Do neoliberalismo “keynesiano”

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

John M. Keynes & Friedrich Hayek

Trata-se de um oxímoro? Bem, sugere-se aqui que esse termo formado de opostos, ainda que inédito, caracteriza melhor a fase do capitalismo após a crise de 2007-08.[2] Mas essa combinação díspar, uma integração inesperada, não se segue tranquilamente. Talvez se devesse caracterizar esse novo momento do neoliberalismo, como ficará claro mais à frente, como “pseudo-keynesiano” – e não simplesmente como keynesiano, mesmo entre aspas. Para começar a esclarecer essa questão aqui posta, é preciso começar apresentando um rápido registro histórico.

Como se sabe, o próprio capitalismo no pós-II Guerra Mundial passou por duas fases bem conhecidas: a primeira, que durou de 1945 até o fim da década dos anos 1970 ou pouco depois, pode ser chamada propriamente de keynesiana; a segunda, que se iniciou claramente a partir de 1982 e prosperou até a grande crise do começo do século XXI, é normalmente chamada de neoliberal. Ambas, cada uma em seu próprio momento histórico, visaram garantir a sobrevivência e mesmo a maior prosperidade possível do capitalismo. Como essa duas formas sucessivas de governança acabaram se esgotando, uma outra, não inteiramente nova, teve de surgir. Para mostrar como essas duas formas estão agora se combinando, é preciso apresentar uma sequência de distinções.

De acordo com a formulação precisa de Dardot e Laval[3], o neoliberalismo consiste em uma racionalidade baseada nas próprias normas que regem a concorrência dos capitais. Essa razão normativa afirma que a ação humana deve ser conduzida pela maximização de resultados em todas as esferas da vida; para tanto, os seres humanos devem se comportar como as empresas mercantis, devem se encarar como capitais humanos. Eis que visa conformar de modo amplo – senão total – os comportamentos dos atores sociais em geral, governantes e governados, capitalistas e trabalhadores, sejam estes últimos assalariados ou por conta própria.

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Economia de Biden: reversão em relação à 1979

Autor: Cédric Durand[*]

Em 1979, quando Jimmy Carter nomeou Paul Volcker como presidente do Federal Reserve, o mandato era claro. Combata a inflação, custe o que custar. Foi isso o que ele fez. No final de 1980, as taxas de juros atingiram um recorde de 20%; a inflação caiu de um pico de 11,6% para 3,7% em 1983. Para a classe capitalista, isso se afigurou como uma bonança econômica e política. Os aumentos das taxas desencadearam uma recessão severa, precipitando uma onda de reestruturação e demissões que ajudaram a esmagar os sindicatos, a desmoralizar a esquerda e a disciplinar o sul global. O resultado foi uma “vingança dos rentistas” da qual surgiu um aumento bem documentado das desigualdades.

O “golpe de 1979” de Volcker, – tal como foi chamado por Gérard Duménil e Dominique Lévy em Capital Resurgent (2004) (Capital ressurgente), ocorreu em um período em que o dinamismo sistêmico estava em declínio no mundo capitalista avançado. Este fora causado pela intensificação da competição a partir das recuperações bem-sucedidas de japoneses e alemães. De qualquer modo, a situação foi enfrentada pela crescente militância trabalhista e pelos movimentos sociais de massa, o que produziu uma crise geral de governabilidade. Enquanto isso, as forças radicais nos países ex-coloniais clamavam por uma Nova Ordem Econômica Internacional, baseada na soberania econômica e na regulamentação das multinacionais.

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Michael Roberts e a crítica do keynesianismo (II)

A dúvida de um leitor do primeiro artigo com este título, mostrou a necessidade de explicar melhor um ponto central da argumentação aí contida, a qual buscou indicar uma falha capital da macroeconomia keynesiana. Pois, ela se reflete na própria crítica de Michael Roberts. Pode se afirmar mesmo que esse blogueiro famoso é induzido a fazer afirmações imprecisas porque ele próprio não foi capaz de descobrir essa falha originária. Tal como anteriormente, é preciso começar citando por extenso o seu argumento contra o pós-keynesianismo, que se dirige a um texto de Alex Willians.

O que diz Roberts em sua crítica?

Alex nos diz que um princípio fundamental do pós-keynesianismo (PK) é analisar as expectativas: “nosso próximo princípio é que tudo é expectativa”.  “As expectativas informam as ações dos agentes e essas ações, por sua vez, criam realidade. Talvez o modelo mais simples do ciclo causal keynesiano seja dizer que a demanda esperada impulsiona o investimento, o investimento impulsiona o emprego, o emprego impulsiona os salários, os salários impulsionam o consumo, o consumo impulsiona a demanda e a demanda valida o investimento. A demanda esperada impulsiona os investimentos porque as empresas só investem em capacidade e na contratação de mais trabalhadores quando acham que mais pessoas vão querer comprar seu produto no futuro, mais do que têm feito no momento presente. Se esperassem a mesma demanda, ou menos, não haveria necessidade de investir. Eles poderiam continuar a usar o mesmo equipamento”.

