N. T.: Nouriel Roubini não se apresenta como um pensador dialético, mas ele é capaz de apreender muitas contradições que estão por trás dos impasses da civilização. Daí que os seus textos sejam muito interessantes. Entretanto, como bom tecnocrata, pensa em termos de problemas e soluções sem jamais questionar o próprio sistema econômico do capital. Pois, como bem sabe, é somente assim, ou seja, mantendo uma perspectiva de crítica da economia política, que é possível compreender que a acumulação de capital, atualmente, cria barreira para si mesma, as quais não consegue superar. A intervenção do Estado em prol e em complemento da lógica do sistema econômico também se mostra insuficiente para criar as condições para uma acumulação de capital desenvolta. A crise estrutural parece, assim, não ter limites.
Entrevista publicada em Project Syndicate (PS) – 15/11/2022
Esta semana, PS conversa com Nouriel Roubini, professor emérito de economia da Stern School of Business da Universidade de Nova York, economista-chefe da Atlas Capital Team, CEO da Roubini Macro Associates, cofundador da TheBoomBust.com e autor de Mega threats: Ten dangerous trends that imperil our future and how to survive them.
PS: Em seu último comentário neste portal, você reafirmou a sua expectativa de que os esforços das autoridades monetárias para conter a inflação “causarão um colapso econômico e financeiro” e que “independentemente de suas mensagens duras”, os bancos centrais “sentirão imensas pressões” para reverter o aperto monetário” assim que uma ameaça de crash se materialize. Qual seria o impacto de tal reversão? Os formuladores de política monetária nos Estados Unidos e na Europa têm eventualmente boas opções – ou menos ruins?
NR: Os bancos centrais estão tanto numa armadilha de estagflação quanto numa armadilha da dívida. Em meio a choques negativos de oferta agregada. que reduzem o crescimento e aumentam a inflação, eles estão condenados se atuam para contrariar a tendência e condenados se não o fizerem. Se eles aumentarem as taxas de juros o suficiente para reduzir a inflação para 2%, causarão uma severa aterrissagem econômica. E se não o fizerem – tentando, em vez disso, proteger o crescimento e os empregos – ficarão cada vez mais para trás da evolução das expectativas. Eis que assim eles desancoram as expectativas de inflação e tornam possível a ocorrência de uma espiral de preços e salários.
As proporções de endividamento em relação ao PIB muito elevadas (tanto dos agentes privados como dos públicos) complicam ainda mais o dilema. Aumentar as taxas de juros o suficiente para esmagar a inflação causará não apenas um colapso econômico, mas também um colapso financeiro. Pois, os devedores privados e públicos estão altamente alavancados e, por isso, estão enfrentando também grandes dificuldades. A turbulência financeira resultante intensifica a recessão, cria um ciclo vicioso de aprofundamento da recessão e crescente dor financeira, assim como endividamento excessivo.
Nessas circunstâncias, os bancos centrais piscarão nervosamente. Eles fracassarão na luta contra a inflação se mantiverem um esforço para evitar um colapso econômico e financeiro. Em consequência, produzirão uma taxa de inflação permanente mais alta; ao mesmo tempo, adiarão apenas a chegada da estagflação e das crises da dívida. Em outras palavras, os bancos centrais dos Estados Unidos, Europa e outras economias avançadas têm apenas opções ruins.
PS: Você escreveu em seu novo livro, Mega threats: Ten dangerous trends that imperil our future and how to survive them que estamos caminhando para a “mãe de todas as crises do endividamento”, pois nenhuma das soluções potenciais se afigura sem custos. Devemos, pois, “escolher o nosso próprio veneno”. Mas será que mais nocivo neste caso significa mais eficaz? Para as economias em desenvolvimento, em particular, há propostas inovadoras: por exemplo, trocar dívida por ações climáticas é uma política que reconhece a natureza interconectada das mega-ameaças atuais?
NR: As soluções para o endividamento excessivo nunca são fáceis ou sem custos. Sempre há uma lógica de perdas e ganhos. Por exemplo, monetizar a dívida para cortar o seu valor real com inflação inesperada funciona apenas para países que tomam empréstimos em suas próprias moedas. Contar com o imposto inflacionário para liquidar parte das dívidas causa em geral um aumento persistente na taxa de inflação.
