
No texto em sequência Adam Toose contesta a tese de Cédric Durand de que uma contradição – a acumulação de capital requer elevação da oferta de energia, mas a crise climática opera para diminui-la – está presente na transição energética. Num poste a ser brevemente publicado, Cédric Durand fornece a sua resposta.
Autor: Adam Toose, 20/11/2021, Chartbook
Em 2021, os preços da energia em todo o mundo dispararam dando origem ao boato sobre a existência de uma “crise energética”.
Por que a oferta de carvão, petróleo e gás ficou tão aquém da demanda? Depois de um artigo no New Statesman e uma troca de ideias com Richard Seymour, volto à questão novamente. E não apenas porque a indústria de energia é complicada e fascinante, mas porque a resposta que dei é crucial para localizar onde se está na batalha pela transição energética.
O boato que continua a circular é que a escassez de oferta está diretamente ligada à política climática. Muita falação sobre uma “zeragem líquida” desencorajou os investidores em combustíveis fósseis, resultando em menor investimento, oferta restrita e vulnerabilidade a choques de demanda. Essa ideia tem uma atração óbvia para os lobistas dos combustíveis fósseis, que podem usá-la para argumentar que a transição energética deve ser adiada. Mas também tem tração na esquerda, como argumentado mais recentemente e explicitamente em Cédric Durand em um ensaio intitulado “dilema de energia” no blog Sidecar da New Left Review. Aí ele escreve:
O capitalismo já está experimentando o primeiro grande choque econômico relacionado à transição além do carbono. O aumento nos preços da energia se deve a vários fatores, incluindo uma recuperação desordenada da pandemia, mercados de energia mal projetados no Reino Unido e na EU, os quais exacerbam a volatilidade dos preços, assim como a disposição da Rússia em garantir sua receita de energia de longo prazo. No entanto, em um nível mais estrutural, o impacto dos primeiros esforços feitos para restringir o uso de combustíveis fósseis não pode ser negligenciado. Devido aos limites do governo à queima de carvão, além da crescente relutância dos acionistas em se comprometer com projetos que poderiam estar obsoletos em trinta anos, o investimento em combustível fóssil tem caído. Embora esta contração da oferta não seja suficiente para salvar o clima, ela se mostra capaz de abalar o crescimento capitalista.
A atração desse tipo de argumento para um teórico da crise de tendência marxista é óbvia. Contém em si o anel de uma contradição da qual se poderia derivar um modelo geral de crise. Ele também apareceu um surpreendente número de vezes nas páginas do Financial Times. Pois se trata de um cenário aparentemente plausível. Mas, enquanto relato da crise de energia de 2021, é fundamentalmente enganoso. Atribui demasiada influência à política climática e confunde a dinâmica básica de investimento no setor.
Mais do que a trajetória da política climática, o ponto de partida para uma análise da evolução do setor de energia nos últimos anos deve ser o choque de preços no mercado de energia do verão de 2014. Entre o verão de 2014 e 2016, houve uma queda expressiva – dois terços – do índice agregado dos preços da energia.

Foi este colapso dos preços globais da energia que ditou os padrões de investimento na indústria global de energia e o equilíbrio entre os tipos de combustível na geração de eletricidade, não apenas na UE, mas também nos EUA. Ambos os desenvolvimentos enquadraram a nova era de ambição na política climática, mas a causa origina-se no choque do preço da energia.
Após os acordos de Paris em 2015, o aumento da preocupação com o clima coincide com uma queda do investimento em gás e em petróleo. Mas não foi o primeiro que causou o último. Um declínio no investimento em combustíveis fósseis atribuível a um compromisso cada vez mais confiável a “zeragem líquida” provavelmente ocorreria de forma gradual. Depois de 2014, o investimento despencou.

O grande choque nos preços da energia também levou a um ajuste no padrão de uso de energia. Se o gás pudesse ser comprado a preços baixíssimos, em parte graças à abundância criada pela revolução do xisto americana, as usinas flexíveis a gás poderiam substituir a geração de eletricidade a carvão. Depois de 2014, a “corrida para o gás” foi fundamental para tirar o carvão da cadeia de energia. Mesmo com Trump na Casa Branca, o efeito continuou a operar. O carvão era simplesmente não competitivo em relação ao gás. Assim, o carvão morre na Europa e nos EUA nos anos após a conferência de Paris de 2015. O efeito causal disso, contudo, permeou o mercado de energia. Pois, tanto nos EUA quanto na União Europeia, a política climática não foi apenas um fator secundário. Foi emulada politicamente pela depressão histórica nos preços da energia.
