Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte I)
Há, portanto, uma teleologia na lógica Karatani dos modos de troca, na medida em que a lógica do modo D realiza a troca de presentes com base nos outros modos. Em vários momentos, Karatani discute a lógica de movimento do modo D como “religião”. E por “religião” ele quer se referir a uma forma semelhante à “religião” de Kant, a qual se realiza supostamente numa república mundial que aboliu o Estado e o capital. Em outros momentos, ele se refere ao modo D como se fosse provocado pela repressão e pela pulsão de morte no sentido freudiano do conceito.
Em geral, enquanto um modo político de mudança histórica, Karatani teoriza o comunismo como um “modo D”; trata-se, para ele, de uma demanda repetitiva para romper com o modo C de troca de mercadorias e retornar à troca recíproca em cada modo de troca. Nesse relato da história e da práxis, podemos tomar o exemplo da Revolução Francesa e dos períodos revolucionários subsequentes como encenações do modo D. A Revolução Francesa veio de uma demanda coletiva por um retorno a arranjos mais fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade. Essas demandas coletivas também foram pensadas como um levante libidinal. Essa lógica se repete na história como uma forma de negação que busca romper modos opressores que dominam as relações sociais.
O exemplo mais acessível que Karatani fornece dessa forma de racionalidade é a sua compreensão de Sócrates e da forma de igualdade universal ou “isonomia” que ele colocou no centro de seus ensinamentos. A isonomia é um exemplo de modo D porque a filosofia especulativa de Sócrates surgiu em um contexto material de relações de troca regidas por um modo primitivo C de troca de mercadorias. Sócrates viveu durante uma unificação mais ampla de várias politeias no mundo grego, inclusive por meio da instituição de uma moeda comum. No tempo de Sócrates, o modo C (troca de mercadorias) foi introduzido como proto-forma por meio de confederações mercantis pré-capitalistas formadas por Estados pequenos. Karatani argumenta que a filosofia de Sócrates, com o seu conceito primário de Isonomia, representa uma demanda por um retorno ao modo A em uma forma mais elevada.
Enquanto essa forma de modo D é uma ideia reguladora revolucionária que ocorreu antes da ascensão do capitalismo, Karatani argumenta que, já dentro dele capitalismo, foi Kant quem descobriu o modo D por meio de sua ética e, em especial, do imperativo categórico. O imperativo categórico só é verdadeiramente possível em uma sociedade onde a forma de troca vai contra o modo C (troca de mercadorias). A noção de sempre tratar os outros como fins e não como meios é impossível em uma ordem social – tal como aquela do capitalismo atual – em que a troca de mercadorias é primordial. A ética de Kant só era possível nas condições sociais do associativismo, que consiste, escreve Karatani, “no retorno da troca recíproca em uma dimensão superior”.
Essa interpretação de Kant difere notavelmente daquela feita por meio do conceito de “justiça retributiva” de Rawls, que muitos comentaristas liberais enfatizam. Na leitura de Karatani, a ética kantiana se remete à troca e não à repartição. A sociedade deve entrar nos arranjos associacionistas como o modo primário de dispensar a justiça e estabelecer o imperativo categórico – isto é, tratar as pessoas e as pessoas que ainda nascerão como fins e não como meios. Assim, o imperativo categórico se atualiza em um modo de troca que transcende o capitalismo mercantil do tempo de Kant e o capitalismo financeiro de nosso tempo.
Essa leitura da ética kantiana nos permite ler Marx junto com Kant sob uma luz inteiramente nova. O Marx primitivo, tal como Kant, argumentava que o comunismo viria como a realização de associações livres, uma posição que ele compartilhava com Kant. Mais controversamente, Karatani argumenta que o Marx primitivo compartilhava a visão de Proudhon do Estado como uma forma de associativismo.
Para ele, o comunismo não-centrado no Estado de Proudhon está de acordo com o cosmopolitismo de Kant baseado na ausência do Estado. Karatani argumenta que, após a Comuna de Paris de 1871, a posição anarquista e anti-estatista desse autor se tornou uma antinomia impensável para Marx. Ele absorveu uma visão anti-estatista no coração de sua teoria por causa desse impasse na questão de como destruir o Estado.
