Esquerda além da resistência

Autor: Rodrigo Santaella [1] – IHU – 11/06/2024

Não basta enfrentar ameaças o extremismo de direita; é preciso voltar a se orientar para o futuro: “A agência coletiva parece relegada ao segundo plano em nome de prognósticos e diagnósticos acerca do desenvolvimento tecnológico propriamente dito”, constata o cientista político

Se, por um lado, o aceleracionismo de esquerda tem riscos e limites ao depositar sua confiança no desenvolvimento tecnológico para garantir avanços e transformações sociais, por outro, esta corrente teórico-política tem o “mérito” de “chacoalhar” a esquerda tradicional, “resignada, acomodada, ordeira, ou seja, uma esquerda que se adequou à ordem e desistiu de qualquer tipo de imaginação política e, no limite, concebeu a ideia de que a sua única tarefa possível é administrar o capitalismo”, resume Rodrigo Santaella na apresentação das principais ideias que marcam o pensamento conhecido como aceleracionismo de esquerda.

Continuar lendo

Economia libidinal em Karatani (III)

Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte II)

Freud oferece uma resposta liberal para a questão maior de como a civilização gerencia as agressões coletivas encravadas e os ressentimentos gerais. Na conclusão de Civilization and Its Discontents, ele argumenta que o próprio reinado da propriedade privada é o melhor meio de inibir a pulsão agressiva.  Para Freud, parece que a própria persistência do modo C e o reinado da propriedade privada fornecem uma saída, juntamente com a cultura, para a agressão. Assim, há um grau de ressentimento que uma sociedade baseada na propriedade privada perpetua, que Freud parece lançar como necessário para manter um grau de repressão.

Lembramo-nos novamente da ambígua adesão de Freud à era progressista da Europa do pós-guerra e da insistência simultânea de que algo do sintoma da velha ordem permaneça dentro da nova. Essa posição coloca Freud em desacordo com a insistência de Karatani de que uma ordem social regida pela troca de mercadorias limita a liberdade. Nesse ponto de contraste, entra em foco o princípio invariante da natureza situado no núcleo da subjetividade – o que elaboramos acima como modo D – ou uma internalização da pulsão agressiva não determinada pela consciência. Karatani está utilizando o aparato freudiano de forma diferente do que o próprio Freud o fez e com objetivos políticos diferentes.

Continuar lendo

Economia libidinal em Karatani (II)

Autor: Daniel Tutt[1]

(continuação da parte I)

Há, portanto, uma teleologia na lógica Karatani dos modos de troca, na medida em que a lógica do modo D realiza a troca de presentes com base nos outros modos. Em vários momentos, Karatani discute a lógica de movimento do modo D como “religião”. E por “religião” ele quer se referir a uma forma semelhante à “religião” de Kant, a qual se realiza supostamente numa república mundial que aboliu o Estado e o capital. Em outros momentos, ele se refere ao modo D como se fosse provocado pela repressão e pela pulsão de morte no sentido freudiano do conceito. 

Em geral, enquanto um modo político de mudança histórica, Karatani teoriza o comunismo como um “modo D”; trata-se, para ele, de uma demanda repetitiva para romper com o modo C de troca de mercadorias e retornar à troca recíproca em cada modo de troca. Nesse relato da história e da práxis, podemos tomar o exemplo da Revolução Francesa e dos períodos revolucionários subsequentes como encenações do modo D. A Revolução Francesa veio de uma demanda coletiva por um retorno a arranjos mais fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade. Essas demandas coletivas também foram pensadas como um levante libidinal. Essa lógica se repete na história como uma forma de negação que busca romper modos opressores que dominam as relações sociais.

Continuar lendo

Economia libidinal em Karatani (I)

Autor: Daniel Tutt[1]

O filósofo japonês Kojin Karatani desenvolveu uma sofisticada teoria da história e da práxis, oferecendo uma leitura em “paralaxe” de Kant e Marx que alinha o sistema ético kantiano com uma crítica imanente da troca de mercadorias tal como Marx se desenvolve em O Capital.

As reflexões éticas de Kant não são a-históricas e meramente abstratas, como apontam Marx e muitos marxistas. Pelo contrário, a dimensão universal da ética de Kant não pode ser realizada num arranjo social qualquer. Karatani argumenta que, para o “reino dos fins” kantiano possa acontecer, é preciso uma modificação materialista do modo de troca das coisas (os bens em geral).

 Kant torna-se, assim, um interlocutor necessário no âmbito da práxis marxiana. Karatani mostra que, mesmo para o próprio Kant, a troca de mercadorias que dominava no seu próprio tempo – o capitalismo mercantil – tinha que ser transcendida como pré-condição para qualquer promulgação da ética kantiana. Essa ética, portanto, é pensável junta não apenas com a crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria e ao capitalismo, mas a teoria ética kantiana informa a práxis tal como pensada por Marx, oferecendo um relato utópico da revolução mundial.

Continuar lendo

Pulsão de morte – Compulsão do capital

Uma esforço para incorporar a psicanálise na crítica da economia política tal como vem sendo feito por outros autores.

