Autor: Jon Mills[1]
A arché [2] da psique
Quando começa a vida psíquica? A emergência do ego constitui propriamente a subjetividade humana ou podemos apontar legitimamente para forças ontológicas anteriores? Como mencionado anteriormente, não desejo reduzir essa indagação metafísica a um empreendimento meramente materialista, apenas para reconhecer que certas contingências fisiológicas da corporeidade são uma condição necessária, embora não suficiente para explicar a origem psíquica.
Embora a psicologia do processo psíquico seja sensível ao trabalho contíguo e compatível feito nas ciências biológicas e neurocientíficas, isso não precisa nos preocupar aqui. Se alguém se contenta com uma abordagem materialista, que recorra ao discurso sobre o óvulo e o esperma.
Eis que devemos proceder com um respeito cuidadoso à máxima de Freud segundo a qual é preciso resistir à tentação de reduzir a psique ao seu substrato anatômico. Como as abordagens empíricas sozinhas não podem abordar a epistemologia do nosso interior ou do vivido qualitativo inerente ao processo experiencial, devemos tentar abordar a questão dialeticamente.
Mais especificamente, estamos preocupados em isolar os movimentos experienciais que provocam o início da realidade psíquica tal como vivida. Antes de podermos abordar o ego da consciência, devemos primeiro explicar o fundamento original por meio de um relato de processo do surgimento da estrutura arcaica. Embora não seja algo que tenha sido articulado pelo próprio Freud, o conceito de pulsão nos permite abordar a questão da gênese.
Devemos agora retornar à questão do fundamento. Embora Freud nos diga que o Isso condiciona todas as outras formas de agenciamento psíquico, as pulsões e os recalcamentos condicionam o Isso. Além disso, uma vez que a repressão é uma vicissitude das pulsões, as pulsões tornam-se necessariamente uma atividade inconsciente fundamentadora. Portanto, o que podemos inferir de Freud é que as pulsões se tornam primordiais. Mas isso é suficiente? Como as pulsões se constituem em primeiro lugar, isto é, como funcionam como vida inconsciente organizada? Além disso, como elas surgem?
A inconsciência precede a consciência; esta última está, portanto, enraizada na experiência subjetiva inconsciente. Na verdade, a consciência é a manifestação da estrutura inconsciente, que se expressa primeiro como pulsão. Freud enfatizou a equiprimordialidade de Eros e da Destruição, entretanto, a sua noção de pulsão de morte pode ser considerada uma de suas realizações teóricas mais importantes. A pulsão de morte (Todestrieb) não é apenas a presença inata de agressão animal ou de atos de destruição exteriorizados, mas sim o impulso para a morte.
Se a pulsão de morte pode ser observada como vontade de matar, primeiro ela se apresenta para o sujeito como vontade de suicídio. Mas, como Freud diz, principalmente devido a impulsos antitéticos e contrariantes motivados pelo desejo de adaptação e de autopreservação, os impulsos autodestrutivos são tipicamente desviados e resguardados por meio de deslocamentos projetivos que encontram satisfação por meio de muitos caminhos tortuosos ao longo de nossas histórias de desenvolvimento.
Antes de Freud se comprometer totalmente com a noção de pulsão de morte, ele especulou sobre o nascimento evolucionário e sobre a metamorfose do inanimado em vida animada. Em Além do Princípio do Prazer, Freud conjectura que “o objetivo de toda vida é a morte” [3] e que a vida orgânica, em última análise, deseja retornar a um estado inorgânico de quietude. Ao considerar como a atividade animada surgiu, Freud especulou que a matéria orgânica [4] teria ficado perfeitamente satisfeita com sua simples unidade de quietude se não fosse pela invasão de perigos circunstanciais que ameaçavam sua coesão e integridade internas.
Como resultado, um princípio de vida (ou a libido) foi posto como uma manobra defensiva contra a ameaça iminente de destruição por meio de uma invasão de fora para dentro. A partir desse relato, o impulso para a vida é uma defesa contra um perigo real ou percebido que ameaça invadir o mundo solipsista do organismo.
Mediante a extensão dessa noção ao sujeito humano, a morte está paradoxalmente além do princípio do prazer, mas ao mesmo tempo é o prazer supremo: a morte é um estado sem tensão. Mas a morte só se torna prazerosa na medida em que é deslocada para o futuro; é por isso que Freud diz que o organismo deve se engajar em rotas tortuosas de autodestruição (isto é, como repetição), as quais o trazem de volta à sua condição inorgânica original. Em outras palavras, a violência aqui é produzida pelas próprias mãos do sujeito.