No geral, neste exemplo, o método de Karatani de transcrítica de Kant com Marx mostra como uma teoria indecidível torna-se “entre parênteses” no pensamento de Marx – neste caso, a abolição do Estado. Há um benefício imediato nessa ideia de colocar entre parênteses um ponto impensável dentro do pensamento de Marx, já que convida a um certo amortecimento da prioridade das batalhas ideológicas sectárias que inevitavelmente surgem entre anarquistas e marxistas. De fato, se o arcabouço histórico e ético de Kant está profundamente ligado à visão de um futuro em que nações e Estados são dissolvidos numa federação de comunas não mais dependentes de um Estado, então isso é aquilo que Marx (e os anarquistas) defendem.
Não apenas Kant está ligado ao projeto marxista de um arranjo apátrida das relações sociais não mais governado pelo modo C (troca de mercadorias), mas a sua teoria sobre o que fundamentalmente impulsiona a mudança histórica está em uma passagem subestimada do escrito Ideia para uma história universal com um propósito cosmopolita. Neste pequeno texto, que se lê como um manifesto, Kant argumenta que a essência da natureza humana está no que ele chama de “sociabilidade não social”, ou seja, na ideia de que um antagonismo fundamental impulsiona laços e conexões comunitárias.
Kant escreve: “o homem tem uma inclinação para se associar com outros, porque na sociedade ele se sente mais do que apenas um homem, isto é, mais do que a forma desenvolvida de suas capacidades naturais”. Se a lógica do que impulsiona a civilização humana é a sociabilidade não social, então fica imediatamente claro porque Freud e a psicanálise se tornam herdeiros da ética e da política kantiana. Embora vagamente construída, a noção de antagonismo em Kant contém uma homologia significativa com a noção freudiana de pulsão de morte, ou seja, como um conceito central no coração do pensamento que se ocupa dos arranjos sociais em larga escala.
Em Transcritique: On Kant and Marx (2003) e Nation and Aesthetics: On Kant and Freud (2017), Karatani argumenta que os insights libidinais de Freud oferecem uma análise da agressividade e da violência ausentes nos outros dois autores. A agressão humana, sugere ele, se manifesta em qualquer ordem social, independentemente de seu grau de igualdade ou de seu modo de troca. Isso é o que Kant quer dizer quando usa o termo “natureza” – uma forma de antagonismo que se torna a causa de uma sociedade regida pela lei. Na medida em que há um télos da civilização mundial para Kant, este não se encontra na coexistência pacífica de uma visão racional da humanidade que negocia uma ordem social pacífica.
A ênfase na natureza – ou no que Kant chama de “astúcia da natureza” –, em contraste com o que Hegel chamou de “astúcia da razão”, enfatiza a natureza como sujeito. Karatani insiste que não se trata de mera retórica. A ideia de natureza em Kant é uma forma de subjetividade imanente a uma ordem social e a uma lógica da história evidenciada em uma dialética de forças conscientes/não conscientes. É impossível pensar a fonte da sociabilidade associal a partir de um ponto de vista hobbesiano baseado na hostilidade mútua apenas com vontade e compreensão humanas. Em vez disso, de acordo com Kant, apenas algo derivado da própria hostilidade poderia superar a hostilidade. Ora, é a isso que Kant se refere como natureza: a dimensão da vida humana onde não há sujeito da consciência.
Ao trazer a psicanálise para a transcrítica de Kant e Marx, Karatani também oferece uma crítica à política por meio da representação. Assim que o modo D é pensado nos moldes da ideia reguladora kantiana – uma ideia que não pode ser posta a existir por meio da representação – a ligação com a economia libidinal se dá na negação e na revolução, visando uma ordem social governada por um modo utópico de troca. Esse modo é o que Karatani chama de troca recíproca de presentes ou associativismo.
Se a força primária do modo D não acolhe a representação, modifica continuamente as relações existentes do modo A no interior da ordem social. O modo D é, portanto, um princípio de liberdade promulgado nas lutas. Sabe-se que as revoluções e negações da ordem social não acabam com a “sociabilidade antissocial”.
Em vez disso, o sujeito da natureza que Kant desenvolve e a noção de “paz mundial” apresentada em sua obra posterior estão alinhados com o comunismo enquanto uma república mundial não mais afetada pelo Estado e pelo mercado, organizados que estão em torno da troca de mercadorias. Além disso, o próprio movimento dessa mudança dentro das comunidades humanas é possível não pela razão humana ou pela vontade moral, mas pela “sociabilidade não social”, ou seja, pelo “antagonismo” inato nos seres humanos.
