Compulsão muda

Como um sistema econômico tão hostil à vida perdura por séculos?

Autor: Peter Dolack[1]

Quando conceituamos o poder que mantém o capitalismo, o tema da violência e da ideologia prontamente vêm à mente. Apesar da vasta desigualdade, da exploração grotesca, do desprezo pela vida e pelo meio ambiente, da instabilidade crônica e das rebeliões que surgem repetidamente e, às vezes, tomam o poder, o capitalismo parece mais firme na sela do que nunca, lançando as suas flechas mortíferas para praticamente todos os lugares da Terra.

“Como é possível que uma ordem social tão volátil e hostil à vida possa persistir por séculos?” – pergunta Søren Mau na introdução de seu livro Mute Compulsion: A Marxist Theory of the Economic Power of Capital. A violência tem estado com o capitalismo desde o seu início – de fato, o capitalismo não poderia ter se enraizado sem a coerção maciça por meio da violência, leis draconianas, escravidão e colonialismo. As construções ideológicas que mantêm tantos escravizados tornam-se cada vez mais sofisticadas, com um vasto aparato de meios de comunicação de massa, “think tanks” e outras instituições, as reforçam os mantras burgueses, complementados por escolas, militares, locais de trabalho e outros aplicadores do condicionamento social.

No entanto, a violência não é necessariamente enfrentada por um trabalhador típico nos países capitalistas avançados, o núcleo do sistema global. A violência foi usada copiosamente nos primeiros dias do capitalismo, tanto para estabelecer a sua fundação e permitir seu crescimento quanto para acabar com greves; entretanto, isso hoje está geralmente reservado para as populações do Sul Global. A ideologia está sempre presente, mas continua esbarrando nas realidades materiais da vida; que a propaganda, aquela que diz que nenhum outro sistema é possível, tenha ficado cada vez mais frenética é uma pista; talvez, os ideólogos capitalistas estejam menos certos de seus mantras do que querem deixar transparecer em público.

Dizer isso não é sugerir que a violência e a ideologia não sejam, e que ainda não são, complementos cruciais para o capitalismo. Claro que são e serão. Mas isso é tudo o que existe? Mau, um filósofo e pesquisador baseado em Copenhague, argumenta persuasivamente que há mais. Que há mais além da violência e da ideologia não é controverso, pelo menos para aqueles dispostos a abrir os olhos para as realidades do capitalismo.

Mas como apreender e mostrar isso? Esta é a tarefa que o Dr. Mau atribuiu a si mesmo; dela resultou a noção de “compulsão muda”. Em uma apresentação metodicamente construída, ele detalha esse conceito, o poder impessoal embutido nos processos econômicos capitalistas. Como a violência e a ideologia nem sempre estão em operação, outra coisa deve manter o sistema no lugar – especificamente, manter os trabalhadores em seu lugar profundamente subordinado – e essas são as forças sociais indiretas que mantêm o sistema.

O poder do capital é “operativo mesmo quando a dominação ideológica e coercitiva está ausente” – escreve ele.

O livro procura se basear na descrição de Karl Marx de como outras formas de poder assumem o controle uma vez que a violência tenha feito o seu trabalho. Citando o livro I de O Capital, o Dr. Mau traduz um trecho do original em língua alemã da seguinte forma:

“A compulsão muda das relações econômicas sela a dominação do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica e imediata ainda é, naturalmente, usada, mas apenas em casos excepcionais. No curso ordinário das coisas, o trabalhador pode ser deixado às ‘leis naturais da produção’, isto é, torna-se possível confiar em sua dependência do capital, que brota das próprias condições de produção e é garantido perpetuamente por elas.

O poder de impor a sua vontade em múltiplas dimensões

Para compreender esse conceito, a definição de poder deve ser expandida para além de um definição que o refere simplesmente às relações entre os indivíduos. O conceito deve ser estendido às “relações entre os atores sociais, bem como às propriedades emergentes dessas relações” – escreve o Dr. Mau. “O poder do capital pode, assim, ser definido como a capacidade do capital de impor sua lógica à vida social; uma capacidade que inclui – e é, em última análise, dependente –, mas não redutível, as relações entre atores sociais em um sentido tradicional, como a relação entre capitalistas e proletários ou a relação entre um empregador e um empregado”.

