O que é cibercomunismo?

Por CIBCOM na Jacobin – Tradução: Maurício Ayer, 04/11/2022

I

No calor da revolução digital das últimas quatro décadas, as tecnologias da informação e da computação permearam nossas sociedades a ponto de se tornarem praticamente onipresentes, conectando bilhões de pessoas entre si. O movimento socialista não ia deixar por menos e, nos últimos anos, surgiram vários grupos sob o guarda-chuva do que poderia ser chamado de cibercomunismo.

Apesar do que possa parecer, não se trata apenas de comunistas usando computadores. Neste artigo pretendemos argumentar que o comunismo cibernético é descrito como tal porque consideramos que a cibernética, como ciência da informação e do controle, complementa a crítica da economia política marxista de tal forma que nos permite vislumbrar o substrato informacional oculto por trás realidades burguesas e compará-las com instituições alternativas em termos de eficiência e adaptabilidade.

Para compreender as características essenciais desse novo paradigma teórico, convém fazer uma revisão histórica dos conceitos, autores e correntes que o nutrem. Esta será a intenção última deste escrito: traçar uma espécie de “árvore genealógica” do cibercomunismo.

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Lacan, crítico de Marx

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

Crítico de Marx ou apenas um mal leitor de O capital já que ele o lê sob o visor de Louis Althusser? Eis uma dúvida que o texto em sequência não resolve. Mas que fica aí para uma discussão posterior.

Como sabem os psicanalistas, mas não provavelmente os críticos da economia política, o objeto “a” aparece atualmente como um conceito fulcral da psicanálise contemporânea. Mas o que é então esse objeto, noção de lavra própria, com base no qual Lacan se lança numa crítica sutil ao autor de O capital?

Lacan partiu dos descobrimentos de Sigmund Freud de quem se dizia um seguidor fiel – o que, aliás, se pode duvidar. Ora, todos aqueles que se depararam pela primeira vez – senão pela segunda, terceira etc. vezes – perceberam que se trata de um conceito enigmático e de difícil compreensão. Nessa nota pretende-se discutir esse enigma recorrendo a certas categorias lógicas, as quais aqui advirão no momento apropriado. Por enquanto, procurar-se-á simplesmente descrevê-lo como categoria da psicanálise.

No textos dessa disciplina, esclarece-se em primeiro lugar que o “a” – um “a” minúsculo – adicionado ao termo “objeto” vem de “autre” em francês, termo que corresponde ao termo “outro” em português. Como o desejo visa sempre algo, forma com esse outro uma relação de mútua determinação. Então, esse “objeto outro” é apresentado com o objeto causa do desejo. Enquanto tal, enquanto objeto de desejo, ele assinala a produção de gozo, de satisfação. Sem que esse objeto possa ser aqui bem identificado, dá-se um primeiro passo na sua compreensão.[2] 

Quando a criança passa, no curso de seu processo de crescimento, a identificar aqueles que a cercam (mãe, pai, irmãos etc.) como outras pessoas, ela toma conhecimento de si mesma, ao mesmo tempo, como uma pessoa. Ora, essa distinção apenas se consolida quando a criança aprende a linguagem dos pais e se torna capaz de nomeação. Assim, ela passa a distinguir, no seio da família, a duplicidade “eu/outros”. Nessa diferenciação surgem, necessariamente, desejos na criança que se dirigem para os familiares, vistos como outros. Ademais, os desejos passam a se dirigir não apenas para as outras pessoas, mas também para as coisas outras, tudo o que eventualmente caia no interesse e no alcance do “sujeito”.

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O que está errado com o capitalismo?

Nancy Fraser[1]

Entrevista concedida por Nancy Fraser a Lara Monticeli, na qual defende a tese de que “precisamos de uma aliança radical, contra-hegemônica e anticapitalista”. Trata-se de um sumário de seu livro Capitalismo em debate – uma conversa em teoria crítica.”, produzido em coautoria com Rahel Jaeggi (Boitempo, 2020).

Segunda Parte: continuação de O que é o capitalismo?

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LM: No livro em discussão, você descreve vários tipos de crítica dirigidas ao capitalismo: a crítica funcionalista, a crítica moral e a crítica ética. Você adiciona um quarto tipo, que você chama de crítica pela liberdade…

NF: Certo. O capítulo sobre as “críticas ao capitalismo” baseia-se em grande parte no trabalho de minha coautora, Rahel Jaeggi. Nos capítulos anteriores do livro (ou seja, “conceituando o capitalismo” e “historicizando o capitalismo”), desenvolvi aquilo que já foi delineado aqui nesta entrevista [na parte primeira] sobre o que é o capitalismo e como devemos entender sua história. Mas a próxima questão consiste nas perguntas: o que há de errado (se há algo errado nele) com o capitalismo? Como devemos criticá-lo?

