Note-se uma certa candura ideológica dos atuais economistas que propugnam por reformas do sistema, mudanças institucionais e regulação econômica, que melhorariam supostamente a vida dos trabalhadores. O texto do autor progressista abaixo traduzido ignora totalmente a questão da socialização do capital – vista como financeirização e/ou dominância financeira. Ele discute a política econômica de um modo até interessante, mas anacrônico porque não compreende bem o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.
Note-se: mesmo se a taxa de ganho do capital financeiro fica menor do que a taxa de lucro do capital industrial, se o volume de capital financeiro é muitas vezes maior do que o volume de capital industrial operando no sistema econômico, a necessidade de drenar recursos do segundo para alimentar o primeiro impede uma política econômica até mesmo em prol do crescimento. Logo, impede também uma política distributivamente progressista.
O texto abaixo – muito bem escrito e muito instrutivo – julga ainda que o desenvolvimentismo é possível num mundo estruturado de modo não desenvolvimentista. A sua marca não é o crescimento, mas a austeridade. É até mesmo anacrônico ser progressista num mundo regressista em que ocorre ocaso do capitalismo.
eLEUTERIO f s pRADO
Limites das variações salariais
Autor: Nick Johnson – Blog: The political economy of development – Data: 21/09/2022
Marx é muito claro na afirmação de que o trabalho é explorado e que um salário mais alto tornaria a vida dos trabalhadores menos miserável, mesmo se isso não elimina a exploração em si mesma. Mas ele não acredita, porém, que um salário mais alto possa fazer com que o sistema funcione melhor ou mesmo que melhore a situação dos trabalhadores como um todo.
De fato, na discussão sobre “exército de reserva”, ele argumenta de uma forma inusitada dada sua visão política: a saber, se os trabalhadores obtêm uma melhor situação com o encolhimento do exército industrial de reserva, formado que está pelos trabalhadores desempregados, se o aumento do salário supera a elevação da produtividade, então a parcela dos salários aumenta e a taxa de lucro cai. Ora, se a taxa de lucro cai, a acumulação desacelera, a mecanização acelera, a importação de trabalho torna-se mais viável e, assim, o sistema recria o exército de reserva.
Em suma, tem-se uma situação em que o sucesso dos trabalhadores mina e enfraquece esse mesmo sucesso – e esse resultado advém da lógica interna do sistema.
Muitas pessoas, muitos pós-keynesianos, argumentam que isso não pode ser verdade já que a demanda de consumo será maior se os salários dos trabalhadores sobem. Ora, assim se eleva a demanda agregada e os capitalistas contratarão mais pessoas ao terem de expandir a oferta agregada. Não penso, contudo, que essa tese seja verdadeira como uma proposição geral por causa de certos limites. Seria bom se fosse verdade, mas a boa teoria mostra que se trata de um erro. Não se pode ficar persuadido de que algo é verdade porque esse algo é bom.
O trecho acima em destaque vem de uma entrevista com Anwar Shaikh contida no livro O que está errado na Economia? Conversas com os principais economistas. Shaikh está sendo aqui claramente honesto do ponto de vista intelectual. Ele gostaria que o capitalismo fosse capaz de permitir aumentos salariais para os trabalhadores comuns em toda a economia, os quais impulsionariam um crescimento mais rápido com queda do desemprego, formando assim um processo sustentável em que todos ganham; porém, o seu próprio entendimento teórico sugere que isso é bem improvável de acontecer ou de ser sustentável.
Para Shaikh, a queda do desemprego tenderá a fortalecer o poder de barganha dos trabalhadores, de modo que, em algum momento, os salários da economia como um todo começarão a subir mais rapidamente do que o crescimento da produtividade, levando a um aumento da participação salarial no produto e a uma queda nos lucros. Esta última queda irá atenuar o estímulo ao investimento, de tal modo que o crescimento irá desacelerar, levando ao aumento do desemprego mais uma vez, com a recriação do exército industrial de reserva.
Shaikh, contudo, trabalha também na tradição keynesiana clássica. Na verdade, ele se vale de muitos fios intelectuais, mas principalmente de Smith, Ricardo, Marx e Keynes. Muitos de seus amigos são pós-keynesianos, os quais, dentre vários fatores, enfatizam sempre o papel da demanda agregada na economia. Talvez sejam eles os verdadeiros seguidores do próprio Keynes – e não Shaikh. Os economistas clássicos e Marx se fixaram mais na taxa de lucro, cuja fonte é sempre o mais-valor obtido pelas empresas capitalistas no processo de produção.