Assim, ele argumenta, o poder não é uma simples díade nem é algo possuído ou exercido exclusivamente por pessoas, grupos, classes ou sujeitos. Esse avanço de Marx, argumenta o Dr. Mau, consiste numa virada em relação à sua crítica original da sociedade burguesa baseada na natureza humana; como se sabe, essa crítica estava permeada pelo “humanismo feurerbachiano”; após uma ruptura, em 1845, Marx deu “um importante passo adiante”, após o qual Marx não mais criticou o capitalismo “em nome da essência do ser humano”.

Os principais pensadores entre aqueles que seguiam Marx, como Friedrich Engels, Georgi Plekhanov e Karl Kautsky, tendiam a basear suas teorias no “determinismo da força produtiva” e, portanto, tendiam a ver o Estado como o “locus final do poder capitalista”. O Dr. Mau argumenta que essa tendência flui da ideia de que o capitalismo havia entrado em um estado monopolista, tal como fora exemplificado por Vladimir Lenin e Rudolf Hilferding. Como se pode ver, ela permaneceu profundamente influente no século 20, tal como exemplificado pelas teses de Paul Baran e Paul Sweezy.

Formas de dominação além do dístico violência/ideologia foram lentamente desenvolvidas no final do século 20; ademais, Robert Brenner e Ellen Meiksins Wood, são frequentemente citados ao longo do livro. Esse desenvolvimento é visto como uma ruptura com a ideia da economia como uma esfera separada. Tendo completado uma discussão sobre o desenvolvimento filosófico, o livro Mute Compulsion então começa a construir a sua tese. Essa construção começa com uma discussão sobre ferramentas.

Os seres humanos usam ferramentas não por conveniência, mas por necessidade. Por serem uma necessidade, as ferramentas são um órgão, parte do corpo humano, ainda que estejam separadas dele. As ferramentas humanas são “absolutamente cruciais para entender como tal coisa como o poder econômico é possível”. No nível da organização corpórea, “os indivíduos humanos estão presos em uma teia de relações sociais, as quais fazem a mediação ao acesso às condições de sua reprodução”.

A organização corpórea dos seres humanos “abre um imenso espaço de possibilidades” que torna “possível uma sucessão de modos de produção”. O autor reconhece que o exposto acima não é uma antropologia completa, mas sim destina-se a criar uma melhor compreensão do que é o poder econômico. Uma ênfase nas relações de produção surge porque, por meio delas, as pessoas ganham acesso às necessidades que as mantêm vivas. Esta não é uma visão “economista”, mas reflete a necessidade de combater a falsa ideia burguesa de que a economia é completamente separada do resto da sociedade.

Quaisquer que sejam os meios usados para sujeitar os trabalhadores – violência, ideologia, compulsão muda – a produção e extração de mais-valor é o objeto da produção capitalista. Sem a capacidade dos seres humanos de produzir mais do que o necessário para sua própria sobrevivência, a sociedade de classes seria impossível. Eis como o Dr. Mau cita Marx, novamente no Livro I de O Capital:

“Se o trabalhador precisa usar todo o seu tempo para produzir os meios de subsistência necessários para si e sua família, ele não tem mais tempo para realizar trabalho não remunerado para outras pessoas. A menos que o trabalho tenha atingido um certo nível de produtividade, o trabalhador não terá esse tempo livre à sua disposição, e sem tempo supérfluo não pode haver trabalho excedente, portanto, nenhum capitalista como também não haverá proprietários de escravos, nem barões feudais, em uma palavra, nenhuma classe de grandes proprietários de terras”.

Depois que a violência fez o seu trabalho, outros meios menos diretos podem substitui-la

A possibilidade de trabalho excedente explica a possibilidade de dominação de classe, mas não sua realidade. Ferramentas e máquinas fora do corpo forçam a necessidade de obter acesso ao que são meios de sobrevivência. Essa necessidade resulta em uma concentração de poder econômico nas mãos daqueles que possuem esses meios e empregam aqueles que não os possuem. Assim, o trabalhador deve vender sua força de trabalho a um capitalista para sobreviver. Não é necessária aqui qualquer violência; a necessidade de sobreviver é suficiente para impor a relação.