A afirmação ousada de Freud não foi bem recebida pela psicanálise e foi totalmente rejeitada com base em fundamentos biológicos (por exemplo, Sulloway); no entanto, a morte é inequivocamente condicionada ontologicamente. Morte, conflito, negação, caos – satura a estrutura psíquica e é o processo impulsivo por trás da própria dialética evolutiva. Ao voltar nossa atenção na direção de uma explicação processual da dialética do desejo, acreditamos que temos justificativa para dizer que a morte é nossa pulsão original. A negatividade é o nosso ser interior que entra em oposição consigo mesmo – seus próprios processos mentais antagônicos e concorrentes competindo por expressão, seja de modo consciente ou inconsciente.
Como nos informa Hegel, o mero ato de confrontar a oposição é negativo e agressivo; trata-se, pois, de um empreendimento conflituoso que consiste em cancelar, superar e preservar tal negatividade dentro do abismo inconsciente de nossa constituição interior. No entanto, a destruição inerente a todas as relações dialéticas é apenas um momento dentro do processo holístico de elevar os estados internos a formas ou modos superiores de ser. Portanto, há um significado positivo para o negativo que gera níveis mais avançados de progressão e realização psíquica.
Desta forma, a negatividade é tanto um fundamento quanto um processo de transcendência da mente. Ao tratar e estender a noção freudiana da pulsão de morte como um processo dialético nos permite mostrar como o inconsciente fundamenta seu próprio terreno por meio da negação determinada. A morte é teleologicamente dirigida e experimentada como a vida voltada para fora, do interior para o exterior, no sentido de obter os meios de retornar ao seu estado anterior de paz indiferenciada e imperturbável.
Ao considerar o início da vida psíquica, no entanto, devemos levar a tese de Freud mais além. Ao conceber a gênese – o nascimento da atividade psíquica –, faz mais sentido pensar que a vida mental tenha que experimentar uma forma de agitação de dentro de sua própria constituição interior, ao invés de uma resposta ao trauma que vem de fora da psique.
Em vez de um estado primitivo e não adulterado de quietude, a alma, o ego embrionário ou agente inconsciente pré-formado (o que Freud chama de Isso), teria que experimentar uma ruptura devido à discórdia interna. E esta discórdia serviria para pontuar sua entrada na vida, um processo de despertar de sua nascença a partir do estado anterior.
Mas como isso é possível? Hegel descreve o processo pelo qual a alma inconsciente passa por uma evolução dialética que eventualmente se torna o ego da consciência. O método de Hegel é particularmente relevante para a questão da gênese. Ao adotar uma abordagem dialética na análise teórica, podemos especular como a agência inconsciente primeiro se materializa.
Como a mente não pode emergir ex-nihilo, devemos postular o surgimento da agência psíquica a partir de uma atividade dialética inconsciente e progressiva; em outras palavras, como uma determinada pulsão teleológica. Dada a sua facticidade bruta no corpo humano, a mente deve emergir de dentro de seus primórdios naturais, doando a si mesma, assim, a sua própria natureza. No começo (arkhé), há uma imediatidade simples, a mera existência dada ou confusão imediata do pulso psíquico, o que podemos chamar vagamente de apercepção inconsciente.
Esta é a inconsciência em sua imediatidade, nem constituída nem desenvolvida de forma coesa, mas sim a presença experiencial de seu ser senciente. Porque o que é, é uma imediatidade inconsciente e pré-reflexiva, podemos apenas designá-lo como um agente implícito ou atividade passiva pertencente à experiência mental nascente.
Por ser apenas atividade implícita em sua imediatidade e estrutura iniciais, trata-se para ela de se tornar explícita e de mediar a si mesma por meio de uma laboriosa progressão dialética; ainda assim, isso requer o amadurecimento do processo de desenvolvimento: a mente tem de trabalhar muito antes de se tornar um ser processual e conscientemente cognoscente. Assim, em sua forma pré-natal, podemos apenas dizer que a mente é uma pulsação inconsciente, um processo experiencial aperceptivo que ainda está sendo embalado.
De acordo com este relato, não faz sentido falar de mente nascente ou do si mesmo no começo como “vivência sensório-motora” (Winnicott) ou como “centro de iniciativa” (Kohut) sem explicar como a individualidade e a vida consciente são preparados por relações mediadoras inconscientes.