Isso não quer dizer que os pós-keynesianos ignorem a lucratividade, longe disso. Entretanto, a lucratividade é um ponto crucial para os economistas clássicos e para Marx. Eis que eles, em relação ao pensamento keynesiano em geral, olham mais para o lado da oferta porque ela está regida pela acumulação de capital. Em seu livro Capitalismo, Shaikh argumenta que se economia keynesiana se concentra mais no lado da demanda, a economia neoclássica foca mais o lado da oferta; a sua abordagem, entretanto, se centra no lucro, concebendo a oferta e a demanda agregadas com pesos iguais na determinação desta última.
As suas ideias são importantes porque mostram que há limites internos e potenciais em uma economia capitalista, incluindo-se neles os limites do que pode ser alcançado por meio da política econômica. Claramente, se o aumento dos salários pudesse impulsionar o crescimento e o emprego por um longo período, então não haveria conflito entre uma maior igualdade e um aumento geral dos padrões de vida. Ao tomar essa situação como possível, os economistas progressistas veem essa política como boa e implementável.
Mas se o aumento dos salários leva de fato a um aperto dos lucros e, assim, a um crescimento mais lento e a um período renovado de desemprego crescente, essa situação se apresenta como menos agradável; há limites para o que pode ser obtido manejando as políticas fiscal e monetária. Ora, isso fornece combustível tanto para a direita política, que poderia justificar a promulgação de políticas que visam enfraquecer os trabalhadores, quando para a esquerda socialista, cujo objetivo vem a ser substituir o próprio sistema.
Produção e realização
Muitas dessas ideias encontram uma exposição clara nos escritos marxistas. Diz-se aí que existe uma tensão entre a produção e a realização do mais-valor no capitalismo. Para os marxistas clássicos, a fonte de lucro se encontra no mais-valor produzido no local de trabalho; eis que os capitalistas coagem os trabalhadores a trabalhar e a produzir além do necessário para reproduzir e sustentar os seus padrões de vida costumeiros.
O mais-valor é produzido no local de trabalho, mas apenas realizado com a venda da produção no mercado. Todo capitalista gostaria de maximizar o excedente produzido por sua empresa; ora, uma maneira de fazer isso é pagar salários relativamente mais baixos, obrigando os trabalhadores a trabalhar mais e mais, especialmente em relação aos seus concorrentes. No entanto, se todo capitalista mantiver os salários baixos, isso reduzirá a realização do excedente, pois o consumo da economia como um todo estaria restringido, enfraquecendo a demanda provinda das vendas nos mercados. Esta é a tensão entre a produção e a realização da mais-valor e, portanto, do lucro.
A concorrência no mercado de (força) trabalho pode também levar os trabalhadores a receberem salários inferiores ao salário médio, pode fazê-los se deslocarem para um empregador que pague um salário mais elevado. Assume-se, por um momento, que as diferenças de competências não atrapalham este processo, o que, naturalmente, não ocorre na realidade. Durante um período mais longo, os trabalhadores podem se retreinarem e se realocarem, tornando o mercado de força de trabalho mais flexível. Isso parece mostrar que a competição nesse mercado pode fornecer um limite para a queda salários.
No entanto, saber se a concorrência aumenta ou não os salários, isso depende da força da demanda na economia como um todo. Uma economia fraca com grande desemprego tende a criar um mercado comprador para os empregadores; eles podem assim negociar salários mais baixos. Já uma economia em expansão, com um mercado de trabalho mais apertado, aumenta o poder de barganha dos trabalhadores, ou seja, a sua capacidade de obter salários mais altos. É claro que a experiência global atual mostra que isso nem sempre precisa ser o caso. Pois, apesar dos mercados de trabalho estarem apertados em países como nos EUA e no Reino Unido, pode haver uma inflação de preços mais alta que supera o crescimento dos salários.
A noção de uma tensão entre a produção e a realização de mais-valor e, portanto, no coração da lucratividade, sugere que há limites para a queda dos salários e para o aumento dos lucros e vice-versa, sem prejuízo do que ocorre no desempenho econômico. Se a participação dos salários na produção total caísse para zero e a participação nos lucros aumentasse para seu valor teórico máximo (ou seja, para cem por cento), não haveria consumo por parte da força de trabalho empobrecida; então, o único incentivo para os capitalistas investirem na capacidade produzir viria do seu próprio consumo, o qual teria de sair dos próprios lucros.
Nesse caso, os trabalhadores não receberiam nada e isso seria uma situação econômica doméstica terrível; não haveria, ademais, muito crescimento. Com a miséria, as massas seriam forçadas a produzir para si mesmas em algum nível mínimo de subsistência ou mendigar trocados dos capitalistas. A vasta desigualdade certamente se mostraria insustentável e o sistema como um todo não poderia mais ser compreendido como capitalista. Se a demanda viesse do exterior, os capitalistas encontrariam uma nova fonte de demanda para sua produção; nesse caso, os trabalhadores ainda teriam de ser contratados para atuarem na produção de mercadorias.