Ora, agora foi dito o que importa. O investimento sob o capitalismo não é movido pelo lucro ou pela lucratividade, mas finalmente pelas “expectativas”. Não é movido nem mesmo pelo lucro futuro, mas sim pela “demanda esperada”. Isso impulsiona o investimento que, por sua vez, gera empregos e salários.

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Michael Roberts e a crítica do keynesianismo (I)

É sabido que Michael Roberts, o blogueiro marxista mais conhecido mundialmente, trava uma luta constantemente para diferenciar, mostrando a sua superioridade, o que ele chama de teoria econômica marxista das outras teorias econômicas, em particular, da que embasa o keynesianismo e o pós-keynesianismo.

Em 17 de junho de 2021, em publicou mais um texto nesse sentido: Os lucros dão o tom (ou seja, Profits call the tune). Como os seus argumentos apresentam alguns problemas, eles também podem ser criticados para que se tornem mais adequados. De início, reproduz-se o que ele disse de importante nessa postagem em seu blog The next recession.

A CRÍTICA DE ROBERTS (em suas palavras)

Argumentei em muitos posts que “os lucros dão o tom” no ritmo da acumulação capitalista. O que quero dizer é que as mudanças nos lucros (e na lucratividade) ao longo do tempo levarão a mudanças nos investimentos das empresas – e não vice-versa.

Os lucros são fundamentais para o investimento capitalista, não a “demanda efetiva” como argumentam os keynesianos, ou as mudanças nas taxas de juros ou na oferta de moeda, como argumentam os monetaristas e a escola austríaca. Discordo fortemente da visão pós-keynesiana de que os lucros são um “resíduo” gerado pelo investimento. Discordo do que disse o keynesiano-marxista Michal Kalecki quando afirmou que “os capitalistas ganham o que investem, enquanto os trabalhadores gastam o que ganham”.

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Discursos da relação de capital

Eleutério F S Prado

Um artigo publicado como “working paper” pelo FMI causou certo espanto em alguns economistas de esquerda no Brasil. O seu título: Crenças acocoradas, vieses ocultos: elevação e queda das narrativas de crescimento (Crouching beliefs, hidden biases: rise and fall os growth narratives). Os seus autores, Reda Cherif, Marc Engler, Fuad Hasanov, mesmo sendo pouco conhecidos, conseguiram causar um pequeno tremor no campo da teoria econômica. Todos os economistas que frequentam o cercado do mainstream parecem tratar o artigo de modo respeitoso. Afinal, ele tem o endosso da principal organização controladora do dinheiro em âmbito mundial.  

A razão pela qual o conteúdo desse artigo ecoou entre os economistas de esquerda é que parece expor a teoria econômica como ideologia.  Ademais, parece indicar também que há um declínio da política de austeridade a qual combatem com veemência. Nessa recepção do “paper”, há, porém, um suposto implícito. Se até mesmo os economistas do centro do sistema abandonaram esse discurso, os da periferia, menos competentes segundo o preconceito, deveriam fazer o mesmo. Os funcionários da governança tecnocrática do capitalismo no Brasil precisam, portanto – e esse é argumento –, alinharem-se aos que estão na vanguarda, que operam no centro do sistema.

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Fim da crise pandêmica: um retorno a Keynes?

Michael Roberts – The next recession blog

– Publicado em 28/09/2020

O último relatório da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, órgão das Nações Unidas (UNCTAD), a agência de pesquisa econômica que visa ajudar os “países em desenvolvimento”, é leitura obrigatória. Não só está repleto de dados e estatísticas sobre as tendências e os desenvolvimentos na produção, no comércio e no investimento globais, mas esta edição de 2020 assume uma posição radical sobre como tirar a economia mundial do afundamento econômico que o FMI chama de “crise do fechamento” da economia.

Eis o que a UNCTAD diz eloquentemente: “A economia mundial está passando por uma recessão profunda em meio a uma pandemia ainda não controlada. Agora é a hora de elaborar um plano de recuperação global, que possa levar, com credibilidade, até mesmo os países mais vulneráveis, ​​a uma posição mais forte do que antes. A situação antes prevalecente é uma meta que não vale o nome de recuperação. A tarefa é urgente, pois neste momento a história está se repetindo, desta vez com uma mistura perturbadora de tragédia e farsa.”