Psicanalistas, de Freud a Klein, a Winnicott e a Kohut não foram capazes de fornecer uma descrição satisfatória do autodesenvolvimento do ponto de vista da gênese: embora o ego seja uma realização progressiva do desenvolvimento de algo presente já no nascimento – uma constatação ingênua –, devemos explicar como a maturação pré-natal do ego prepara a psique para autotransformações posteriores, assim como para as tarefas funcionais. Isso requer explicar as manobras dialéticas que trazem a consciência à existência em primeiro lugar.
Como o autodesenvolvimento do eu simplesmente não faz surgir o ego da consciência, devemos primeiro examinar o contexto e as contingências que a alma encontra pela primeira vez em sua imediatidade inicial. O termo “alma” é usado aqui, como em Hegel, para descrever o imediatismo da subjetividade como um estado inconsciente de unidade indiferenciada ou unidade com sua corporeidade natural. Assim, ao contrário de Freud, que discute a alma como a unificação da vida inconsciente e consciente, aqui a alma é estritamente uma incorporação afetiva e inconsciente. Não pertence à sensualidade da consciência, embora a sensualidade na forma da certeza de si afetiva seja a sua modalidade experiencial.
É importante neste ponto enfatizar novamente que a alma em sua unidade inconsciente imediata, indiferenciada de sua natureza senciente, é uma atividade aperceptiva ou experiencial. O termo “apercepção”[5] é usado aqui para denotar a sensualidade sentida ou apreensão de si na imediação própria da alma. Em sua forma implícita ou forma experiencial inicial, a alma deve passar por uma evolução interna que a eleve a um estado de mediação experiencial.
Esta é a instanciação dialética inicial da vida psíquica, uma relação que o inconsciente tem primeiro consigo mesmo. E este é um processo que se desenvolve a partir de si mesmo, a partir de sua própria constituição interior. Essa relação própria que a alma tem consigo mesma é a primeira transição para dar a si mesma uma vida determinada. Antes disso, a alma é uma imediatidade ontologicamente determinada.
Em sua passagem do implícito ao explícito, do imediatismo ao mediatismo, ela se apodera de sua natureza teleológica como ser determinado. A alma, ou o que chamarei de ego inconsciente incipiente, padece de uma inquietação; além disso, uma intensificação de sua natureza já inquieta como pura atividade e gera o movimento inicial de seu próprio devir.
Portanto, o ser ainda apenas inconsciente já é lançado para participar do processo de seu próprio devir numa trajetória com determinadas relações mediadoras. Assim, nos estágios iniciais do desenvolvimento da alma, o ser embalado pela experiência inconsciente sofre uma tensão interna e desperta em sua imediatidade natural como uma corporificação corporal sensual.
Este é um processo arquitetônico gradual de desdobramento de relações dialéticas que se tornam contextualmente realizadas por meio da expressão auto gerativa. Essas operações dialéticas sustentam o desenvolvimento psíquico. São, pois, as atividades dinâmicas fundamentais que erigem as estruturas mentais e a ordem dentro da mente (ou seja, por meio de processos interativos contínuos de forças inter-relacionadas e complementares).
Nessa forma mental rudimentar e acalmada, o organismo é uma atividade passiva, adormecida (por assim dizer) em sua própria interioridade. Podemos razoavelmente dizer neste ponto que a mente é em grande parte um fluxo moderado de atividade, pulsação ou palpitação calma de experiência que é relativamente simples, carece de complexidade e coesão interna e é relativamente constituída por suas contingências fisiológicas.
Mas, ao contrário do organismo quieto de Freud, a mente passa por uma profunda inquietação ou estrondo interno de negatividade que experimenta de dentro de seu “estado de coma” como uma erupção do ser. Essa inquietação se deve à oposição que encontra de dentro de seu próprio interior – não provém da exterioridade, mas talvez seja experimentada como uma presença estranha ou uma apresentação de tensão semelhante à visão freudiana da pulsão. Essa pulsão, no entanto, atua como um ímpeto interno para despertar, para se mover, para se mobilizar para uma experiência mais concreta: em seu estado inicial de excitação inconsciente, ela se assume como um ser próprio, vibrante e sensível.
