A crise do capitalismo formalmente democrático

Autor: Michael Roberts

The next recession blog – 12/02/2022

Em seu último livro, o colunista do FT e guru keynesiano Martin Wolf parte da premissa de que capitalismo e democracia andam juntos como uma mão em uma luva. Mas ele está preocupado: “vivemos em uma época em que as falhas econômicas abalaram a fé no capitalismo global. Alguns agora argumentam que o capitalismo é melhor sem democracia; outros que a democracia é melhor sem o capitalismo”.

No entanto, em seu livro, Wolf afirma que, embora “o casamento entre o capitalismo e a democracia tenha se tornado preocupante”, qualquer “divórcio seria uma calamidade quase inimaginável”. Apesar dos passos vacilantes do capitalismo no século XXI: desaceleração do crescimento, aumento da desigualdade, desilusão popular generalizada, o “capitalismo democrático“, como ele chama o sistema da relação de capital, “embora inerentemente frágil, continua sendo o melhor sistema que conhecemos para o florescimento humano”.

Wolf define “democracia” como “sufrágio universal, democracia representativa, eleições livres e justas; participação ativa das pessoas, como cidadãos, na vida cívica; proteção dos direitos civis e humanos de todos os cidadãos igualmente; e um estado de direito que vincula igualmente todos os cidadãos”. Por capitalismo, “quero dizer uma economia na qual os mercados, a competição, a iniciativa econômica privada e a propriedade privada desempenham papéis centrais”.

Wolf reconhece que “o capitalismo e a democracia são opostos complementares: eles precisam um do outro para que cada um dos dois prospere”. Talvez mesmo ele esteja certo de que uma autocracia fascista como sustentação do capitalismo e dos donos do capital – uma possibilidade real nesta, na próxima década ou mais além – seria a última alternativa disponível para o capitalismo. Pois, assim, o capitalismo seria finalmente exposto não como um “complemento” da democracia, não como a mãe da democracia, mas como o seu oposto e o seu destruidor.

Não é à toa que esteja preocupado, pois em seus livros anteriores elogiou o sucesso do progresso capitalista no mundo como um todo. Agora, ele vem dizer que “eventos subsequentes mostraram que essa confiança foi construída sobre alicerces frágeis. As finanças liberalizadas mostraram-se instáveis. Percebi isso durante a crise financeira asiática, conforme expliquei em meu livro Why Globalization Works. Mas a preocupação tornou-se ainda mais forte após a crise financeira global e a Grande Recessão de 2007-09, que foram o foco de um livro subsequente, The Shifts and the Shocks. Além disso, a economia mundial está já há algum tempo gerando desequilíbrios macroeconômicos desestabilizadores”.

Algo precisa ser feito – julga ele. Pois, para Wolf, há uma contagem regressiva marcando o fim do “capitalismo democrático”: “quando olhamos de perto para o que está acontecendo em nossas economias e em nossos sistemas políticos, devemos reconhecer a necessidade de mudanças substanciais se os valores ocidentais de liberdade, democracia e esclarecimento devem sobreviver.” Contudo, parece que as pessoas não estão querendo mais o capitalismo democrático. Ora, “Karl Polanyi argumentou que os seres humanos não tolerariam uma vida longa sob um sistema de mercado verdadeiramente livre. A experiência das últimas quatro décadas justificou esse ponto de vista.” 

O que mais o preocupa é a possibilidade de revolução. Da mesma forma que o reacionário Edmund Burke do século XIXcondenou a revolução francesa, o objetivo agora deve ser evitar a revolução porque ela leva à “destruição e ao despotismo. Somente o poder desenfreado pode entregar uma derrubada revolucionária da ordem existente. Mas o poder desenfreado é destrutivo por natureza: ele destrói a segurança na qual as relações humanas produtivas podem ser baseadas e vidas decentes podem ser vividas”.

Wolf acredita no desenvolvimento benevolente do capitalismo democrático. Líderes esclarecidos transformam as economias baseadas em servidão em capitalismo e as autocracias em democracia. Ora, a democracia nunca foi um presente, uma gentileza, dos capitalistas para o povo em geral. A democracia que temos agora proveio de uma luta popular contra a amarga oposição dos poderes que existiram ao longo dos séculos, empreendida por muitos contra poucos.

