Males psíquicos no capitalismo: neurose obsessiva e histeria

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Ian Parker, em seu livro Psicanálise lacaniana – revoluções em subjetividade[1], estabelece relações entre certas categoriais psicológicas, caracterizadas grosso modo como neuróticas, e certas “posições estruturais” inerentes à esfera econômica do capitalismo. O seu ponto de partida parece ser o de que os indivíduos sociais nesse sistema, mesmo tendo de aparecer como sujeitos autônomos, precisam se comportar como atributos e personificações das coisas – não como sujeitos, portanto.

Mesmo se a questão investigada tem uma abrangência maior na história, essa nota se preocupa somente com essas relações na sociedade moderna e de modo restrito. A nota que aqui vai tem a pretensão de ser apenas um ensaio modesto que traz algum esclarecimento.

Nessa perspectiva, Parker começa examinando o mundo do trabalho no capitalismo. Convém que uma contradição caracteriza sobretudo os indivíduos sociais nesse modo de produção: por um lado, eles têm de produzir valor para o capital, mas, por outro, têm de bem realizar os processos de trabalho que são necessários para a reprodução da sociedade. E isso tem consequências para a sua subjetividade.

Para compreendê-las, é preciso ver que as relações sociais são mediadas pela linguagem – mas também pelo trabalho e pela luta pelo reconhecimento. As formas da linguagem são importantes, porque elas, de acordo com ele, fazem a mediação das relações sociais na esfera do sistema econômico (por meio da linguagem das mercadorias) e do mundo da vida social (por meio da linguagem natural). A linguagem em geral, ademais de ser mediação, conforma os indivíduos sociais enquanto tais.

Nota ele então, em primeiro lugar, que o humano no capitalismo é posto como indivíduo, como alguém que se define por ser, supostamente, uma unidade de auto-interesse, um sujeito:

Uma primeira particularidade do capitalismo concernente à subjetividade – a natureza de seu ser no mundo e sua relação reflexivamente elaborada como outros – é que o sujeito humano é definido como um indivíduo isolado. A partir da separação de cada sujeito, o individualismo (…) demarca o solo a partir do qual o sujeito concebe a si mesmo enquanto alguém que faz escolhas livres, tal como as escolhas de mercadorias.[2]

Entretanto, esse mesmo indivíduo social encontra-se dividido; em particular, na esfera da produção, vem a ser fonte de trabalho concreto e de trabalho abstrato, mesmo se tem consciência apenas da primeira circunstância – a outra permanece inconsciente para ele. No primeiro caso, funciona como trabalhador e produtor empenhado em fazer coisas as mais diversas (valores de uso); no segundo, após vender a sua força de trabalho para o capitalista, torna-se um produtor de valor e mais-valor. Diante dos representantes do capital – dos donos do dinheiro – aparece então como personificação de sua própria força de trabalho:

A segunda peculiaridade da vida sob o capitalismo, que lhe dá seu caráter distintivo, e que coexiste mediante uma relação (…) com o seu individualismo, é de que o sujeito se encontra dividido entre a relação com o capital e a relação com o processo de trabalho.[3]

Nessa caracterização, é evidente que Parker singulariza a posição estrutural do trabalhador subsumido ao capital. Em virtude dessa dupla determinação estrutural (ou seja, o indivíduo social como trabalhador vem a ser uno e dividido ao mesmo tempo), esse autor convém em primeiro lugar – ainda que de um modo um tanto abrupto – que “o neurótico obsessivo é na verdade o sujeito quintessencial” do capitalismo. E isso precisa ser bem explicado.

Ora, nessa condição contraditória, está duplamente alienado; em primeiro lugar, porque as coisas que produz ou ajuda a produzir não lhe pertencem e se lhe afiguram como estranhas; mas também, em segundo lugar, porque a sua própria força de trabalho precisa ser vendida no mercado como uma coisa, como mera capacidade de gerar trabalho, como mercadoria.