Aqui a apercepção inconsciente desperta a si mesmo para ser e para projetar a vida em si como a forma de sentir a certeza de si. A alma intui sua própria presença como tal por meio da experiência afetiva corporificada de sua autoconsciência imediata. Essa autoconsciência, no entanto, não é autorreflexiva, autoconsciência pertencente ao ego da percepção consciente e introspecção. Em vez disso, é uma forma pré-reflexiva e não proposicional de certeza de si como experiência senciente-afetiva subjetiva imediata, o que chamei de “autoconsciência inconsciente”. O eu amorfo conhece a si mesmo em sua imediatidade como subjetividade experiencial inconsciente.
Mas por que a pulsão surge para começar? Que ânsia ou impulso desperta a mente de seu sono interno? Aqui a mente é um imediatismo indeterminado inquieto, uma unidade inconsciente simples e fechada em si mesma que pulsa e existe em um estado de quiescência inquieta. Ele sofre uma reviravolta por causa de certas correntes instintivas e motivacionais que pressionam para se expressar como uma fome primordial ou desejo de experimentar, de se alimentar, de se satisfazer, ou seja, como apetite ou desejo.
Aqui temos algo a aprender com os idealistas: a subjetividade humana é um empreendimento desejoso – ela anseia, busca, encontra. Mas por que desejamos? Em outras palavras, o que constitui o desejo em primeiro lugar?
Freud encontra sua fonte nas organizações somáticas; temos boas razões para acreditar que o desejo é um processo natural que emana do corpo informado por pressões evolutivas; mas isso não aborda adequadamente o status ontológico do desejo, nem significa que a pulsão se transforma em biologia, como mostramos anteriormente. Freud é inequívoco ao dizer que a pressão ou a força de um impulso é sua própria essência (Wesen), portanto não pode ser simplesmente redutível a seus determinantes causais materiais eficientes subterrâneos.
Mas por que o desejo inconsciente experimenta tanta pressão para começar? Qual é a sua razão para desejar?
A mente deseja porque está em relação à ausência ou carência. Assim, a pulsão surge de um desejo primordial, o desejo de suprir a falta. Nas fases mais primitivas da constituição psíquica, a mente é um fluxo ativo de desejo exercendo pressão de dentro de si como pulsão, clamando por satisfação, o que Freud chamaria de “prazer”. Mas, ao contrário de Freud, que vê o prazer como redução da tensão, pode-se dizer que a mente sempre anseia, sempre deseja. Enquanto um determinado impulso ou seus derivados acompanhantes podem ser saciados, pode-se dizer que o próprio desejo nunca para formalmente de ansiar: ele está condenado a experimentar a falta. Ao contrário de Lacan, no entanto, que descreve o desejo como “falta de ser”, aqui o desejo inconsciente é ser-em-relação-à-falta.
Dentro do próprio processo de gênese inconsciente, podemos observar a presença avassaladora da morte. A dialética está condicionada à premissa da negação e da falta, primazia do não. O nada ou a falta informa a dialética que experimentamos como desejo. O desejo é uma atividade teleológica (proposital), um desejo – ao mesmo tempo um desejo e um ímpeto – um esforço infinito, um esforço para preencher a falta.
A ausência está em relação primária com a presença, incluindo o ser ou a presença da ausência; é por isso que o desejo permanece um ser-em-relação-à-falta fundamental. Enquanto a pulsão gradualmente se torna mais expressiva e organizada na vida mental, o reservatório profundo do inconsciente começa a se encher à medida que a agência psíquica simultaneamente se incuba e se transpõe por meio de sua própria atividade determinada. Em seu estado original, porém, ser e nada, vida e morte, são a mesma coisa.
O Ego e o Abismo
Seguindo nossa análise dialética do surgimento da agência inconsciente, podemos facilmente ver como esse processo de desenvolvimento procede do imediatismo arcaico e não refinado de nossa natureza corpórea sensível e se direciona para o desenvolvimento do ego capaz já das atividades superiores da cognição: a mente desperta de seu imediatismo primordial inicial indeterminado e se desdobra em uma organização progressiva mais robusta e determinada da vida psíquica – das formas mais primitivas às mais exaltadas da consciência humana. Mas, inicialmente, a mente tem sua forma na imediatidade natural em que se encontra como não-consciente e pré-reflexiva. experiência afetiva, corporificada.
A certeza de si que a alma inconsciente tem de si mesma em sua imediatidade natural pode ser resumida pelas seguintes fases dialéticas de desenvolvimento:
(1) a mente desperta como apercepção inconsciente devido a compulsões internas para experimentar e revelar-se a si mesma como atividade corpórea sensível e aperceptiva;
(2) o surgimento da subjetividade inconsciente sofre uma convulsão interna gradual devido às pressões do desejo e do impulso que ela;
(3) experimenta como uma certeza de si sensual corporificada e afetivamente carregada.