Mas esta não é uma relação pessoal, porque ninguém está ligado a um único capitalista. O capital induz uma “relação de dívida” que liga os trabalhadores ao “capital como tal”, não a qualquer capitalista específico. A necessidade dos capitalistas de uma oferta constante de trabalho significava que, no período inicial do capitalismo, os camponeses tinham que ser violentamente forçados, inclusive através do uso da lei, a se tornarem trabalhadores assalariados e despojados de se reproduzir fora do mercado. Uma vez que o padrão social se solidifica, meios menos diretos de poder podem ser implantados. Dr. Mau escreve:

“Em oposição à violência ou à ideologia, a ‘pressão silenciosa e incessante’ das relações de propriedade não se dirige diretamente ao trabalhador; em vez disso, aborda o ambiente material do trabalhador ou, mais especificamente, as condições materiais para a reprodução. … O poder do capital não apenas impede o trabalhador de seguir sua vontade (embora muitas vezes o faça); também facilita uma certa maneira pela qual eles podem realmente seguir essa vontade. A compulsão muda só funciona porque o trabalhador quer viver. Somente por causa disso o capital pode ter sucesso em exigir trabalho excedente em troca dos meios de vida.

A subjugação de todos – especialmente os trabalhadores, mas também os capitalistas – ao mercado, exclusivo do capitalismo, é inescapável. A competição de mercado não é apenas um resultado e causa do poder do capital, “é em si mesmo um de seus mecanismos”. Há relações verticais de mercado, distorcidas pelo poder desigual dos capitalistas e dos trabalhadores, e há uma competição horizontal entre os proletários e entre os capitalistas.

O fato de a produção se destinar à venda de produtos sob a forma de mercadorias por valor de troca nos mercados aumenta a dependência dos mercados. A competição confronta trabalhadores e empregadores – para os trabalhadores, é uma forma alienante porque eles são “confrontados com a essência do capital” e, para os capitalistas, é uma força inescapável que exige que eles cortem custos, levem sua força de trabalho a trabalhar em um ritmo que maximize o lucro e incorporem porções cada vez maiores da vida social. “A competição fortalece o poder de classe porque, embora os capitalistas compitam uns com os outros, ela também os une como “irmãos hostis” dividindo “o saque do trabalho de outras pessoas”.

Um fenômeno que demonstra isso claramente é o fluxo de ações judiciais em que industriais e financistas lutam sobre qual fica com a maior parte do bolo; os dois representantes do capital estão em pleno acordo de que os trabalhadores, cujo trabalho criou os lucros pelos quais lutam, não merecem nada disso.

A dominação de classe é necessária “para garantir a aparência dos trabalhadores no mercado como vendedores de força de trabalho em primeiro lugar”. A violência não é mais necessária para garantir o suprimento de trabalhadores – escreve o Dr. Mau:

Marx aponta que a “coerção estatal” era necessária nos primórdios do capitalismo para “transformar os sem propriedade em trabalhadores em condições vantajosas para o capital”, uma vez que, neste estágio inicial do desenvolvimento capitalista, essas condições “ainda não são impostas aos trabalhadores pela competição entre si”. Em outras palavras, a competição tem a mesma função que a violência teve na criação original do capitalismo, e a competição é uma parte absolutamente crucial da compulsão muda das relações econômicas.

A continuação do capitalismo depende da dominação impessoal, bem como das relações pessoais de dominação. A autoridade do capitalista dentro do local de trabalho é meramente a forma de aparência do poder impessoal do capital, argumenta o Dr. Mau, acrescentando que essa percepção permitiu que Marx fosse além de suas primeiras críticas morais ao capitalismo. Assim, não é a falta pessoal de moralidade que obriga um capitalista a introduzir novas tecnologias e técnicas de vigilância, ou a “desqualificar” a força de trabalho. Em vez disso, a concorrência implacável força os capitalistas a “viver de acordo com os padrões, a fim de permanecer no negócio”.

À medida que expande, toma para si outros aspectos da vida

À medida que o capitalismo ganha poder, ele é capaz de subsumir mais e mais as dimensões da vida. A agricultura é agora dominada por corporações multinacionais, as quais tornam a maioria dos agricultores subcontratados seus dependentes, pois tem agora pouca capacidade de tomada de decisão; a conteinerização do transporte marítimo reformulou a logística e tomou energia dos trabalhadores portuários em um ponto crucial de estrangulamento de distribuição; e a capacidade das mercadorias de se moverem livremente enquanto o trabalho é restrito é prejudicial para os empregados.