Bem, pelo que eu já disse, você pode ver que um defeito central do capitalismo é sua tendência à crise – a sua tendência a canibalizar seus próprios pressupostos e, assim, a gerar periodicamente miséria galopante e em escala maciça. Portanto, a “crítica” que visa revelar as contradições ou tendências de crise embutidas no sistema, é importante. A sua força consiste em mostrar que a miséria decorrente das crises não é acidental, mas o resultado necessário da dinâmica constitutiva do sistema. Nos últimos anos, no entanto, esse tipo de crítica tem sido censurado. Tem sido rejeitado, junto com o marxismo, sob a acusação de que seria “funcionalista”, isto é,  tratar-se-ia ela de uma crítica econômico-reducionista e determinista.

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O que é capitalismo?

Nancy Fraser[1]

Entrevista concedida por Nancy Fraser a Lara Monticeli, na qual defende a tese de que “precisamos de uma aliança radical, contra-hegemônica e anticapitalista”. Trata-se de um sumário de seu livro Capitalismo em debate – uma conversa em teoria crítica, produzido em coautoria com Rahel Jaeggi (Boitempo, 2020).

Primeira Parte.

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Lara Monticelli (LM): Como fica claro no título, o principal protagonista de seu livro é o capitalismo. E seu objetivo é retornar ao que você chama de teoria social de “grande escala”, “de tipo amplo”, uma teoria crítica do capitalismo que visa explicitamente integrar a crítica marxista com as críticas ecológicas, feministas e pós-coloniais. Para começar, gostaria de lhe perguntar: quando você começou a vislumbrar esse novo projeto intelectual? É uma continuação natural ou uma ligeira mudança de foco em relação à sua produção intelectual anterior?

Nancy Fraser (NF): Você está certa ao dizer que o protagonista de nosso livro é o capitalismo e que seu objetivo é reviver a teorização social de “grande escala” ou englobante.  Na verdade, esse não é um interesse novo para mim. Minha visão de mundo foi formada na Nova Esquerda, muito tempo atrás; quando entrei na academia, trouxe comigo a firme convicção de que o capitalismo era a categoria principal ou o conceito de enquadramento para toda teorização social séria.

Mas, à medida que as décadas passavam e o etos da Nova Esquerda se desvanecia, comecei a perceber que nem todos compartilhavam dessa suposição. Em vez disso, a posição padrão, pelo menos nos Estados Unidos, era (e ainda é) liberalismo de um tipo ou de outro, seja igualitário de esquerda ou individualista libertário. Quando essa compreensão ocorreu, vi que minha experiência formativa na Nova Esquerda havia sido uma aberração, assim como os anos 1930 o foram para uma geração anterior de radicais norte-americanos.

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Se a gente quiser, o capitalismo acaba

Autor: Aaron Benanav[1]

Como seria uma economia socialista? As respostas a essa questão variam, mas a maioria delas envolve a noção de planejamento. Uma economia capitalista é organizada por meio da interação entre preços e mercado. Uma economia socialista, por contraste, seria “conscientemente regulada (…) de acordo com um plano estabelecido”, para tomar emprestada uma frase de Marx. Porém, como tal plano seria feito e implementado? Essa tem sido uma questão de debate acirrado entre socialistas por mais de um século.

Um dos campos do debate colocou particular ênfase nos computadores. Esses “socialistas digitais” enxergam os computadores como a chave para administrar uma economia planejada. Seu foco está nos algoritmos: eles querem projetar softwares que possam receber informações sobre as preferências do consumidor e as capacidades de produção industrial – como uma peneira gigantesca alimentando um moedor de dados – e determinar as alocações ótimas dos recursos.

Ao longo dos anos, ocorreram alguns experimentos seguindo essas linhas. Nos anos 1960, o matemático soviético Victor Glushkov propôs uma rede nacional de computadores para ajudar os planejadores a alocar os recursos. Com o auxílio do ciberneticista inglês Stafford Beer, a administração de Salvador Allende no Chile tentou algo similar nos anos 1970, chamado de Cybersyn. Nenhum dos projetos chegou muito longe. A ideia de Glushkov encontrou resistência das lideranças soviéticas, enquanto o golpe de Pinochet eliminou o Cybersyn antes dele estar completamente implementado. De qualquer modo, o sonho continua vivo.