As pessoas tiveram que lutar para acabar com a escravidão e o comércio de escravos; tiveram que lutar pelo voto (os cartistas lutaram pelo direito de reunião; os trabalhadores tiveram de lutar para organizar sindicatos (é preciso lembrar aqui dos mártires de Tolpuddle); o povo teve de lutar pelo estado de direito (contra as monarquias e os ditadores), arrancado tudo isso das mãos do capital.

Foi a luta de classes (“toda a história anterior é a história da luta de classes”) que alcançou até mesmo essas formas limitadas de democracia desfrutada agora por alguns dos seres humanos que habitam o mundo. De fato, quando o capitalismo se transformou em imperialismo no final do século XIX, não havia democracia para bilhões no mundo colonial (existia apenas repressão cruel – seja na Irlanda, na Índia, no Vietnã etc.).

Wolf não quer revoluções, mas foi somente por meio de revoluções que as pessoas ganharam direitos da mão sovina do capital. A Guerra da Independência Americana libertou os colonos do controle autocrático do estado britânico. A revolução francesa pode ter sido sangrenta, eventualmente se transformou numa ditadura (Napoleão), mas também acabou com a monarquia absoluta, os direitos feudais e estabeleceu alguma forma de assembleia nacional e o estado de direito. Isso teria acontecido por meio de algum processo de mudança gradual por meio da atuação de comerciantes e capitalistas benevolentes?

Os mesmos contrafactuais podem ser aplicados às revoluções russa e chinesa. Se a primeira não tivesse ocorrido, teria havido a possibilidade de uma democracia na Rússia? Ora, em vez disso, ter-se-ia a continuação do czarismo absolutista. Um governo de uma oligárquica corrupta, tal como a Rússia tem agora, poderia ter advindo? Sem a revolução, a China teria se livrado pacificamente da ocupação japonesa, do controle imperialista estrangeiro e do “senhorio da guerra” em direção a um governo centralizado baseado no capitalismo que tiraria os chineses da pobreza? Não foi necessário que um Estado chinês tivesse tentado abolir o capitalismo (sob Mao) e planejasse a economia para obter esse resultado?

Supõe-se em geral que o capitalismo americano é o epítome do capitalismo democrático. Ora, é certo que Wolf levantaria esse argumento. No entanto, o capital americano lutou contra os direitos civis, contra os sindicatos, contra a tributação dos ricos, contra a igualdade perante a lei – e tudo aconteceu na era de ouro do “capitalismo democrático”. Wolf agora está preocupado com a ascensão do trumpismo e do populismo que ameaçam a democracia. Mas ele parece não ter nada a dizer sobre o bushismo que ascendeu antes deste último.

O capitalismo americano promoveu a democracia em sua invasão do Iraque e do Afeganistão? E quando houve um governo socialista eleito democraticamente no Chile, na década de 1970, o capitalismo aceitou mudo a democracia lá existente ou organizou e apoiou um golpe militar brutal que aboliu todos as normas democráticos tão apreciadas por Wolf?

O capital global apoiou a luta de décadas contra o regime de apartheid da África do Sul; ou, em vez disso, sustentou e concordou com as prisões e execuções de líderes negros que lutavam pela democracia? O capitalismo democrático condena atualmente o pesadelo do regime saudita absolutista de xeques não eleitos que estão travando uma guerra terrível no Iêmen; ou apoia esse regime assassino por meio da mídia “democrática” e com armas?

De acordo com Wolf, a expansão do capitalismo e da economia de mercado globalmente andou de mãos dadas com a ascensão das democracias em todo o mundo. Eis o gráfico que apresenta em seu livro:

Nesse ponto, ele cita Marx e Engels do Manifesto Comunista como se esse panfleto político predissesse o sucesso do capitalismo em meados do século XIX.  “Karl Marx e Friedrich Engels entenderam isso. No Manifesto Comunista, um dos documentos mais importantes do século XIX, eles descreveram brilhantemente a economia capitalista emergente.” Acho que é por isso que, no lançamento de seu livro na London School of Economics, Wolf parece ter dito algo assim: “você não pode ser um cientista social inteligente a menos que seja um marxista”. 

Claro, ele estava ignorando deliberadamente o outro lado da moeda capitalista que o Manifesto também mencionava. Com a acumulação e o crescimento capitalista veio a intensa exploração do trabalho humano. O capitalismo emergiu de modos de produção anteriores, não por meio de alguma expansão benigna da democracia, mas por meio da destruição de terras comuns e dos cercamentos, forçando as pessoas a se tornarem trabalhadores assalariados para o capital; assim como, também, pela repressão dos povos indígenas que os levou à subjugação e à escravidão.