Autor: Eleutério Prado [1]

1

Pelo título apresentado, é evidente que o artigo trata de um tema que se encontra supostamente na intercessão da psicanálise e da crítica da economia política. Enlaça, portanto, os ensinamentos de dois autores, Sigmund Freud e Karl Marx, que trataram respectivamente do modo de reprodução característico da psique do homem moderno e do sistema econômico capitalista. Será preciso, portanto, mostrar que a ambição de aproximar, sobrepor e combinar esses dois campos do conhecimento faz sentido.

Este artigo investiga o tema de modo introdutório.  Por isso, a exposição deve começar por definições. E terá seguimento por meio de um diálogo com autores clássicos. Pretende mostrar que há uma afinidade entre a pulsão da morte e a compulsão do capital com a ajuda de um escrito de Samo Tomšič.

O que é pulsão da morte? Freud, em seu texto Além do princípio do prazer, afirma que, em sua experiência prática como psicanalítica, foi “levado a distinguir duas espécies de instintos[2], aqueles que pretendem conduzir a vida à morte e os sexuais, que sempre buscam e efetuam a renovação da vida” (Freud, 2010, p. 214). Para poder distingui-los, apresenta primeiro o gênero dessas duas espécies[3]: “restaurar um estado anterior é realmente uma característica universal dos instintos” (idem, p. 236). Qual seria, então, a diferença entre eles?

O instinto da vida orienta as posturas e as ações que visam obter satisfação. Ora, segundo esse autor, “o curso dos processos psíquicos é regulado automaticamente pelo princípio do prazer” (idem, p. 162). E ele é negativo: sempre que as condições da vida criam uma tensão desprazerosa, a psique busca rebaixá-la ou mesmo suprimi-la e, ao fazê-lo, gera satisfação e até mesmo deleite.   Esse princípio, portanto, busca “tornar o aparelho psíquico isento de excitação ou conservar o seu montante (…) constante ou a menor possível” (idem, p. 237).  Diante de uma sensação de medo provocada por uma doença, por exemplo, esse instinto leva a pessoa buscar refúgio no saber do feiticeiro, do curandeiro, do médico etc. para que eles consigam dominá-la. 

Continuar lendo

Se a gente quiser, o capitalismo acaba

Autor: Aaron Benanav[1]

Como seria uma economia socialista? As respostas a essa questão variam, mas a maioria delas envolve a noção de planejamento. Uma economia capitalista é organizada por meio da interação entre preços e mercado. Uma economia socialista, por contraste, seria “conscientemente regulada (…) de acordo com um plano estabelecido”, para tomar emprestada uma frase de Marx. Porém, como tal plano seria feito e implementado? Essa tem sido uma questão de debate acirrado entre socialistas por mais de um século.

Um dos campos do debate colocou particular ênfase nos computadores. Esses “socialistas digitais” enxergam os computadores como a chave para administrar uma economia planejada. Seu foco está nos algoritmos: eles querem projetar softwares que possam receber informações sobre as preferências do consumidor e as capacidades de produção industrial – como uma peneira gigantesca alimentando um moedor de dados – e determinar as alocações ótimas dos recursos.

Ao longo dos anos, ocorreram alguns experimentos seguindo essas linhas. Nos anos 1960, o matemático soviético Victor Glushkov propôs uma rede nacional de computadores para ajudar os planejadores a alocar os recursos. Com o auxílio do ciberneticista inglês Stafford Beer, a administração de Salvador Allende no Chile tentou algo similar nos anos 1970, chamado de Cybersyn. Nenhum dos projetos chegou muito longe. A ideia de Glushkov encontrou resistência das lideranças soviéticas, enquanto o golpe de Pinochet eliminou o Cybersyn antes dele estar completamente implementado. De qualquer modo, o sonho continua vivo.

Hoje obviamente o socialismo digital pode fazer muito mais. A internet possibilitaria canalizar grandes quantidades de informação de todas as partes do mundo para sistemas de planejamento, quase instantaneamente. Saltos gigantescos na capacidade de computação tornariam possível processar todos esses dados rapidamente. Enquanto isso, o aprendizado de máquina e outras formas de inteligência artificial poderiam vasculhá-los, para descobrir padrões emergentes e ajustar a alocação de recursos apropriadamente. Em A República Popular do Walmart (The People’s  Republic of Walmart), Leigh Phillips e Michal Rozworski argumentam que grandes empresas como Walmart e Amazon já usam essas ferramentas digitais para planejamento interno – e que agora elas precisam apenas ser adaptadas para uso socialista.

Continuar lendo

O socialismo é impossível como afirma Von Mises?

1. INTRODUÇÃO

            Mises publicou um texto em alemão versando sobre o cálculo econômico no modo de produção socialista, em 1920, o qual foi traduzido para o inglês em 1935, com o título de Economic Calculation in the Socialist Commonwealth (Mises, 1935). Desde logo, deve-se dizer que o termo comunidade (commonwealth, em inglês) aí empregado cria certa confusão, pois não se sabe bem se faz referência ao comunismo ou ao socialismo nas acepções de Marx – alvo principal do artigo.