Para a dívida denominada em moeda estrangeira, a única opção viável é o default e a reestruturação quando a dívida se tornar insustentável – processos que podem ser confusos e demorados, e que podem custar ao país o acesso aos mercados de capitais. Impor impostos sobre riqueza ou capital para reduzir níveis insustentáveis de dívida não é apenas politicamente difícil; também pode minar o investimento, a acumulação de capital e o crescimento.
Os swaps que viabilizam a troca de dívida por investimento de capital ou de dívida por ações climáticas convertem tais créditos dos seus possuidores em créditos de capital ou em créditos para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Mas estes não são grandes o suficiente em escopo para resolver problemas graves de dívida.
Ademais, os devedores podem sentir que converter dívida em ações ligadas às reivindicações de redução de emissões corrói a soberania nacional já que transferem efetivamente para entidades estrangeiras a propriedade dos recursos naturais, assim como os ativos de um país. As trocas de dívida por clima não podem nem resolver o endividamento excessivo nem contribuir muito para o combate às mudanças climáticas.
PS: Exemplos de “choques de oferta negativos em câmera lenta” que caracterizam a “grande estagflação” são as “políticas fiscais para aumentar os salários e o poder dos trabalhadores”. Uma das dez “mega-ameaças” que você destaca em seu livro é o aumento da desigualdade de renda e riqueza, que está alimentando uma reação contra a democracia. Que políticas ou intervenções ajudariam a combater os efeitos distributivos da crise atual, sem exacerbá-la inadvertidamente?
NR: A desigualdade de renda e riqueza tem aumentado nos países por muitas razões. Entre os fatores notáveis estão o comércio e a globalização, a inovação tecnológica (que é capital-intensiva, pois privilegia a qualificação e poupa trabalho), o poder político auto-reforçado das elites econômicas e financeiras, a concentração do poder oligopolista no setor corporativo e a declínio do poder dos trabalhadores e dos sindicatos. Juntos, esses fatores desencadearam uma reação contra a democracia liberal.
Políticas fiscais que apoiam trabalhadores, sindicatos, subalternos e desempregados e grupos desfavorecidos (como mulheres e minorias raciais) podem ajudar a reduzir a desigualdade, mas também levam a uma inflação mais alta ao aumentar a inflação salarial. E dado o poder de precificação desproporcional das empresas (em relação à mão de obra), os preços sobem mais do que os salários, como ocorreu em 2021 e 2022. O resultado é uma queda nos salários reais, o que agrava a desigualdade.
Historicamente, as políticas fiscais – incluindo a tributação progressiva – tiveram apenas um impacto modesto sobre a desigualdade. E o aumento da inteligência artificial, robótica e automação significa que o trabalho deve se tornar ainda mais fraco ao longo do tempo, à medida que os humanos perdem muitos empregos – rotineiros, cognitivos e cada vez mais criativos – para software e robôs.
PS: Em MegaThreats, você indica que quem lidera em inteligência artificial (IA) pode se tornar a principal potência global; sugere, também, que a China vai chegar lá primeiro. Porém, a recente repressão do governo às empresas de tecnologia levantou temores de que a China esteja esmagando os “animal spirits” do setor privado. A recente consolidação de poder de Xi implica que o compromisso do Partido Comunista Chinês com o controle central só se fortalecerá. Como você vê as ambições da China no setor de alta tecnologia – assim como, as suas perspectivas econômicas mais amplas – sob Xi Jinping?
NR: Os EUA e a China estão em uma corrida não apenas para se tornar a principal potência geopolítica e militar deste século, mas também para dominar as indústrias do futuro, incluindo IA, aprendizado de máquina, robótica, automação, internet das coisas, “big data”, 5G (amanhã, 6G) e computação quântica. Ambos estão subsidiando essas tecnologias, mas a China adota uma abordagem de comando e controle mais pesada.
É verdade que a recente repressão da China ao setor privado, incluindo empresas de tecnologia, não é um bom presságio para a capacidade do país de desenvolver tecnologias, assim como aplicações verdadeiramente inovadoras. Mas a pura força do contínuo investimento de cima para baixo da China em setores de ponta – que o governo continua a cobrir com enormes incentivos financeiros e subsídios – ainda pode permitir que o país domine as tecnologias subjacentes às indústrias do futuro.