Para ler a resenha crítica feita por Michael Roberts do documento da UNCTAD, clique aqui: Fim da crise pandêmica – um retorno à Keynes

Do keynesianismo ainda

Publica-se nesse post a tradução para o português de uma terceira resenha do livro In the long run we are dead (No longo prazo estaremos todos mortos) de Geoff Mann que trata do keynesianismo e de sua importância histórica como posição diante do evolver inquieto do capitalismo.

Como se sabe, o keynesianismo se apresenta como uma alternativa de política econômica que se contrapõe às correntes liberais que minimizam ou pretendem minimizar o papel do Estado no provimento do emprego no sistema econômico como um todo.

Trata-se de uma resenha feita pelo historiador britânico Adam Toose que tem, como se sabe, uma enorme simpatia pelo keynesianismo. A grande interrogação que ele nos apresenta é a seguinte: “enquanto o mundo derrete diante de nossos olhos [devido às mudanças climáticas], o que o gerencialismo keynesiano tem a oferecer aos nossos filhos e netos?

De qualquer forma, ela aponta a China pós Mao como o país em que ainda estão sendo aplicadas as lições do keynesianismo, aliás, como enorme sucesso – ainda que esse sucesso não esteja isento de graves problemas ambientais, econômicos e sociais e que seja da modalidade autoritária.

A tradução se encontra aqui: Tempos tempestuosos

A estagnação dos países ricos

Ao contrário do que muita gente pensa, o capitalismo não está mais progredindo de modo firme e forte em países como EUA, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Itália etc. Ao contrário, sabe-se que o crescimento econômico se reduziu progressivamente nas nações de altas rendas, década após década, após o término da II Guerra Mundial. Os dados mostram, inclusive, que o investimento como proporção do excedente obtido pelas grandes corporações tendeu a se reduzir ao longo dos últimos decênios.

Nessa postagem faz-se uma confrontação entre duas teses, sustentadas ambas por economistas de esquerda, que buscam explicar esse curso histórico.

Uma delas, mais aceita pelos keynesianos, julga que a causa do fenômeno se encontra na política econômica neoliberal que, em síntese, possibilitou que ocorresse uma “vingança dos rentistas”. A outra, mais acolhida por marxistas, pensa que essa causa se encontra na própria onda mais recente de globalização: ela deslocou a acumulação de capital do centro euro-americano para a Ásia. Como ela se centra no movimento do capital – a exploração reificada – em busca de maior rentabilidade, é aqui denominada de “incursão do capital”.

O texto se encontra aqui: A estagnação econômica dos países ricos

Ainda sobre o keynesianismo

Como o postO que é keynesianismo?” foi bem recebido pelo círculo de leitores desse blog, publica-se outro sobre o mesmo tema. Trata-se da tradução de uma resenha que também apresenta o livro de Geoff Mann antes aqui discutido, No longo prazo todos estaremos mortos. Esta foi feita por Mike Beggs da Universidade de Sydney, tendo sido publicada no sítio do Jacobin. Ela examina as teses de Mann do ponto de vista da política transformadora possível nos países ricos do centro do sistema capitalista mundial. Na interpretação do autor deste post, ao fim e ao cabo, ela sugere que demandas keynesianas sejam agora retomadas pelos partidos de esquerda, não para manter o capitalismo, mas para criar as condições necessárias para superá-lo. É uma proposta num momento em que faltam propostas...

O texto se encontra aqui: A contra-revolução keynesiana

O que é keynesianismo?

Aqui, o keynesianismo é caracterizado como uma doutrina econômica e política – e não estritamente como uma teoria econômica – que se encontra fortemente comprometida com a sobrevivência do capitalismo. Trata-se nesse sentido, ao fim e ao cabo, de um liberalismo iliberal. 

A nota é baseada no livro recém-publicado de Geoff Mann cujo título rememora uma famosa frase de John M. Keynes: no longo prazo estaremos todos mortos. Segundo esse autor, essa assertiva indica iniludivelmente que esse modo de pensar e atuar se encontra atravessado por uma profunda ansiedade histórica. Eis que expressa algo mais profundo, isto é, que o keynesianismo é movido por esperança e medo em relação as turbulências econômicas e as inquietações sociais do capitalismo. Afigura, assim, o futuro como enigmático e incerto e, por isso, contenta-se em ser uma doutrina pragmática, praticamente otimista no presente, que tem por objetivo ir salvando o capitalismo de si mesmo – não em geral, mas particularmente no mundo euro-americano.

A nota se encontra aqui:O que é keynesianismo?