A relação social de venda da força de trabalho entre o trabalhador e o capitalista encontra-se reificada; a interação social entre um e outro no local de trabalho acha-se constrangida pelos objetivos do capitalista (obter mais-valor) que não coincidem com os objetivos do trabalhador (produzir valores de uso). “O processo de trabalho” – diz Parker – “é o lugar de exercício dos poderes criativos do ser humano, mas a criatividade é traída à medida que os poderes do capitalista estão voltados contra o sujeito por meio de controles, desqualificação e desemprego”.[4] A divisão do indivíduo social se revela, portanto, crucial:

Esse sujeito dividido sob o capitalismo – alienado tanto na sua condição de mercadoria quanto em sua condição de fonte de mais-valor – alimenta a psicologização e a realidade da vida relativamente duradoura sob ele; esta última cria, assim, as condições nas quais certas ‘estruturas clínicas’ ganham vida própria. As condições de psicologização sedimentam um processo de patologização e de produção de categorias psiquiátricas distintas que a psicanálise também adotou: neurose obsessiva, histeria, psicose e perversão.[5]

Para compreender o que se segue é preciso notar que a neurose é, lato sensu, uma estrutura clínica fundada num recalque, ou seja, na exclusão da consciência de um fato doloroso, de um saber extraordinário, de uma representação insuportável e traumática. Há sempre uma inconformidade vivida e ocultada que se afigura como insuportável. No contexto aqui desenvolvido, tem-se que o trabalhador tende a “omitir” para si mesmo que ele não é um verdadeiro sujeito, mas que é, na verdade, apenas um sujeito assujeitado, um sujeito intervertido em não sujeito. Como essa condição traumática não desaparece, como conflitos frequentemente se manifestam na prática social e na consciência do trabalhador, ele vive constantemente a experiência da angústia, manifestação subjetiva e pessoal de sua condição social ou mesmo de sua “revolta interna contra uma sociedade alienante e exploradora”.

Segundo Parker, o indivíduo social, nessa condição, é confrontado com algo impossível: ele tem de ser, ao mesmo tempo, sujeito e não sujeito, eis que assumir a contradição real – o real da contradição – é o mais difícil. Contudo, tal contradição está aí no âmago do indivíduo social e, assim, se manifesta:

O real é impossível de compreender e aparece apenas transitoriamente em momentos de revelação traumática (…); ele é resistente à simbolização e é apenas compreensível em termos imaginários e simbólicos quando está encoberto e lhe é atribuído um significado.[6]

Mas como se comporta o neurótico obsessivo que foi definido como a quintessência do sujeito psicológico no capitalismo? Os psicanalistas explicam que nessa condição social e histórica, o sujeito assujeitado, para pode suportar a angústia que o persegue e que o faz sofrer, desloca a representação da fonte traumática por meio de uma ideia substitutiva qualquer. O seu papel, em geral constantemente repetido no curso da vida do sujeito assujeitado, é aplacar a dor psíquica. A energia psíquica inerente à representação recalcada pode, por isso mesmo, ligar-se a qualquer representação substituta, algo outro que o inconsciente seja capaz de associar à primeira delas, tal como, por exemplo, lavar as mãos, contar até dez etc., algo que vem a se repetir sempre que a angústia assoma.

Agora é preciso ver que a neurose obsessiva – diferentemente da histeria como ainda se verá – está conectada socialmente à masculinidade que, por fim, não tem como deixar de se encarar a si própria como fraca e culposa. Eis que essa patologia se associa a tal identidade sexual em particular porque, no capitalismo, o homem é sobretudo um trabalhador, aquele que põe a sua potência a serviço da produção – e, assim, de si mesmo para si mesmo e de sua família.