Este desenvolvimento prévio do ser humano, sem dúvida, ocorre no ambiente fetal pré-natal, que consiste, essencialmente, em orientações inatamente predispostas do organismo, as quais pertencem e despertam como a privatização da experiência subjetiva inconsciente.
Constatamos que a inquietação pelo desejo como experiência da falta é o ponto inicial de gênese da expressão psíquica sentida. A psique nesse nível toma a si mesma como sua forma inicial, que nada mais é do que a certeza afetiva própria de sua imediatidade natural corporificada.
Até agora, usamos o termo “alma” para designar esse processo intermediário de desenvolvimento psíquico, porém, justifica-se ir além? Quando a subjetividade inconsciente se torna um agenciamento organizado a ponto de podermos dizer que existe um eu e/ou um Isso? É legítimo dizer que, desde que haja qualquer atividade inconsciente, isso constitui agência, ou a agência deve derivar de um estado ou ocasião de desenvolvimento superior?
Sim, porque há uma transição mediadora do desejo inquieto para o impulso ou pulsão de experimentar a si mesmo, penso que temos razão em dizer que nesta fase da epigênese [6] da mente inconsciente temos a forma rudimentar do ego, que tem como tarefa tornar-se mais consciente e desenvolver-se ainda mais como ser subjetivo no mundo.
Sim, porque a mente faz a mediação a partir de sua naturalidade imediata como afetividade experiencial, isso constitui um movimento dialético de afirmação determinada de si mesmo, embora tal determinação seja ainda profundamente primitiva e elementar. Essa determinação da autoinstanciação da mente coloca o desenvolvimento do ego antes do nascimento dentro de seu ambiente pré-natal, onde se prepara para o despertar consciente e posteriormente.
Portanto, o ego não é apenas uma agência constituída no nascimento, mas é preparado na alma inconsciente muito antes.
Esquematicamente, podemos traçar o desdobramento inicial do ego inconsciente incipiente à medida que progride de (i) desejo para (ii) apercepção para (iii) senciência [7], cada fase sendo apenas um momento na constituição da agência subjetiva por meio de sua própria mediação dialética determinante (veja-se a figura em sequência). Podemos ver facilmente como esse processo de modificação continua a proliferar de uma forma dinâmica suplantada consecutiva, tornando-se eventualmente o ego da consciência, abraçando e incorporando suas novas experiências e aquisições de desenvolvimento.
Até agora, enfatizei a experiência afetiva corporificada que o ego tem com sua própria imediatidade dentro de sua totalidade inconsciente. Ou seja, o ego só conhece a si mesmo como um ser senciente que sente. De fato, não tem outro conteúdo senão sua forma original de unidade dentro de sua condição corpórea natural de sensualidade inconsciente.
Essa sensualidade, no entanto, não é a sensualidade da percepção consciente, mas sim a interiorização sentida do imediatismo experiencial. Mas assim que o ego se sente como um ser experiencial, ele já realiza a ação mediadora de conhecer sua própria existência.
Essa mudança do estado de vigília em sua imediatidade natural para a experiência de si mesmo como um agente de sentimento constitui o nascimento da psique. Podemos nos referir a essa atividade como um processo de intuição que é tanto uma forma de sensualidade quanto uma forma de pensamento.
Aqui, a rígida bifurcação entre emoção e pensamento deve ser suspensa, pois a apercepção afetiva inconsciente torna-se o protótipo do pensamento que atribuímos à subjetividade consciente: pensamento – razão – é a materialização do desejo. Com efeito, o eu nascente intui seu próprio ser coletando ou reunindo os dados sensoriais que ele experimenta internamente, de dentro de seu próprio interior, e então se põe ou pensa nesse estado, portanto, esse processo é tanto um processo afetivo quanto cognitivo. atividade. Isso não implica que o eu se pense na existência, como afirmam muitas filosofias modernas da vontade, mas pensar é inicialmente afetividade experiencial como certeza de si.
Enquanto as operações superiores da cognição consciente não nos interessam aqui, mostramos como a consciência é dialeticamente preparada dentro da experiência subjetiva inconsciente. Desta forma, o ego inconsciente impõe sua própria ordem experiencial na fenomenologia da consciência que surge no ego após o nascimento físico real do bebê humano.