O setor de combustíveis fósseis não recuou tanto depois de 2014, mas se reagrupou. O colapso do investimento depois de 2014 foi repentino e severo. Mas, mesmo fora de seus níveis máximos, o investimento em combustíveis fósseis continuou no mesmo nível do nível de 2007-8, pouco antes da crise financeira. E os custos eram menores, logo houve mais retorno para os investimentos.
Nos Estados Unidos, o governo Obama deu o seu melhor apoio à nova indústria americana de petróleo e gás baseada em xisto. Literalmente dias após a assinatura do acordo climático de Paris em 2015, Obama aprovou a legislação do Congresso que autorizava as exportações americanas de petróleo pela primeira vez desde 1975. Para o governo Obama, não havia dilema energético. Impulsionar a política climática no modo de Paris era totalmente compatível com continuar a investir no futuro da América como uma superpotência de combustível fóssil.
Apenas a visão cega dos ideólogos do Partido Republicano, assim como os trabalhadores contratados da indústria do carvão, pensaria que a administração Obama como sendo hostil aos combustíveis fósseis. Para os aliados da América, o gás americano era feito de “moléculas de liberdade”, substituindo o petróleo e o gás provenientes de regimes autoritários. A contabilidade internacional convencional de carbono não fez nada para restringir essa lógica. As exportações de combustíveis fósseis não são contabilizadas para as metas nacionais de carbono. Portanto, a Arábia Saudita pode prometer alcançar a neutralidade de carbono até 2050, alimentando sua própria economia com energia solar, enquanto continua a investir em escala maciça na capacidade de exportação da Saudi Aramco.
Certamente, a redução do ritmo de novos investimentos sofrida pela indústria do petróleo a partir de 2014 não foi suficiente para induzir qualquer escassez de capacidade. No segundo e terceiro trimestres de 2021, quando o aumento dos preços do petróleo começou, o instituto EIA dos Estados Unidos estimou que a OPEP tinha capacidade para bombear pelo menos 7 a 8 milhões de barris extras por dia, em comparação com a demanda global de 100 milhões de barris por dia.

Se a Arábia Saudita e a Rússia recentemente tiveram problemas para aumentar a produção, como observam analistas como Josh Young, da Bison Investments, isso tem a ver com “obstáculos logísticos, turbulência política e sanções dos EUA”. Da mesma forma, se há uma força que impede novos investimentos na indústria de xisto da América hoje, não é a política climática do governo, mas a insistência de Wall Street de que a indústria de xisto realmente pague dividendos em vez de investir seus lucros em novas perfurações.
Você pode pensar que a chegada de veículos elétricos pesaria na balança, escurecendo o horizonte dos produtores de petróleo. Mas a Exxon e companhia imaginam um futuro para si mesmas como fornecedores de matéria-prima para a indústria química global. E no que diz respeito aos produtores da Arábia Saudita e do Golfo, dada sua base de custo ultrabaixo, eles sabem que serão os fornecedores globais de último recurso. Eles podem, de fato, ter interesse em investir em nova capacidade para poderem conduzir uma guerra de preços completa com o objetivo de derrubar seus concorrentes de custo mais elevado.
No que diz respeito ao petróleo, o dilema energético não se apresenta como um fator relevante em 2021. O atual aumento nos preços do petróleo é o resultado de uma decisão política deliberada da OPEP e da Rússia de controlar a produção e permitir que os preços subam. Os produtores querem realizar lucros para restaurar seus saldos de caixa e recompensar seus investidores pela paciência desde o choque de 2014.
Da mesma forma, embora o investimento geral em gás tenha caído após 2014/5, dificilmente se pode falar de uma greve de investimentos nesse setor. Ao contrário, as perspectivas nesse setor eram animadoras globalmente. Em todo o mundo, o gás consolidou sua participação na geração de eletricidade por meio de um aumento de 23%. Dado o crescimento global, isso criou uma necessidade considerável de novos investimentos. O interesse foi particularmente forte no campo de gás natural líquido (GNL) – a parte do fornecimento global de gás que é comercializada por transportadoras de longo alcance em vez de gasodutos. A falação da “zeragem líquida” não teve nenhum impacto óbvio em uma curva dramática da capacidade de liquefação nos últimos trinta anos. A ambição da América de se tornar um grande exportador de GNL adiciona uma camada adicional de crescimento de capacidade projetada para meados da década de 2020.
