A sociabilidade canibal

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Não se está a falar das sociedades que se costuma chamar de primitivas. Não, de modo algum. Está-se a falar do capitalismo. “Capitalism is back” – diz a autora que cunhou o termo “cannibal capitalism”, tendo por referência os Estados Unidos da América do Norte.    

Karl Marx, como se sabe, empregou a metáfora do “vampiro” para caracterizar a relação de capital, ou seja, o capital, porque ele suga o mais-valor dos trabalhadores, afirmando, ademais, que vem a ser um sujeito insaciável. Anselm Jappe denotou o capitalismo como uma sociedade autofágica para ressaltar que, se parece racional e é assim apreendido pelos economistas apologéticos, tende na verdade à desmedida e à autodestruição. Nancy Fraser, num livro recém-publicado, diz que o capitalismo é canibal pois ele, que atravessa agora o seu ocaso, está devorando a democracia, os cuidados reprodutivos, assim como as pessoas e o próprio planeta.

Em Cannibal capitalism (Verso, 2022), ela quer descobrir as fontes sociais desse destino infausto e aparentemente inesperado. Busca, assim, encontrar uma melhor caracterização do capitalismo contemporâneo que assoma como gerador de insegurança e desesperança, pois mantém e agrava uma coleção de impasses humanitários: dívidas impagáveis, empregos extenuantes, trabalho precário, violência racial e de gênero, pandemias assassinas, extremos climáticos etc., negando na prática o que fora prometido há pelos menos dois séculos e meio passados por meio do progresso e do iluminismo. Capitalismo canibal – diz a professora e filósofa da New School for Social Research de Nova York – “é o meu termo para designar um sistema social que nos trouxe a esse ponto”.

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Policrise e depressão no século XXI

Autor: Michael Roberts, The next recession blog, 05/05/2023

Policrise” é, no momento, a palavra da moda na esquerda. A palavra expressa o encontro e o entrelaçamento de várias crises simultâneas: econômica (inflação e recessão); ambiental (clima e pandemia); e geopolítica (guerra e divisões internacionais). Na verdade, uma ideia semelhante foi apresentada neste blog (The next recession blog) no início do ano passado. 

Portanto, não é surpresa que o último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU seja tão chocante. De acordo com ele, o mundo está mais pessimista do que em qualquer ponto da história moderna, ou seja, desde antes da Primeira Guerra Mundial.

O RDH apresentou uma análise das tendências linguísticas presentes em textos literários nos últimos 125 anos. Revelou assim que ocorreu um aumento acentuado nas expressões que refletem “distorções cognitivas associadas à depressão e outras formas de sofrimento mental”. Nas últimas duas décadas, a linguagem que reflete percepções excessivamente negativas sobre o mundo e sobre seu futuro se expandiu. De fato, os níveis de angústia atuais não têm precedentes, pois superam o que ocorreu em todos os eventos traumáticos do passado.

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A pandemia do coronavírus mostra como será o nosso futuro

De Sharon ZhangTruthout, 30/03/2020

A pandemia do COVID-19 está sendo rapidamente absorvida em nossa consciência coletiva, refazendo a tessitura de nossas vidas. De repente, milhões estão se abrigando em algum lugar, estranhos começaram a se desejar boa sorte na saída dos supermercados, as pessoas pararam de tocar os seus próprios rostos e as prateleiras que estocam normalmente água sanitária e desinfetante para as mãos estão vazias.

Para muitos, a sensação de pavor iminente é o novo normal.

“Algumas vezes por dia, eu me distraio o suficiente para esquecer que tudo mudou, muito provavelmente de uma forma que não será revertida quando a pandemia retroceder”, escreveu Amanda Mull, jornalista que escreve na revista The Atlantic, dos EUA. “Então me lembro e recaio numa vertigem psicológica, tentando reprimir uma mistura de ansiedade, terror e desorientação, algo tão profundo que mal consigo me lembrar do que devo fazer de um minuto para o outro. O medo da peste nunca me abandona por muito tempo.”

Mas, para aqueles que vivem com uma consciência aguda da realidade da crise climática, o estado atual de pandemia parece terrivelmente familiar – trata-se apenas uma versão mais imediata do pavor sobre as consequências das mudanças climáticas, que estamos sentindo há anos.

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