No entanto, apesar da intensificação dos sentidos que se acumulam através do desenvolvimento cognitivo, a ressonância dos estados afetivos inconscientes iniciais do ego torna-se a pedra de toque para a mente filtrar e comparar todos os encontros experienciais subsequentes. A vida do sentimento continua sendo um aspecto essencial da subjetividade humana.
O eu experimenta a si mesmo como um pensamento sensorialmente corporificado que eventualmente se torna ainda mais dividido, diferenciado, organizado e expresso dialeticamente à medida que as formas superiores do desenvolvimento psíquico se desenrolam. Foi dito que esse processo genérico de progressão psíquica consiste numa trajetória identificatória e projetiva de padrão dinâmico por meio do qual o eu se divide por meio da cisão interna, depois projeta seu interior na exterioridade como negação afirmativa e depois se identifica com sua forma rejeitada, que ele apreende e reabsorve, reincorporando-se assim à sua constituição interior transmutada.
Este é um padrão dinâmico progressivo de trajetória arquitetônica inconsciente que vai muito além da noção de identificação projetiva defendida pela primeira vez por Klein e Bion. Na verdade, esse próprio processo é a força ontológica da dialética responsável pela evolução da mente. É desse interior obscuro do vazio inconsciente que o ego deve se libertar e se elevar de sua existência solitária e aprisionada para o mundo experiencial da consciência.
No entanto, o ego embrionário primeiro conhece a si mesmo, não como um sujeito consciente, mas como uma autoconsciência pré-reflexiva e inconsciente; em outras palavras, como uma intuição de si voltada para o próprio interior. O ego inconsciente surge como uma agência que tem alguma capacidade bruta para relações mediadoras dialéticas e, ao determinar o ponto de tais transmogrificações[8], podemos razoavelmente dizer que há uma expressão teleológica determinada.
A mediação dialética do ego de sua imediatidade natural e experiência afetiva de si mesmo como certeza de si torna-se o modelo lógico da progressão psíquica. É dessa maneira que a mente inconsciente progride das configurações mentais mais arcaicas de impulso ou impulso inconsciente para as experiências refinadas da autoconsciência.
Mas essa avaliação nos deixa com a difícil questão da diferença entre ego e pulsão, o que Freud dicotomizou como o eu e o Isso. Em vez de conceber o ego e o domínio das pulsões como duas entidades separadas, acredito que seja importante conceituar de novo essa dualidade como um processo monístico de diferenciação e modificação psíquica, mostrando como o ego é de fato a personificação organizada e a experiência da pulsão.
Porque o ego é alimentado ontologicamente pela dialética do desejo inconsciente, e o desejo é a própria força por trás da aparência da pulsão, a divisão entre o eu e o Isso é essencialmente anulada. É como a pulsão aparece como ego que podemos observar tais diferenças, enquanto ontologicamente falando, ego e pulsão são idênticos.
Em relação à filosofia de Hegel, rotulei novamente o domínio do Isso como um abismo inconsciente que, penso, capta com mais precisão os múltiplos processos de inconsciência que Freud tentou categorizar sistematicamente. No entanto, enquanto Freud nos alerta para sua visão do inconsciente como consistindo de três agências divididas, com o ego e o superego sendo ainda mais divididos em contrapartes conscientes e inconscientes, eu vejo o abismo do ponto de vista de uma ontologia inconsciente desenvolvimentista monística que dá origem a níveis superiores, ou seja, a formas de organização psíquica que interagem e interpenetram as contingências experienciais e intersubjetivas que ela encontra e assimila através de uma função cibernética de relações dialéticas recíprocas.
O abismo é aquele domínio da mente inconsciente do qual o ego emerge e ainda continua a preencher e engajar através de sua relação com a experiência subjetiva consciente. Em uma palavra, o abismo é o fundamento psíquico indispensável da subjetividade humana – a condição ontológica a priori para que todas as formas de consciência surjam, se materializem e prosperem. Isso assegura a primazia da experiência arcaica, do afeto não formulado, das vicissitudes emocionais e das reverberações pré-linguísticas e/ou extralinguísticas, apesar da equiprimordialidade da linguagem e do processo inconsciente.
A relação do ego com o abismo torna-se aquela que requer um grau de diferenciação e negação realizada pelo ego direcionado a todos os reinos da alteridade. Com efeito, o que o ego experimenta é alienação, especialmente sua própria autoalienação ou atividade alienante como experiência negada, que se torna relegada à alteridade e separada de sua própria autoidentidade. Tal diferenciação é uma atividade que o ego realiza dentro de si através da negação determinada – eu não sou isso!