Karatani chama a atenção para o fato de que, ao descrever a pulsão de morte em Além do princípio do prazer (1920), Freud se defrontou com o que produzira a Primeira Guerra Mundial, quais sejam eles, os neuróticos de guerra que tratava clinicamente. Por meio dessa descoberta, podemos localizar o núcleo invariante da perspectiva de Karatani. Não devemos pensar a pulsão de morte como um antagonismo autônomo que libidinosa ou biologicamente impulsiona a ação coletiva e a revolução na história. Ao contrário, é uma força em tensão dialética com o superego. Para compreender essa relação vital, é preciso revisitar o contexto histórico em que Freud descobriu a pulsão de morte.
O princípio da compulsão à repetição encontrou prova empírica nos pesadelos dos veteranos da Primeira Guerra Mundial; foi em seus sonhos que apareceu uma pulsão sádica particular. Embora Freud tenha procurado aplicar a lógica da repetição inerente à pulsão de morte à brincadeira de seu neto com os seus brinquedos – o jogo “fort-da” –, assim como às neuroses traumáticas de forma mais geral, foram as neuroses de guerra manifestadas no sonho que serviram de argumento mais persuasivo para o devir desse conceito. Devemos, exclama Karatani, “ler a pulsão de morte como um conceito histórico”.
Ler a pulsão de morte como um conceito histórico significa que permanecemos atentos ao contexto social mais amplo em que Freud estava operando; o ano de 1920 viu o rescaldo caótico do colapso do Império Alemão, um dos últimos redutos da ordem aristocrática na Europa, após a Primeira Guerra Mundial. Este período também testemunhou a ascensão da revolução socialista bolchevique na Rússia, adicionando um espírito de igualitarismo ao clima político europeu mais amplo. Em Berlim e nas outras cidades da Europa Central, onde Freud procurou desenvolver a psicanálise, esse contexto social progressivo levou-o a experimentar uma forma mais igualitária da clínica psicanalítica.
Esse período é documentado por Elizabeth Danto em seu estudo Freud’s Free Clinics: Psychoanalysis and Social Justice – 1918-1938. Danto mostra como Freud buscou expandir a psicanálise em consonância com os valores social-democratas e de inspiração socialista da época. Freud defendeu a diminuição das regulamentações sobre a formação de analistas; postulou a suspensão dos requisitos de pagamento para que a classe trabalhadora recebesse análise. Praticamente todos os mais prolíficos discípulos psicanalistas iniciais de Freud, incluindo Wilhelm Reich, receberam sua análise de treinamento gratuitamente. No entanto, apesar desse clima político igualitário, Karatani descreve a situação da seguinte maneira:
Freud, depois de Além do Princípio do Prazer, ainda que desconfortavelmente, tentou reforçar o papel cultura ou do superego. Não é o controle externo, mas a própria unidade agressiva que pode inibir a unidade agressiva. Com esse pensamento, ele insistiu na necessidade de manter o regime de Weimar. Note-se, no entanto, que não foi a guerra em si, mas foram os seus pacientes, que costumavam repetir a situação de guerra todas as noites, que obrigaram Freud a tomar uma atitude drástica que mudou o significado do superego e da cultura. Freud especulou que os indivíduos deveriam ser curados da neurose, mas que os estados não precisavam ser curados da neurose, a saber, a cultura.
O regime de Weimar foi o superego desse momento histórico específico. Reconhecer que a agressão permanece se manifestando independentemente da situação política – um resíduo da velha ordem na nova ordem – significou para ele que a esfera da cultura e da nação se tornou uma área significativa para liberar e gerenciar a repressão, uma zona governada pelo superego. Essa visão reflete o liberalismo político de Freud. Freud evitou a questão de uma revolução no regime da propriedade privada capitalista, temendo que tal revolução perdesse o controle sobre a gestão do excedente de repressão. Herbert Marcuse argumentou, da mesma forma, que à esfera cultural é atribuída a tarefa de tornar consciente o excesso de repressão, possibilitando assim que ele seja lamentado.
No entanto, a visão freudiana – o seu liberalismo – deve ser entendida na perspectiva da dimensão teórica vinda da descoberta da pulsão de morte, que vem modificar a compreensão de como o superego funciona. Após a invenção do conceito de “pulsão de morte”, o superego deixou de ser um censor externo da repressão das instituições e do mundo social. Em vez disso, a pulsão agressiva é inibida de dentro e, por isso, corresponde a uma forma diferente de superego.