A abordagem mais sutil da América pode ter sucesso a longo prazo. Mas o modelo de comando e controle da China provou já que afeta dinamicamente a vantagem comparativa da economia. É por isso que os EUA precisam das políticas industriais corretas. Uma abordagem puramente laissez-faire não será suficiente para permitir que os EUA dominem em tecnologias estratégicas.
Dito isso, é preciso acrescentar que o modelo capitalista de estado da China parece estar perdendo força e causando, em consequência, uma forte redução no crescimento potencial. E, dada a abordagem estatista de Xi, é provável que essa desaceleração do crescimento continue e se aprofunde.
PS: Outra ameaça que você identifica é a inovação financeira desestabilizadora, que poderá levar à degradação das moedas fiduciárias. Cada capítulo do seu livro inclui soluções possíveis. Que medidas os formuladores de políticas devem tomar para mitigar essa ameaça?
NR: Historicamente, a inovação financeira sem regulamentação e supervisão adequada levou à inflação de ativos, ou seja, ela alimenta bolhas que eventualmente estouram. Hoje, também estamos enfrentando inflação de bens e serviços, devido a choques negativos de oferta agregada e aos efeitos de políticas fiscais e monetárias que foram muito frouxas por muito tempo. Com inflação alta, a degradação das moedas fiduciárias é um risco crescente.
Mas a solução não são as criptomoedas, que não são moedas nem ativos; na verdade, as criptomoedas acabaram sendo a mãe de todos os golpes. Ora, as suas bolhas agora estouraram. Em vez disso, a solução é a supervisão e regulamentação adequadas do sistema financeiro, incluindo medidas para conter inovações tóxicas tais como as criptomoedas. Elas não têm utilidade ou trazem benefícios, mas alimentam a instabilidade financeira.
Além disso, o risco moral de políticas monetárias e de crédito frouxas que alimentam bolhas e aprofundam as armadilhas da dívida precisa ser abordado. Mas não há solução fácil para as armadilhas da dívida, que são impulsionadas por profundos preconceitos políticos em relação ao excesso de alavancagem privada e pública.
PS: Você previu a crise financeira global de 2008 e, por isso, ganhou o apelido de Dr. Apocalipse (Dr. Doom, em inglês). Em seu livro (Mega Threats), você faz o que é indiscutivelmente uma previsão ainda mais sombria: que um futuro “distópico” de “caos, crises, instabilidade e conflito doméstico e global” é mais provável do que um “utópico” de formulação de políticas sólidas e cooperação internacional. Economistas, investidores e formuladores de políticas estão mais dispostos a levar esses avisos a sério hoje em dia, ou você tem a sensação de que aqueles com o poder de fazer a diferença ainda têm a cabeça enterrada na areia?
NR: Precisamos distinguir entre declarações normativas, sobre como o mundo deveria ser no plano ideal ou desejável, e declarações positivas, sobre como o mundo provavelmente será. Infelizmente, não vejo nenhuma razão para pensar que avançamos significativamente além de nossa estratégia preferida de chutar a lata no caminho – principalmente por causa do grande número de barreiras à implementação das políticas corretas.
Considere o aquecimento global. Metade dos EUA – e o Partido Republicano em particular – nega a realidade das mudanças climáticas induzidas pelo homem. Por isso, bloqueia ativamente as políticas destinadas a enfrentá-las sempre que ganha o poder. Há também um conflito intergeracional: as gerações mais velhas não estão dispostas a arcar com os custos da ação para evitar um futuro que nunca verão, enquanto as gerações mais jovens são menores e muitas vezes nem votam.
No nível internacional, temos um problema de carona (free-rider): mesmo que um país faça todos os sacrifícios necessários para atingir emissões líquidas zero, ele só se beneficiará se o resto do mundo fizer o mesmo.
Ora, as economias avançadas, que criaram a maior parte do estoque de gases de efeito estufa atmosféricos, não estão dispostas a desembolsar os trilhões de dólares em subsídios que as economias em desenvolvimento precisam para atingir emissões líquidas zero e se adaptar a um clima mais quente.
Enquanto isso, as economias emergentes que produzem a maior parte do fluxo de novas emissões hoje – como China e Índia – podem resistir a cortar suas emissões até ficarem mais ricas, talvez em uma ou duas décadas. Finalmente, a rivalidade geopolítica entre os EUA e a China está dificultando severamente os esforços para promover os bens públicos globais.
O mesmo vale para as soluções para muitas outras mega-ameaças. É por isso que o futuro distópico é mais provável do que o utópico.
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