O capitalismo não surgiu como um “oposto complementar” à democracia, mas foi construído sobre a acumulação de capital facilitada pela escravidão: “a escravidão velada dos trabalhadores assalariados na Europa precisava, para seu pedestal, da escravidão pura e simples no novo mundo… o capital sai pingando da cabeça aos pés, por todos os poros, com sangue e sujeira”. (Marx, O Capital).

A posição de Wolf é ingênua ou simplesmente hipócrita. Ele ignora as contradições e, assim, os “opostos complementares” do capitalismo democrático liberal. Em vez disso, ele destaca que o verdadeiro inimigo da democracia não é apenas o trumpismo, mas “a ascensão da autocracia em todo o mundo e, acima de tudo, pelo aparente sucesso do capitalismo despótico da China”.

E aqui vem o apelo quase desesperado de Wolf. Considerando que, na década de 1990, era convincente e esmagador que um capitalismo democrático liberal estava no horizonte futuro, ele apoiou a (in)fam(e)osa declaração de Francis Fukuyama de que, com o colapso da União Soviética, chegava-se ao “fim da história”, ou seja, no ponto final da evolução ideológica da humanidade e, ademais, na universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano”. Mas agora tudo parece decepcionante.   

Por que tudo deu errado? É a economia, estúpido! Afinal, parece que a economia capitalista não é tão bem-sucedida assim: “a decepção econômica é uma das principais explicações para a ascensão do populismo de esquerda e de direita nas democracias de alta renda”. Agora, “muitas pessoas em países de alta renda condenam o capitalismo global das últimas três ou quatro décadas por esses resultados decepcionantes. Em vez de gerar prosperidade e progresso constante, gerou desigualdade crescente, empregos sem futuro e instabilidade macroeconômica”.

Por que o capitalismo está falhando? Wolf primeiro admite que a “era de ouro” em que prosperou a chamada “economia mista” keynesiana, onde o mercado podia ser “gerenciado” por políticas governamentais sábias para evitar as crises econômicas e os excessos dos mercados, não durou muito. Foi desacreditado pela “combinação de alta inflação com alto desemprego”; ademais, a interferência do governo só piorou as coisas, reduzindo a lucratividade das empresas e diminuindo a produtividade.

Então, na década de 1980 veio o período neoliberal, em que a desigualdade de renda e riqueza aumentou acentuadamente e o setor financeiro começou a assumir o controle, levando a uma queda no investimento produtivo e, portanto, a um baixo crescimento da produtividade. Ascendeu assim o que Wolf chama de “capitalismo rentista”. Portanto, é tudo culpa da mudança do capital industrial produtivo progressivo para o capital financeiro frágil e improdutivo: “a fragilidade macroeconômica que assola os países de alta renda deveu-se em grande parte à dependência do sistema financeiro para gerar demanda”. 

Esse capitalismo rentista tem muitos aspectos ruins: “financeirização, (má) governança corporativa, mercados em que o vencedor leva tudo, rendimentos de aglomeração, fraquezas da concorrência, elisão e evasão fiscal, busca de renda e erosão dos padrões éticos”. Wolf fornece todo um capítulo com uma série de gráficos reveladores do aumento da desigualdade, da queda do crescimento e da produtividade, da ascensão do setor financeiro, do fim da expansão do comércio global etc. – ou seja, aquilo que o FMI chama agora de globalização lenta (slowbalization).

Esse mal-estar se mostrou especialmente após a Grande Recessão de 2008-9 e nos dez anos anteriores à crise pandêmica – o período que chamo de longa depressão. “As economias do mundo ocidental estão mais pobres do que se imaginava há dez anos. Agora, elas podem esperar por um longo período de contenção.” Meu Deus!

Ora esses sintomas têm explicação. Por que o capitalismo da “idade de ouro” da década de 1960 deu lugar primeiro à “estagflação” na década de 1970 e depois à queda no crescimento da produtividade, assim como a uma economia rentista nas duas últimas décadas do século XX? Wolf sugere apenas que esse “mal-estar é em parte o resultado de forças profundas e inescapáveis, especialmente a desaceleração do crescimento da produtividade, o impacto desequilibrado de novas tecnologias, mudanças demográficas e ascensão de países emergentes, especialmente a China”. Ora, Wolf não oferece uma explicação adequada: ele não se lembra do papel depressivo da queda da rentabilidade do capital produtivo; essa última causa não é considerada em sua explicação.