Portanto, Freud passou a argumentar que a consciência não é formada por um outro severo e superior (isto é, externo), mas por uma renúncia à agressividade – energia psíquica passada para o superego e exercida sobre o ego. Simultaneamente, ele insistiu que essa visão era compatível com sua visão anterior do superego como censor. Ambas as lógicas do superego estão em jogo: censura externa e lógica interna ligada à pulsão de morte. No entanto, depois que ele descobre a centralidade da pulsão de morte, a lógica primária do superego é mediada pela pulsão de morte dirigida internamente.
No entanto, o fato de que a grande descoberta da pulsão de morte por parte de Freud tenha coincidido com o colapso da aristocracia europeia apresenta uma verdade crucial dessa própria descoberta: uma ordem social em ascensão liberadora ainda será confrontada com mecanismos superegóicos. Paradoxalmente, ideais de ego em colapso e mecanismos de censura instáveis não pressagiam um colapso do superego. Pelo contrário, a ordem social igualitária pode, sim, provocar uma crise do superego. Freud procurou desenvolver a teoria da pulsão de morte para localizar uma saída específica para essa pulsão agressiva que permanece após os horrores da guerra e o advento de uma ordem social mais progressista.
Suponhamos que a descoberta freudiana da pulsão de morte dê conta de uma lógica pela qual surge uma certa mediação da história, a saber, a astúcia da natureza. Qual é a função do superego em tal contexto? Ele também deve ser lido de acordo com a lei moral kantiana? Freud introduz o superego com um estado moral “super” explícito: “do ponto de vista do controle instintivo, da moralidade, pode-se dizer do id que ele é totalmente não-moral, do ego que ele se esforça para ser moral, e do superego que ele pode ser super moral e então se tornar tão cruel quanto só o Id pode ser”.
Karatani abraça assim essas duas lógicas do superego de forma semelhante a Adorno, para quem a moral deriva da “objetividade da sociedade”, da censura externa da moral e dos valores existentes, bem como da “forma repressiva da consciência para desenvolver a forma de solidariedade na qual a repressiva será anulada”.
Étienne Balibar revela o cerne dessa antinomia do superego quando descreve o superego como um modo de autoridade que pode ser emancipado ou promovido em cada ordem social, mas que também situa o sujeito em um “tribunal psíquico”. O conceito de superego emerge de dois termos: “super” (Über) e “compulsão” (Zwang), sendo este último inseparável da lei e, principalmente, do direito de punir. O superego não é equivalente ao conceito kantiano do “imperativo categórico” já que é uma estrutura do inconsciente. Ora, isso restabeleceria, em outra modalidade, a subordinação do direito à moralidade. O superego é, ao contrário, uma forma de obediência e transgressão simultâneas à lei. Eis o que Balibar escreve:
Nenhuma norma social seria eficaz, nem o respeito às normas produziria a culpa “excessiva” (Schuldgefühl) e a “necessidade de punição” (Strafbedürfnis) que Freud descreve como características da “severidade” ou “crueldade” do superego, as quais derivam de sua natureza “instintiva” ou do efeito retroativo do “id” no coração do “ego” que ele representa, e que acaba instituindo a equivalência absurda entre a obediência à lei e a transgressão da lei.
O superego opera, simultaneamente, em um duplo vínculo de adesão e transgressão à lei; em consequência, o efeito desse duplo vínculo é que o sujeito sofre a culpa. “Como poderia o sujeito (o ego inconsciente) não se sentir culpado por não conseguir conciliar o que é ordenado e proibido?”
O superego estabelece um “tribunal” que se revela constituído ao mesmo tempo por uma instância pessoal inscrita numa sucessão genealógica e uma instância impessoal formada por uma rede de instituições ou aparelhos de dominação e de coerção que inclui a “família”. Esta se constitui, por excelência, a intersecção entre o pessoal e o impessoal. Esses dois modos de injunção trocam de lugar e de injunção: “o superego, é a família!” – “a família, é o superego!”
É fundamental notar como o superego está inscrito em uma “rede de instituições e aparelhos de dominação e de coerção” e que, embora o superego seja um tribunal psíquico, isso não deve ser entendido como produtor de condições de servidão voluntária para o sujeito. Ao contrário, o superego conecta o sujeito ao coletivo. No entanto, assim como o tribunal psíquico do superego situa o sujeito em uma instanciação comunitária concreta entre a rede de dominação e coerção e o status genealógico impessoal, Karatani enfatizará a dimensão impessoal de forma significativa.
