza excessiva da pulsão como tal e não como uma pulsão separada. Em outras palavras, a pulsão de morte não é algo a ser adicionado ao impulso sexual e à multiplicidade das chamadas pulsões parciais (pulsão oral, pulsão anal, pulsão escópica etc.), mas designa a persistência comprovante do Demanda por desfrute excedente de todas as fixações em particular do impulso (prazer oral, prazer anal, prazer escópico, prazer intelectual etc.).
Com a pulsão de morte, Freud chega à formulação metapsicológica sobre o nível último de resistência que a psicanálise tem de enfrentar em sua teoria e prática. É a justificativa final sobre o porquê a sua prática merece o título “profissão impossível”. Além disso, o capitalismo começa a aparecer como o modo social de produção que mobilizou com mais eficiência essa dimensão excessiva da pulsão. A expressão mistificada dessa mobilização poderia realmente ser reconhecida na ideia do “sujeito automático”, o aumento aparentemente automático e espontâneo do valor econômico, que é precisamente não compulsivo. A hipótese da existência de um sujeito automático permanece idealista não apenas porque ignora que tal figura do sujeito não pode ser “realizado” sem exploração social, mas também porque perde de vista o vínculo entre capital, entendido como a pulsão de autovalorização e compulsão.
Somente esse último é uma determinação adequadamente materialista do capital. Portanto, se a cultura sempre contém a realização da pulsão de morte, então a indiferença do capitalismo, sua busca agressiva pelo valor excedente, sua organização de produção social em torno do imperativo de produção em prol da produção parece sugerir que o capitalismo é uma cultura da pulsão de morte por excelência, uma cultura de resistência organizada a qualquer forma de vida, que não esteja em conformidade com o “vitalismo” do capital, a tendência do capital à autovalorização.
[1] Samo Tomšič é atualmente professor de filosofia visitante na University of Fine Arts Hamburg; é também pesquisador associado ao Humboldt University de Berlin. Publicações recentes: The Capitalist Unconscious: Marx and Lacan (Verso, 2015) and The Labour of Enjoyment: Toward a Critique of Libidinal Economy (August Verlag, 2019/2021).
[2] N.T.: Lacan e Tomšič julgam que “trabalho abstrato” em Marx é o mesmo que “trabalho em geral”, ou seja, um gênero. O que está errado, pois essa categoria em Marx só pode ser entendida como “trabalho reduzido”, ou seja, trabalho concreto reduzido a quantum por meio de uma abstração que pressupõe o gênero, mas põe uma medida. Ora, um processo como esse não existe na psique, logo não existe homologia entre trabalho abstrato em Marx e trabalho psíquico em Freud/Lacan (Seminário, Livro 16). Portanto, não há uma base natural (ou seja, intrínseca à natureza humana) para sustentar a existência possível e a resilência permanente do capitalismo como parecem fazer esses autores. Pode-se pensar que o ser humano é um ser insatisfeito (o seu devir é um infinito qualitativo), mas não um ser insaciável (o capital é insaciável porque ele é um devir infinito quantitativo).
[3] Excerto do capítulo VII do livro The Labour of Enjoyment – Towards a critique of libidinal economy. August Verlag, 2019.
Você precisa fazer login para comentar.