Por outro lado, se a participação salarial na produção estivesse no máximo, com a participação nos lucros em zero, não haveria fundos disponíveis para investir em nova capacidade produtiva e impulsionar o crescimento econômico e elevar os padrões de vida. Na ausência de produtividade crescente, os salários estagnariam em um dado nível particular e, mais uma vez, o sistema não poderia ser compreendido como capitalista.
Entre esses dois extremos limitantes da parcela dos lucros e da parcela dos salários, existem várias possibilidades que são discutidas em termos teóricos. Uma questão importante deve ser saber se o próprio sistema poderia alcançar qualquer uma dessas duas situações, e se poderia ou não encontrar seu caminho de volta para algum modo de operação mais funcional, na ausência de intervenção estatal ou revolução social.
Crescimento liderado por salários versus crescimento liderado por lucros
A noção de que há uma tensão entre a produção e a realização do mais-valor leva a considerar a questão do crescimento econômico impulsionado pela demanda; trata-se de saber se ele é conduzido pelos salários ou pelos lucros. Isso, como se sabe, deu origem a uma literatura florescente, em grande parte de autoria de pós-keynesianos, a qual também foi criticada por alguns marxistas.
Se a demanda for liderada pelos salários, então uma parcela crescente dos salários na produção total estimulará a demanda de consumo, aumentando a utilização da capacidade de produção das empresas e, finalmente, novos investimentos em capacidade produtiva, de modo que a produção, a produtividade, o emprego, os salários e os lucros possam subir juntos. Um aumento inicial na participação nos lucros e uma queda na participação dos salários em um regime liderado pelos salários levarão a um consumo mais fraco e, a partir daí, investimento e crescimento mais fracos.
Se a demanda for liderada pelo lucro, então uma queda na participação salarial e um aumento na participação nos lucros estimularão novos investimentos e mais crescimento, enquanto um aumento na participação salarial levará a um investimento e um crescimento mais fracos. Essa tende a ser a perspectiva de muitos marxistas; já os pós-keynesianos estão abertos às possibilidades de crescimento liderado tanto por salários quanto por lucros; nesse caso, eles confiam na análise empírica para tirar conclusões particulares conforme a situação histórica.
Economias pequenas e abertas podem se beneficiar e se sustentar por meio de um regime baseado no lucro. Pois, a repressão salarial torna os preços de exportação mais competitivos; assim, a demanda externa pode contribuir substancialmente para o crescimento geral. Economias grandes e menos abertas, em última análise, não podem depender da repressão salarial e do crescimento liderado pelos lucros e pelas exportações no longo prazo, pois os superávits comerciais resultantes do fraco crescimento do consumo enfraqueceriam o crescimento global como um todo, forçando déficits comerciais e acumulação de dívidas no exterior e provavelmente gerando oposição ao livre comércio.
Shaikh rejeitou a tese pós-keynesiana da demanda liderada pelos salários; afirmou que um regime liderado pelos lucros poderá se manter melhor no longo prazo. As economias podem ser lideradas pelos salários no curto prazo, mas se o crescimento elevar continuamente a participação salarial, com queda resultante na participação dos lucros, isso acabará por desacelerar o crescimento. Isso faz com que os dois regimes de demanda diferentes sejam parte de uma sequência e não alternativas de política econômica.
Desequilíbrios globais e modelos de desenvolvimento
Outro economista interessante é Michael Pettis. Ele teoriza a existência de dois modelos distintos de crescimento e desenvolvimento, os quais tem alguma semelhança com os descritos acima: o modelo de altos salários e o modelo de alta poupança. De certo modo, essa teorização alternativa oferece uma visão global e histórica mais ampla do que a distinção pós-keynesiana entre regimes de demanda liderados por salários e liderados por lucros.
Pois, abrange diversas experiências de desenvolvimento econômico, incluindo os chamados “milagres de crescimento”. Permite pensar também o pós-milagre, pois às vezes o caminho dessas economias se torna bem difícil: ocorrem desequilíbrios no balanço de conta corrente, os quais influem na acumulação de dívidas, em crises financeiras sobrevenientes, em recessões. Põe-se, assim, a questão do imperialismo e do conflito sobre o comércio internacional.
Limites dentro do capitalismo
Para Marx, a razão de ser do capitalismo é o crescimento ilimitado via acumulação de capital ou investimento produtivo. Isso permite o aumento dos padrões de vida, mesmo que sejam distribuídos de forma desigual no tempo e no espaço. O aumento dos padrões de vida é proporcionado pela maior produtividade; esta torna possível uma combinação de maior renda e mais consumo, eventualmente com mais lazer. As decisões sobre como se desenvolver são tanto políticas e sociais quanto econômicas e, hoje, cada vez mais ambientais também.