Em uma leitura do ensaio de Freud de 1928 sobre o humor, Karatani argumenta que o superego não deve ser entendido apenas como a agência da repressão e da censura, mas como aquilo que, “no humor, fala palavras tão gentis de conforto ao ego intimidado”. Encontramos essa dimensão impessoal única do superego no humor em contraste com as piadas.
Onde o humor funciona com espontaneidade e atividade (ou seja, não consciente), as piadas funcionam conscientemente. Somos apresentados novamente à dimensão invariante da pulsão de morte aparecendo agora no superego por meio do humor. Ao enfatizar como a autonomia deriva não de fora (isto é, do pai ou das normas sociais), mas de dentro, a perspectiva invariante também intima períodos da vida coletiva em que o superego está ausente.
Como o superego é o prenúncio do afeto da culpa quando ele se instancia sobre uma dada ordem social, como desenvolvemos acima, Karatani chama nossa atenção para o fato de que há períodos prolongados na vida capitalista do pós-guerra nos países ocidentais que efetivamente testemunharam uma ausência de superego. As formações do superego surgem em momentos provocados por crise, revolta ou guerra; ou seja, um projeto comunitário repressivo as introduz na existência social. Isso significa que um reinado de uma ordem social sem superego é governado principalmente, embora não exclusivamente, pelo efeito da vergonha.
Como mencionado anteriormente, no nível afetivo, a instanciação do superego normalmente segue um período de agitação social – guerra, crise, revolução – e, nesses momentos, as ordens sociais podem esperar que predominem condições de culpa. Como indica Balibar, é necessário que o “sentimento de culpa” radical, engendrado pela coerção absoluta, seja “reprimido e perpetuado e, junto com ele, a equivalência paradoxal de intenções e atos, comportamentos de obediência e movimentos de transgressão”.
O que isso aponta é a função da culpa na vinculação das formações do superego sobre a vida subjetiva. Como tal, Karatani argumenta que os efeitos sociais negativos que isso traz significam algo significativo para a vida cívica e social. Ou seja, a ordem social deve conter uma outra cena pela qual esses efeitos negativos e antissociais da culpa possam ser concedidos uma saída adequada.
O que é exatamente essa outra cena? Para Karatani, a existência do superego requer a esfera da cultura ou o que os pensadores iluministas teorizaram como a esfera nacional: uma esfera imaginária da vida social onde o sentimentalismo das expressões estéticas dos cidadãos recebe uma zona de livre expressão. O modo A (troca primitiva de presentes) rege a esfera nacional. Em certo sentido, isso significa que é o mais distante do modo dominante C, que rege as relações sociais fora do mercado no capitalismo contemporâneo. No entanto, o que Karatani nos chama a atenção na própria ideia de nação é aquele produto das contradições e antagonismos suscitados pelos modos de Estado e capital (B e C) e que, por extensão, não é uma zona transcendentalmente necessária da vida social.
Não sabemos a composição precisa da nação após uma sequência revolucionária que usurparia a predominância da troca mercantil. No entanto, podemos apostar na necessidade de existir uma forma de resposta para agressões e repressões embutidas dentro de qualquer ordem social. Como essa outra cena de cultura ou nação (modo A) deve ser construída de tal forma que sirva como outra cena, para que ela serve? Como examinaremos mais adiante, mesmo que uma ordem social seja governada pelo modo A (troca de presentes) como modo dominante de vida social, permanecem formas de conflitos sociais e políticos gerados a partir de economias de dádivas.
Existem meios distintos de utilizar os dons como meio de reparação de conflitos. Não podemos dizer que a esfera da cultura e da nação definharia completamente na teoria da revolução de Karatani. Karatani não postula uma zona distinta de existência social “política”. Em vez disso, ao enfatizar as relações sociais em modos de troca, essas esferas da vida coletiva governam de maneiras sobrepostas; a noção de um zoneamento ontologicamente separado da vida social não está de acordo com essa teoria.
(continua na parte III)
[1] Daniel Tutt é professor de filosofia em várias instituições, incluindo a Universidade George Washington e o Global Center for Advanced Studies, em Nova York e Dublin.
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