O capitalismo está falhando. Então, o que fazer? Bem, é preciso salvar o capitalismo por meio de uma série de reformas. Afinal, como argumenta Branko Milanovic, ex-funcionário do Banco Mundial, o capitalismo está “sozinho” no mundo: ele venceu. Eis a sua conclusão: “não existe nenhum outro sistema confiável para organizar a produção e a troca em uma economia moderna e complexa.”

A alternativa do socialismo democrático com uma economia planificada gerida por organizações de trabalhadores soa como um disparate econômico, impossível de alcançar e absolutamente perigoso. “Quase ninguém ainda argumenta a favor de uma economia planejada centralmente sem pelo menos alguma dependência das forças de mercado e da propriedade privada de ativos produtivos”. O socialismo democrático, pois, não é uma alternativa ao “capitalismo liberal democrático” do Ocidente ou ao “capitalismo político autocrático” do Oriente. Essa é a única escolha no cardápio posto na mesa da humanidade.

Aqueles que “aspiram nada menos que a revolução anticapitalista” não têm chance de chegar ao poder. E graças a Deus. Porque tal transformação “só poderia ser implementada por uma ditadura – uma ditadura global. Tal regime está (felizmente) fora de qualquer perspectiva. Isso é, na melhor das hipóteses, uma utopia irrealista. Na pior das hipóteses, é mais um em uma longa sucessão de apelos “progressistas… bem,… à tirania”.

Para Wolf, a ideia de uma democracia socialista é “uma quimera, mero fogo-fátuo”. Tal combinação de poder econômico e político acabará, mais cedo ou mais tarde, como a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro ou o Estado soviético que morreu em 1990. Mesmo na China, “o poder estatal arbitrário torna toda a propriedade privada insegura e, portanto, ameaça a economia de mercado”. Veja bem, “o socialismo total é inerentemente antidemocrático e anticompetitivo. Isso porque, no fundo, é mais um sistema em que se fundem o poder político e o controle sobre recursos valiosos” — ao contrário do capitalismo, é claro.

Tendo descartado a revolução e o socialismo como resposta ao fracasso do capitalismo liberal democrático, Wolf, sem surpresa, volta-se para um New Deal de estilo keynesiano. Neste “novo” New Deal, “o que precisamos são sociedades que sirvam a todos, oferecendo oportunidades, segurança e prosperidade. Isso não é o que muitas democracias de alta renda têm agora.” De fato! “Mas o principal requisito é estar preparado para ser bastante radical (! MR), enquanto se pensa com rigor e realismo. Isso é engenharia social de avanços graduais na prática.” Aí está: radical, mas realista…; mudança por avanços graduais… mas ainda assim uma engenharia social.

O que isso envolve? “Precisamos fortalecer nossas democracias, reforçando o patriotismo cívico, melhorando a governança, descentralizando o governo e diminuindo o papel do dinheiro na política. Devemos tornar o governo mais responsável. Devemos ter uma mídia que apoie a democracia em vez de destruí-la. Somente com tais reformas há alguma esperança de restaurar de movo vigoroso a vida dessa flor delicada, o capitalismo democrático”. Tudo isso me parece tão utópico quanto aquilo que Wolf afirma do socialismo democrático; esse regime, ademais, seria claramente inadequado para aumentar o crescimento da produtividade, reduzir a desigualdade e aumentar a renda dos povos do mundo.

Embora a democracia liberal seja ameaçada por uma série de estados autocráticos (não seria o contrário, ou seja, o “capitalismo democrático” dos EUA e de seus aliados é que estaria ameaçando “estados autocráticos” resistentes), devemos evitar a guerra conforme querem a China e a Rússia. “A relação com a China deve ser de cooperação, competição, coexistência e confronto, mas não devemos esperar um conflito aberto, muito menos um conflito armado. Isso seria uma catástrofe.” Ora, Sr. Wolf, diga isso aos estrategistas militares do capitalismo democrático na América e na Europa.

Wolf termina seu longo ensaio com bastante pessimismo sobre as perspectivas de que o seu “novo” New Deal possa acontecer. “Infelizmente, enquanto escrevo estes últimos parágrafos no inverno de 2022, me pego duvidando se os EUA ainda serão uma democracia funcional até o final da década. Se a democracia dos EUA entrar em colapso, que futuro pode haver para a grande ideia de “governo do povo, pelo povo, para o povo”?” Ora, essa grande ideia já se foi há muito tempo nos EUA. Ademais, ela não tem futuro no capitalismo catastrófico do século XXI.