Ora, tendo sido posto como um indivíduo que está diante de todo um sistema que lhe parece um poder natural, ele não tem como não se sentir impotente; mas, ao mesmo tempo, por figurar como sujeito social, ele se culpa por seus eventuais fracassos, por sua incapacidade de resolver satisfatoriamente o problema que a sociedade lhe arranjou. A luta pela superação de si travada na prática, mas também na fantasia como último recurso, quase sempre inglória e triste, estrutura o modo de ser do obsessivo.  

A neurose obsessiva é, pois, a infelicidade mais comum que se pode esperar no capitalismo. Como se sabe, essa categoria psicológica marca o indivíduo social como um sofredor passivo, como alguém que acolhe em si e se responsabiliza pelos males do mundo. Por isso mesmo, o neurótico obsessivo é um “sujeito” vacilante que costuma coloca tudo em dúvida, que desconfia de si mesmo e que, no limite, se auto recrimina. À medida que vive na incerteza, encolhe-se como sujeito possível, retira-se da realidade crispada e se isola do mundo – tende à depressão. Em contrapartida, alimenta-se de coisas imaginárias, como a vida depois da morte, se será lembrado ou não, se será feliz ou terá boas memórias.

Seja agora o contexto de uma esfera qualquer da produção capitalista. Distingue-se aí toda uma hierarquia de poder de comando sobre o que acontece e deve acontecer no curso das atividades produtivas e nas atividades auxiliares. Considere-se, ademais, a relação social na forma de uma relação de comando por discurso entre um operador (subordinado) e um chefe que tem poder sobre o primeiro.[7] Não é necessário, mas o neurótico obsessivo, na posição de comandado, assume a posição de quem atende o outro e se sente obrigado a isso.

Mesmo que inconscientemente não queira, o obsessivo se coloca voluntariamente a serviço do outro, aquele que está em posição superior. Trata-se, para ele, de atender ao desejo do outro porque é assim que consegue se manter socialmente. Para atender ao outro, ele reprime os seus desejos. Assim, ele se utiliza de defesas psíquicas para manter os seus desejos guardados, controlados, evitando os conflitos. Uma forma usual é substituir o desejo livre por uma obrigação, um dever, uma necessidade que tem de ser satisfeita.  Assim, ao invés de gerar prazer a sua atividade se torna “burocrática”.

O neurótico obsessivo mantém um ímpeto de controlar tudo em sua vida, mesmo aquilo que é incontrolável. Mas, ao fazê-lo, não pode evitar os desapontamentos, as falhas de controle diante de situações que são intrinsecamente incertas. Reprime, então, os seus desejos porque envolvem correr riscos, fazer escolhas, chegar a perdas, sentir culpa… Ao mesmo tempo, costuma manter uma expectativa alta em relação ao próprio atuar na vida, o que responde por um desejo inconsciente em não desapontar a si mesmo e aos outros.

A neurose obsessiva precisa ser contrastada, agora, com a categoria psicológica da histeria que com ela forma uma espécie de dualidade. Enquanto obsessivo impõe restrições a si mesmo, o histérico mira constantemente as restrições externas que lhe são impostas seja na família seja no emprego.

Eis como Parker encaminha o problema: “se a neurose obsessiva revela algo originário na base material da economia capitalista – o efeito psíquico da alienação mercantil – então a histeria fala de algo que diz respeito, seja a favor e ou contra, à sua superestrutura ideológica.”[8]

Se a primeira marca uma posição de masculinidade, a segunda sinaliza uma posição de feminilidade – mas não de sexo como tal. No interior da relação social antes considerada, o histérico não assumiria a posição de servidor passivo diante de seu chefe e, por extensão, da organização produtiva, pois ele é aquele que reclama, que mostra o seu inconformismo diante das normas ou determinações que vem do poder que lhe é superior. Por que é assim?