A restrição opera talvez do lado da demanda? À luz dos seus compromissos incontestáveis com a política climática, parece óbvio que a Europa deve procurar reduzir a sua dependência do gás estrangeiro e doméstico. Junto com o carvão, a Europa, em um futuro próximo, também terá de desistir do gás. Você pode imaginar que ela estaria reduzindo sua capacidade de transporte de gás ao mínimo. Isso exporia a Europa a choques repentinos de demanda tal como a de 2021. Esse é o cenário do “dilema energético”. Infelizmente, a realidade da situação do abastecimento de gás na Europa é quase exatamente o oposto.
Por mais que a energia eólica e solar tenham crescido em importância, sua participação na geração de eletricidade foi igualada em 2020 pela do gás, que desde 2014, devido aos preços ultrabaixos, teve um retorno dramático. Como a produção doméstica de gás da Europa caiu drasticamente nos últimos anos, para preencher a lacuna, a Europa tem contado com as importações. Para transportar esses suprimentos, a UE já em 2010 tinha oleodutos e capacidades de terminais de GNL muito superiores às suas necessidades. Mas em vez de tratar isso como uma razão para minimizar mais investimentos, dobrou para baixo.

Para reiterar, este investimento ao ritmo de 10 bilhões de euros ocorreram desde que o acordo de Paris foi assinado em 2015 e apesar do enorme excesso de capacidade existente. Além disso, longe de as políticas públicas restringirem o investimento privado, o dinheiro público foi investido na infraestrutura de gás da Europa.
A situação está mudando. O financiamento público está sendo retirado. Mas essas decisões há muito esperadas não podem ser responsabilizadas pelo desequilíbrio do mercado de gás de 2021.
A ideia de um recuo secular do investimento em combustíveis fósseis sob o signo de um “dilema energético” simplesmente erra o alvo. Nos últimos quinze anos, enquanto alardeava o seu compromisso primeiro com o protocolo climático de Quioto e depois com os acordos de Paris, a União Europeia fez um investimento físico e financeiro substancial na integração do seu sistema de abastecimento de gás aos mercados globais de energia.
Desde o início dos anos 2000, o objetivo da política de gás da União Europeia tem sido criar um mercado de gás “liberalizado”, que, entre outras coisas, reduziria sua dependência do fornecimento e dos preços da era da guerra fria por meio de contratos com a Rússia. Além disso, a União Europeia passou a fixar o preço do gás não com base em contratos de fornecimento a longo prazo, mas através do mercado à vista. Visto deste ponto de vista, a enorme capacidade dos dutos e terminais de gás natural líquido (GNL) não é redundante. É a infraestrutura física que permitiu à Europa competir melhor nos mercados globais de gás.
O gás é menos poluente do que o carvão, mas essa estratégia não foi impulsionada pelo desejo de minimizar as emissões de CO2, mas para minimizar os custos de energia e alcançar a segurança energética. Este é um ponto crucial a ser enfatizado. A mudança de volta para o gás depois de 2014 desempenhou um papel fundamental na política climática da Europa nos anos imediatamente posteriores a Paris. E é através do gás que o choque energético global de 2021 chegou à Europa. Mas o gás não foi adotado pelos geradores de eletricidade da Europa para minimizar as emissões de CO2.
Até recentemente, o custo de emissão de uma tonelada de CO2 era tão baixo que os geradores de eletricidade na Europa tinham poucos motivos para considerar as implicações climáticas de qualquer combustível que estivessem usando. Foi só em agosto de 2018 que o preço da emissão de uma tonelada de CO2 para uma usina europeia passou de 20 euros. O objetivo de investir na capacidade de importação de gás era aproveitar as vantagens do baixo preço mundial dos combustíveis fósseis. Graças aos preços globais ultrabaixos do gás, desde 2014, de acordo com estimativas da AIE, a estratégia da UE de contar com os mercados globais economizou US $ 70 bilhões. Mas, da mesma forma, também foi exposta ao choque sofrido pela economia energética global em 2020. É sobretudo através do mercado do gás que a Europa e a Ásia se interligaram como arenas da “crise energética global”.
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