Hoje obviamente o socialismo digital pode fazer muito mais. A internet possibilitaria canalizar grandes quantidades de informação de todas as partes do mundo para sistemas de planejamento, quase instantaneamente. Saltos gigantescos na capacidade de computação tornariam possível processar todos esses dados rapidamente. Enquanto isso, o aprendizado de máquina e outras formas de inteligência artificial poderiam vasculhá-los, para descobrir padrões emergentes e ajustar a alocação de recursos apropriadamente. Em A República Popular do Walmart (The People’s  Republic of Walmart), Leigh Phillips e Michal Rozworski argumentam que grandes empresas como Walmart e Amazon já usam essas ferramentas digitais para planejamento interno – e que agora elas precisam apenas ser adaptadas para uso socialista.

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A revolução cibernética socialista de Allende

Publicado Jacobin em 04/09/2020. É aqui republicado dada a importância que esse blog dá à questão do socialismo democrático possível, dada a falência generalizada do “socialismo real”.

Por Eden Medina – Tradução Everton Lourenço

Embora nos digam frequentemente que o passado guarda lições sobre como abordar o presente, raramente olhamos para tecnologias mais antigas em busca de inspiração. Ainda mais raro é sugerir que experiências históricas de nações menos industrializadas possam ter algo a nos ensinar sobre os problemas tecnológicos de hoje – e menos ainda que um projeto socialista de décadas atrás poderia oferecer maneiras de pensar sobre tecnologias promovidas por capitalistas do Vale do Silício.

No entanto, um sistema de computação construído no Chile socialista na década de 1970 – o Projeto Synco ou “Cybersyn”, em inglês – oferece inspiração sobre como devemos pensar sobre tecnologia e dados hoje.

Em pdf:A revolução cibernética socialista de Allende

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Morozov: Socialismo digital

A Europa vai voltar à socialdemocracia a partir terceira década do século XXI? Recentemente foi anunciado que o bloco de 27 países que formam a União Europeia aprovou um pacote de 4,7 trilhões de reais com o objetivo de torná-la líder da economia verde e da economia digital.

Basta gastar mais dinheiro nessa direção? Ora, como argumenta Evgeny Morozov no artigo que aqui se apresenta, as grandes conquistas socialistas no século XX ocorreram no campo da inovação institucional. E é nesse campo, segundo ele, que a Europa deveria realmente inovar.

Sugere, por isso, que a Europa pode reviver essa tradição. Sugere, ademais, que ela precisa ir bem mais longe do que simplesmente criar as condições de investimento por parte do setor privado. Ela tem, segundo ele, de se empenhar em construir infraestruturas tecnológicas que funcionem como comuns – e não como fontes de acumulação de capital para a iniciativa privada.

Ainda que a proposta de reinventar a socialdemocracia pareça ingênua ou mesmo utópica no mundo atual – mas especialmente no contexto da América Latina em que ela nunca existiu de fato – a mensagem central afigura-se como bem correta. Sem assumir o controle das plataformas de informação, a possibilidade de controlar o sistema econômico e, assim, as condições de vida da população, não se realizará.

Ainda que Morozov tenha ainda esperança na socialdemocracia europeia, aqui se sustenta uma tese mais radical. Apenas superando o capitalismo por meio do socialismo democrático será possível alcançar os objetivos que ele corretamente põe como centrais .

O texto está aqui: Morozov – Socialismo digital

Uma economia de guerra? Para quê?

Como se sabe, nos últimos anos, tem dominado no Brasil duas ideologias econômicas: os mercados são mais eficientes do que as empresas estatais e, portanto, as que ainda existem devem ser privatizadas o mais rápido possível; a austeridade é necessária para que o setor privado possa investir e, assim, garantir o crescimento econômico. Como se pode ver pelo desempenho da economia capitalista no Brasil nos últimos anos, a implementação de políticas com tais objetivos fracassaram miseravelmente.

Mas que políticas econômicas serão necessárias após o término da crise econômica potencializada agora pela pandemia do coronavírus? As mesmas de antes? Será possível continuar no rumo do fracasso por mais dez anos? Ora, um post de Michael Roberts lembra o que aconteceu nos Estados Unidos durante os anos 1930 e durante a II Guerra Mundial.

O que a história da Grande Depressão, assim como do período da II Guerra Mundial, mostrou é que, se o capitalismo está no fundo de uma longa depressão, duas coisas precisam acontecer: uma ampla destruição de capital acumulado no passado para recuperar a taxa de lucro e uma ação planejada do governo para fazer a economia deslanchar. Ao invés de “livre mercado”, o que será necessário implementar vem a ser uma “economia planejada”.