A expansão espacial significa o aumento da competição, intensificando o poder do capital sobre tudo. Mesmo a própria instabilidade do capitalismo pode ser revertida em benefício dos capitalistas, à medida que as crises econômicas aumentam o desemprego e, portanto, disciplinam ainda mais os trabalhadores. “As forças do capital sabem muito bem que uma crise é uma oportunidade esplêndida para fortalecer o controle do capital sobre a vida social” – escreve o Dr. Mau. O capitalismo é de fato “tremendamente tenaz”.

O livro Mute Compulsion não é uma leitura fácil, mas é uma leitura importante. Fornece uma assistência bem-vinda à compreensão do poder contínuo do capital e da longevidade do capitalismo em todas as suas dimensões. Nenhum livro é perfeito e, portanto, é apropriado observar alguns pontos fracos. Uma delas é que a tentativa do autor de integrar a discriminação racial e sexual em sua teoria. Ao fazê-lo, ele ficou aquém do desejado principalmente no que concerne à confusa discussão das relações sexuais.

O livro tateia em direção a uma declaração de que o “sistema hierárquico de gênero” precede o capitalismo “mas, no entanto, reproduz e é reproduzido por ele”, uma conclusão certamente razoável; entretanto, isso não se segue da discussão anterior. Também é chocante a sua rejeição irreverente e injustificada do “conceito feminista radical de patriarcado” (o conceito de opressão masculina estrutural das mulheres é realmente controverso?).

Assim, o autor acredita ser uma autoridade muito melhor do que feministas como Silvia Federici e Maria Mies, que escreveram livros fundamentais que moldaram esse campo de análise. Às vezes, precisamos nos lembrar de que não somos especialistas em todos os tópicos. A hostilidade ao feminismo infelizmente se tornou moda na esquerda. Agora, é difícil não especular se esse fenômeno, consciente ou não, influenciou essa recusa em se envolver, incomum do resto do livro.

Um outra fraqueza está na breve discussão sobre a desqualificação, que não é compreendida em toda a dimensão do fenômeno. Minimizando a tendência de desqualificação, o Dr. Mau escreve que “o capital não está interessado em desqualificar como tal, mas apenas em desqualificar como uma ferramenta de dominação”. Isso é verdade até certo ponto, mas não está certo. A desqualificação pode significar a alteração das condições de trabalho, de modo a que as competências se tornem irrelevantes; uma retirada de fato de uma habilidade.

Como tenho décadas de experiência no local de trabalho, experimentei isso em primeira mão. Certa vez, trabalhei como editor de uma grande editora que possuía dezenas de jornais e revistas que cobriam o setor jurídico. Uma nova gerência decidiu desmantelar a equipe de cada publicação, que era especializada em vários assuntos ou áreas geográficas, e reunir todos como uma equipe gigante, com editores e repórteres designados para um grupo geral atribuído a nenhuma publicação em particular. Assim, nosso conhecimento especializado tornou-se inútil, tornando todos intercambiáveis. Infelizmente, minhas tentativas de levantar essa questão com meus colegas de trabalho foram recebidas por olhares vazios e, em menos de um ano, as demissões em massa começaram. Isso é desqualificação, pelo menos em um ambiente de colarinho branco.

As críticas precedentes não são falhas fatais. Seria inútil julgar um livro se concordamos com a totalidade do conteúdo. O que importa é o argumento geral, o conteúdo e a apresentação. O texto de Mute Compulsion consegue maravilhosamente construir uma imagem dos aspectos impessoais da dominação capitalista, um aspecto crucial que requer plena compreensão se quisermos compreender a natureza totalizante do capitalismo. E sem uma compreensão completa, como devemos nos livrar dela? Se você quer entender o funcionamento do capitalismo, você vai querer ler este livro.


[1] Pete Dolack escreve no blog Systemic Disorder. É ativista em vários grupos. O seu primeiro livro, It’s Not Over: Learning From the Socialist Experiment, está disponível na Zero Books e o seu segundo livro, What Do We Need Bosses For? será lançado pela Autonomedia. Este artigo foi obtido no Counterpunch, em março de 2023.