Eis que a histeria vem a se manifestar sempre por meio de um protesto contra a condição de sujeito assujeitado, de “sujeito” que permanece contido e refreado; caracteriza-se justamente por contrariar assim o modo de manifestação básico da posição neurótica obsessiva. Sentindo-se interpelado, o histérico não esconde que vem a ser um sujeito falseado, alguém que está impedido de desabrochar. A pessoa histérica, quando suscitada, eleva a voz e se recusa a ser tomada e assimilada como mero indivíduo passivo do capitalismo – um sistema social que se vale do patriarcado para impor a sua normatividade. O seu comportamento é reclamador já que é assim que contesta o outro e as suas normas.

Eventualmente, o histérico contraria mesmo a ideologia individualista do “sujeito” uno e autônomo do capitalismo, pois não oculta, mas, ao contrário, mostra a sua própria divisão interna a céu aberto.

Compare-se, pois, mais uma vez, o obsessivo com o histérico. Se no primeiro caso, o desejo é posto como algo “impossível”, no segundo, a relação com o desejo é de insatisfação. No primeiro, o desejo é reprimido, no segundo ele é sustentado por meio de um descontentamento constante. O histérico está sempre se queixando que ele ainda não tem, do que não realizou ou não recebeu ainda o que merece. Permanece sempre insatisfeito porque mira uma falta que se afigura como ilimitada.

É por isso que a propaganda de mercadoria incentiva e se vale do comportamento histérico para vender mais e mais. Eis que procura preencher a falta imaginada dos indivíduos sociais na condição de consumidores com novo produtos, os quais necessariamente lhe trarão um certo grau de insatisfação. É por isso que o discurso capitalista, incentiva no consumidor o gozo do ter, o gozo do desejar a partir do que não tem, de que não comprou, estimulando-o a descartar o velho apenas para comprar o novo, sem muitos motivos razoáveis para isso.

Um sujeito assujeitado – obsessivo ou histérico – está sempre em falta, sente-se como um ser incompleto. É por isso que os psicanalistas – assim como Freud e Lacan, por exemplo – sustentam que em toda neurose há um esforço (mais ou menos delimitado ideais do eu e do superego) de lidar com a falta – uma falta que certos – muitos, na verdade – psicanalistas, erroneamente, tratam como atributo antropológico. De fato, trata-se de uma falta inesgotável (ou insaciável) produzida pela sociabilidade capitalista.

Dir-se-á aqui que a contradição “sujeito assujeitado” se manifesta subjetivamente por meio da dualidade, também contraditória, formada pelo par “poder/não-poder”. Os neuróticos se definem em relação à potência/impotência; ora, eles se sabem impotentes. Note-se, agora, que os psicanalistas falam aqui em falo/castração, tomando esses dois termos como marcadores da potência/impotência, respectivamente.  Eis que o “falo” é, para eles, o marcador da potência historicamente atribuída aos homens.

E isso permite uma comparação: os sujeitos assujeitados histéricos, ao contrário dos obsessivos, sabem melhor que não tem a potência que os completaria e que os deixariam “mais satisfeitos”. Por isso temem mais do que aqueles que se lhes seja imposto uma subtração de sua potência restante ou que se lhes mostre a própria impotência, a potência que lhes falta. Nesses casos, os histéricos protestam, mesmo que seja por meio de um sintoma somático – uma dor em alguma parte do corpo, por exemplo. Já os obsessivos, diante da mesma circunstância, buscam se acomodar resignadamente por meio da autoconsolação.

Passando a um plano mais geral, antes de concluir essa nota heterodoxa que faz um esforço para versar sobre “psicanálise crítica”, pode-se dizer que a resistência ao capitalismo soe ser, em certa medida, sempre histérica – tal como outros mais competentes na matéria já observaram.


[1] Parker, Ian – Psicanálise lacaniana – revoluções em subjetividade. São Paulo: Annablume, 2013.

[2] Op. cit., p. 151-152.

[3] Idem, p. 152.

[4] Idem, p. 152.

[5] Idem, p. 153.

[6] Idem, p. 155.

[8] Parker, op. cit., p. 156-157.