O aumento do investimento produtivo em nova capacidade econômica possibilita o aumento do consumo para a massa de trabalhadores por meio de salários mais altos. Existem, portanto, limites sistêmicos para a repressão do crescimento dos salários em relação ao crescimento da produtividade e, portanto, uma maior participação nos lucros na produção global. Estes atuam para deprimir a demanda de consumo doméstico na ausência de maior crédito ao consumidor e acumulação de dívidas, levando a um crescimento mais fraco e desemprego, ou a maiores superávits em conta corrente e forçando uma maior dívida no resto do mundo, refletida em maiores déficits em conta corrente, ou seja, nas trocas da economia nacional com o exterior.
Uma dívida mais alta no resto do mundo poderia financiar o investimento produtivo; contudo, a longo prazo, isso precisaria ser compensado com uma maior capacidade de exportação, com maiores superávits em conta corrente. Se isso não ocorrer, o endividamento externo poderá comprometer o crescimento. Pode ocorrer também que níveis mais elevados de endividamento com o resto do mundo financiam investimentos improdutivos e, portanto, insustentáveis, ou maior consumo. Isso poderá produzir crises cambiais, levando a um processo de desalavancagem e demanda mais fraca, perdão de dívida ou falência.
Há também limites para uma parcela crescente dos salários e uma parcela decrescente dos lucros na produção geral. Se as empresas ainda desejam investir na presença deste último, podem tomar empréstimos para fazê-lo, mas se os lucros continuarem a decepcionar, os fundos para pagar a dívida não estarão totalmente disponíveis, levando eventualmente à fragilidade financeira e, se ocorrer numa escala suficientemente ampla, a uma crise financeira.
Políticas de estabilidade?
Considere-se, agora, a famosa frase de Hyman Minsky segundo a qual a “estabilidade é desestabilizadora”. Mesmo que as tendências econômicas e as políticas se combinem para produzir longos períodos de estabilidade e prosperidade, isso tenderá a aumentar o apetite por risco de parte dos agentes econômicos, o que, eventualmente, pode ter um efeito desestabilizador que leva à crise. A mitigação de crises mesmo menores pelos formuladores de políticas pode alimentar ainda mais o apetite ao risco e, em última análise, produzir uma crise profunda e duradoura, uma Grande Depressão.
Minsky defendeu um “governo grande” (política fiscal) para estabilizar os lucros e um “banco grande” (um credor de última instância, ou seja, um banco central) para evitar grandes crises e recessões. Ademais, essa dupla pode também melhorar as leis antitruste, limitando a escala das corporações e melhorando o funcionamento do processo competitivo. Ele também argumentou que reformas precisavam estar sempre em andamento, sujeitas às mudanças inovadoras inerentes ao sistema, principalmente no setor financeiro. A inovação nestes últimos nem sempre é uma coisa boa pois ela pode produzir uma maior fragilidade.
Apesar de tudo isso, há argumentos para a implementação de políticas que estabilizem o crescimento dos salários em relação ao crescimento da produtividade já que elas, por definição, estabilizarão a participação dos salários e dos lucros na produção global. Essas são as duas principais categorias de renda da economia como um todo, e os formuladores de políticas podem agir para ajudar a evitar a ocorrência de grandes desequilíbrios econômicos, tanto no mercado interno quanto no internacional.
Pacotes de políticas que tornam isso possível baseiam-se nas experiências das economias de mercado coordenadas centralmente, ou seja, ‘corporativistas sociais’ particularmente em países da Europa Ocidental, como Alemanha, Áustria e Escandinávia. Aí, os sindicatos desempenham um papel importante na determinação nacional dos salários.
Isso não torna necessariamente o caminho do desenvolvimento algo fácil. Às vezes, sindicatos fortes podem desempenhar um papel na repressão salarial, que, como discutido acima, pode melhorar a competitividade internacional, enquanto exporta alguma combinação de deflação, desemprego e aumento da dívida, o que é insustentável, principalmente para economias maiores. Mas se os formuladores de políticas visam evitar desequilíbrios frequentes e desestabilizadores, então as instituições que permitem o surgimento de um capitalismo mais coordenado são vitais.
Existem limites dentro do sistema atual para aumentos de salários em relação aos lucros e vice-versa. Há, então, a necessidade de criação de instituições criativas e formulação de políticas adaptáveis que se baseiem nas lições do passado para criar uma prosperidade mais amplamente compartilhada e sustentável para o futuro.
N. T. O autor não resiste evidentemente à tese de que o capitalismo, mesmo com enormes dificuldades, vai produzir ainda progresso. Como base em bons argumentos ou em “crenças racionais”, pode-se duvidar – é claro.
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