Portanto, o abismo é a materialidade da natureza na qual o ego emerge, mas está aí sempre imerso: ele se experimenta como pulsão – como um ser subjetivo desejoso, que é a organização formativa e expressão da agência inconsciente que de modo epigenético se torna o ego consciente. É apenas em relação a si mesmo que o ego forja uma lacuna entre si e o abismo – que se torna o domínio de tudo o que o eu se recusa a identificar como sendo idêntico a si mesmo. Podemos ver prontamente como o Isso freudiano pode ser conceitualmente incluído no abismo do ego, aquele elemento da mente alienada (alienus) ao próprio imediatismo experiencial do ego.
Determinamos que o desejo como ser-em-relação-à-falta é a essência da mente que alimenta e sustenta o processo da dialética. O desejo torna-se o impulso ontológico por trás da presença e da experiência sentida da pulsão, ela própria o impulso, a pressão ou o impulso para a atividade; e esse processo dá origem ao despertar do ego inconsciente dentro de sua própria interioridade para se descobrir como um ser sensual, aperceptivo, afetivo e intuitivo que conhece a si mesmo em sua natural imediatidade corporificada. Essa transição dialética da imediatidade indeterminada para a mediação determinada, pela qual o ego assume sua própria forma natural como seu objeto inicial, constitui o surgimento da agência subjetiva inconsciente.
Apesar de sua organização grosseira nesta fase de sua vida, aponta para o processo dialético de seu próprio devir como uma expressão teleológica progressiva da subjetividade, eventualmente adquirindo cognição consciente e as faculdades superiores do pensamento racional autoconsciente à medida que o desenvolvimento se desenrola sequencialmente. Esses planos superiores de desenvolvimento são forjados pelo poder sustentador da dialética, um processo que ocorre antes de tudo dentro do abismo inconsciente de sua imediatidade natural.
O ego se materializa a partir de um abismo no qual ele mesmo permanece. Desta forma, o próprio ego inconsciente é um abismo que deve mediar as forças múltiplas, sobredeterminadas e antitéticas que o povoam e assediam. Na atividade determinada de mediação do ego, ele se opõe à alteridade que deve superar, e isso inevitavelmente significa que certos aspectos de sua interioridade (por exemplo, conteúdo, imagens, impulsos, desejos, ideação) devem ser combatidos e/ou substituídos.
É apenas na condição de que o ego intua a si mesmo que ele dá a si mesmo a vida sentida como imediatidade experiencial subjetiva. Quando visto do ponto de vista do desenvolvimento maduro do ego, o abismo torna-se qualquer coisa que o ego se recusa a identificar como pertencente à sua própria constituição.
Freud nos diz que “o ego é antes de tudo um ego corpóreo” pelo simples fato de estarmos corporificados. Mas ele não descreveu completamente esse processo: o ego é, antes de mais nada, uma corporificação inconsciente que intui seu “si mesmo” dentro do imediatismo natural em que se encontra. Por meio da bifurcação dialética contínua, o ego expande seu mundo experiencial e representacional interno e, assim, adquire capacidades, estruturas e sintonia adicionais por meio de suas contingências relacionais conscientes mediadas e conquistas epigenéticas.
Ao fazê-lo, o ego forja um abismo ainda mais amplo e profundo lançando toda alteridade no mentiroso da auto-externalização. Portanto, o abismo entre o ego e o abismo é aquele em que o ego se cria. O ego da consciência emerge de um vazio inconsciente no qual ele afunda a qualquer momento, nunca alcançando assim verdadeiramente a distinção ontológica. O ego primeiro desperta como subjetividade inconsciente dentro do modo de sentir de seu ser original que ele experimenta como pulsão, a compulsão inquieta de experimentar.
É por isso que ego e pulsão não são diferenciados ontologicamente: ego é apenas a aparência da pulsão. O impulso é o desejo natural corporificado, nosso ser original que passa por transformações infinitas na contextualização e atuação de nossas individualidades pessoais e realidades encontradas interpessoalmente.
A pulsão transporta e é isso que rege a dialética. A razão pela qual o domínio da pulsão e, mais amplamente, o do abismo, parece tão estranho ao ego é que, do ponto de vista da diferenciação de si como consciente, somos muito mais do que nossa mera biologia. Definimos nossas experiências subjetivas e quando elas vêm de locais não intencionais como invasões temporais estranhas – do monstruoso ao sublime, eles não são identificados como emanados de dentro ou pela própria vontade determinada.