Em consequência – é bem irônico -, parece justo perguntar: será que os países desenvolvidos vão tentar agora imitar a China? Ou continuarão no rumo da “estagnação secular”?

Mas, pode-se acrescentar, uma economia planejada não será suficiente se ela permanecer simplesmente capitalista. Pois, será preciso enfrentar os imperativos ecológicos e a necessidade premente de forjar um modelo de desenvolvimento inclusivo e não predatório da natureza humana e não humana. Em caso contrário, o futuro estará comprometido com a continuação do processo atual que leva países como o Brasil no rumo da barbárie.

Eis como termina o seu artigo: “as principais economias desenvolvidas, assim como as chamadas economias emergentes, terão enorme dificuldade para sair da profunda depressão, a menos que a lei do mercado e do valor seja substituída pela propriedade pública, pelo investimento e pelo planejamento estatal. Só assim será possível utilizar as habilidades das pessoas e os recursos disponíveis em prol da volta das “condições normais”. Este será necessariamente o resultado imposto pela atual pandemia.”

O texto se encontra aqui: Roberts – Uma economia de guerra?

Planejamento na era da Internet – Parte II

Este blog tem publicado diversos textos que tratam do planejamento econômico num sistema econômico regido democraticamente e que visa o bem-estar não só da grande maioria, mas de todos. Ora, frente as perspectivas de colapso da civilização humana sob o capitalismo, isto está se tornando cada vez mais desejável.

Nesses textos, argumenta-se em geral que, também, tem se tornado cada vez mais possível construir sistemas de planejamento que são mais eficientes e mais eficazes do que as “economias de mercado”, proporcionando ademais uma verdadeira e ampla liberdade.

Um sistema que promove a liberdade de uns em detrimento da liberdade da maioria, que opera cegamente, que funciona segundo leis que parecem naturais, que concentra enormemente a riqueza produzida, não pode ser considerado como um sistema bom ou ótimo, ou ainda mesmo como sistema “menos ruim”. Aquilo que é bom numa fase de desenvolvimento da sociedade pode se tornar péssimo em outra.

Assim como não se pode falar num fim da história, também não se pode colocar um ponto final na construção das formas de organização da sociedade. Ora, as técnicas de planejamento estão em evolução na própria economia capitalista. Por exemplo, a produção sob demanda já é uma realidade e ela é superior à produção para o mercado já que nesta última apenas se antecipa a demanda.

Não se trata de elogiar – ao contrário, trata-se de criticar – as economias de comando centralizado que eram dirigidas por burocratas do partido-Estado. O que hoje se apresenta como um imperativo ético é desenvolver uma teoria do planejamento democrático que aproveita as novas tecnologias da informática e da comunicação.

E essa teoria deve pensar não apenas no planejamento com base na produção capitalista, mas deve se estender para um sistema baseado em comuns tal como propõe Dardot e Laval no livro Comum – Ensaio sobre a revolução no século XXI.

A segunda parte do texto que se começou a publicar na semana passada encontra-se aqui: Planejamento na Era da Internet – Parte II

O planejamento na era da Internet – Parte I

Este blog tem publicado textos que versam sobre o planejamento econômico que seria necessário para organizar uma economia de modo socialista e democrático. Ao contrário do que reza o senso comum atualmente dominado pelos preconceitos neoliberais, é possível argumentar que ele seria muito mais eficiente e eficaz do que a economia de mercado.

Com esse objetivo, é preciso ter em mente, sim, o que ocorreu no passado nas economias de comando centralizado, as quais eram dirigidas por burocratas do partido-Estado. Mas também é necessário investigar as formas de planejamento agora tornadas possíveis pelas novas tecnologias da informática e da comunicação.

No texto que agora se publica – em duas partes – Alan Freeman, economista da Universidade de Manitoba, no Canada, usa todo o seu conhecimento no planejamento da Grande Londres para mostrar porque o planejamento democrático é possível e mesmo necessário quando se tem em mira obter bons resultados econômicos.

Ele sugere que é preciso recomeçar a discutir a teoria do planejamento de forma adequada. Para tanto, afirma que pode fornecer algumas indicações sobre as características gerais que um sistema de planejamento precisa ter para que os objetivos econômicos sejam alcançados sem sacrificar – ao contrário, favorecendo – o processo da democracia.

A primeira parte do seu texto se encontra aqui: Planejamento na Era da Internet – Parte I