Para concluir. Tentei mostrar como o pensamento psicanalítico dialético explica o surgimento da subjetividade inconsciente, respondendo assim à tentativa esboçada de Freud de explicar a modificação e a diferenciação do eu do Isso. Com o foco atual na primazia das emoções na organização da própria experiência por meio de relações intersubjetivas, é importante enfatizar que a psicologia do processo explica como a ressonância afetiva se torna o lócus da experiência mediadora inconsciente que o “si mesmo” primeiro tem consigo mesmo. Isso pode explicar por que a vida das emoções produz força e direção primordiais na formação da estrutura psíquica e da realidade intersubjetiva e, portanto, responde parcialmente ao motivo pelo qual certas experiências emocionais inconscientes antecedem e resistem à articulação por meio de meios linguísticos.
[1] Filósofo e psicanalista. Mills é professor honorário do Departamento de psicologia social e psicanálise da Universidade de Essex, Grã-Bretanha. Participa da Escola de Psicologia na Universidade de Adelphi University, EUA, assim como da New School for Existential Psychoanalysis, EUA. É também professor emérito da Graduate Professional School, em Toronto, Canada.
[2] N. T.: Arché é um termo fundamental na linguagem dos filósofos pré-socráticos; é caracterizado pela procura da substância inicial de onde tudo deriva. Trata-se também da ideia mais antiga na filosofia, que marca o ponto de passagem do pensamento mítico para o pensamento racional.
[3] N. T.: Freud não era um pensador dialético. Eis que pensava por meio de dualidades e não por meio de duplicidades. Um pensador dialético diria que a morte é uma pressuposição da vida, vida esta que, em sua finitude, está posta como tal em dadas circunstâncias espaciais e temporais. A vida para frutificar implica em atividade, práxis, e nesta última o humano sempre arrisca, ou seja, chama a morte – a negação da vida. A morte vem a ser, pois, uma ameaça constante à vida. Eis que a vida não prospera sem luta, a qual presentifica a morte como possibilidade. E essa luta produz gozo – o contrário do prazer que é gerado pela satisfação inerente ao estado de quietude.
Nesse sentido, a pulsão sempre põe a vida, pressupondo a morte. Logo, a pulsão seria antes de tudo pulsão de vida – eis que viver é lutar. Mas não é isso que está em jogo em Freud. Quando, por um lado, a pulsão orienta o sujeito para agredir a si mesmo ou ao outro, negando assim o laço social, Freud fala em pulsão de morte ou Tânatos. Quando, por outro lado, ela visa acolher a si mesmo ou ao outro com simpatia e amizade, Freud fala em pulsão da vida ou Eros. Como Freud pensou no interior do capitalismo – e após a I Guerra Mundial –, considerou a pulsão de morte como primeira em relação a pulsão da vida.
Ele está historicamente certo, mas errado como “crítico”. Hobbes diz a verdade que Smith tenta ocultar afirmando a simpatia como um afeto intrínseco aos humanos. A vida humana é social, mas o capitalismo cria o indivíduo apêndice do mercado. Portanto, aí, a pulsão da morte aparece como negação da relação social solidária em nome da competição e, em última análise, da destruição (guerra nacional ou a luta de todos contra todos). Se, por exemplo, a luta produz gozo para o indivíduo social, ele pode desejar e mesmo buscar o combate mortal, o gozo que lhe parece supremo.
[4] O texto original fala em “inorgânica”, mas se julgou que se tratava de um erro.
[5] N. T.: Significado de apercepção. Em filosofia é ação pela qual a mente amplia, intensifica ou plenifica a consciência de seus próprios estados internos e representações. Em psicologia, para a gestalt, trata-se da percepção bruta e imediata de um todo, que antecede a percepção minuciosa e analítica que revela seus componentes e conexões internas.
[6] N. T.: Termo que indica o processo de geração por criações sucessivas.
[7] N. T.: Senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. Em outras palavras: é a capacidade de ter percepções conscientes do que lhe acontece e do que o rodeia. A palavra senciência é muitas vezes confundida com sapiência, que pode significar conhecimento, consciência ou percepção
[8] N. T.: O termo transmogrificação é usado quando um item adquire a aparência de outro item. A mudança é somente estética pois os atributos continuam os mesmos.
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