Como as questões de que trata só fazem sentido ao se supor que visa uma sociedade em que a escassez não foi superada, deve-se admitir que trate mesmo do socialismo. O artigo, que é considerado um marco inicial no debate secular sobre o cálculo socialista, segundo um admirador incontinente, provou “de uma vez para sempre que, sob o planejamento central socialista, não há cálculo econômico possível e que, por isso, a própria economia socialista mostra-se ‘impossível’” (Salermo, 1990, p. 34).

            2. DO SOCIALISMO IMPOSSÍVEL

            Ludwig von Mises esforçou-se mesmo para provar que o socialismo seria impossível e as suas alegações tiveram enorme repercussão nos debates teóricos e práticos associados à construção desse novo modo de produção. Por razões que nascem daí, mas que só ficarão claras depois, faz ainda sentido indagar quais são os pontos centrais de sua argumentação. Em primeiro lugar, ele aponta que os socialistas em geral não se preocuparam ou se preocuparam de modo insuficiente com as questões relacionadas à organização econômica da nova sociedade. O seu texto indica que os seus defensores não se demoraram na consideração da extraordinária complexidade do processo de ajustamento entre as necessidades e as quantidades de bens e serviços a serem produzidas para atendê-las, entre as ofertas e as demandas em sua enorme diversidade, ignorando largamente as dificuldades da alocação de recursos escassos entre fins alternativos. Eis que a crítica do capitalismo – menciona – não resolve por si só o problema econômico do socialismo.

Continuar lendo

Socialismo: o melhor argumento contra ainda é muito ruim

Antes de apresentar e criticar o melhor argumento contra o socialismo é preciso falar um pouco, muito pouco, de um argumento muito, muito ruim. E ele se encontra no livro Capitalismo sem rivais de Branko Milanovic.[1] Neste folhoso, o seu autor oferece dois tipos ideais para entabular uma compreensão do capitalismo contemporâneo: um deles, que chama de “capitalismo meritocrático e liberal”; o outro, que denomina de “capitalismo político”. Estes dois “modelos” – como ele mesmo explica – representam em largos traços, por suposto, os capitalismos realmente existentes nos Estados Unidos e na China, respectivamente.

No último capítulo, denominado Futuro do capitalismo global, depois de apresentar o capitalismo contemporâneo como amoral porque impõe a forma mercadoria a quase tudo, Milanovic se pergunta se há um sistema alternativo que possa vir a substitui-lo no futuro. Põe essa questão de modo retórico para lhe dar, em sequência, uma resposta bem “thatcherita”: “o problema com tal avaliação sensata é que não há uma alternativa viável para o capitalismo hiper mercantilizado”. Justifica, então, essa conclusão peremptória de dois modos: a) “as alternativas criadas no mundo se mostraram piores – algumas delas muito piores”; b) “não se pode ter a esperança de manter tudo isso” – ou seja, os “bens e serviços que se tornaram parte integral de nossas vidas” – “destruindo o espírito aquisitivo ou eliminando a acumulação de riqueza como a única forma de sucesso”.

Continuar lendo

A relação entre mercado e Estado

Sobre a relação entre Estado e mercado há várias teses bem problemáticas. Uma delas, provinda da esquerda, considera que o Estado, entendido como superestrutura descolada da base econômica, é um mero aparato da burguesia. Ora, como argumentou Ruy Fausto em Marx, Lógica e Política II, o Estado se caracteriza por pôr a identidade das classes sociais, negando a contradição entre elas. Ele põe, assim, a unidade do sistema, sela as contradições evitando que elas possam vir a destruir o sistema. O Estado se deriva, portanto, da contradição entre a aparência e a essência do modo de produção capitalista.

Nessa última perspectiva, o Estado e o sistema econômico do capital devem ser vistos como instâncias da sociedade moderna que se complementam: o sistema econômico não pode existir sem o Estado. Ele está “fora”, mas justamente por isso penetra constantemente nesse sistema para regulá-lo, dirigi-lo e mesmo substituí-lo quando isso ase mostra necessário. Ele não apenas garante as condições externas de funcionamento do sistema, mas também cria ativamente, por interferência constante, as condições internas de seu funcionamento.

Mas isto não é tudo. Da incompreensão dessa tese básica decorrem outras. A ideologia liberal considera o Estado como externo ao sistema produtor de mercadorias, como esfera de uma burocracia que frequentemente se comporta de modo disfuncional em relação ao sistema econômico. Afirma, em sequência, a eficiência e eficácia do mercado enquanto tal, reduzindo o papel do Estado à de garantidor das condições do melhor funcionamento dos mercados. Nessa perspectiva, as suas interferências diretas são vistas como inadequadas ou mesmo como desastrosas em princípio.

Ora, também os social-democratas acolhem a tese de que o Estado é de certo modo externo ao sistema econômico. Como assumem, contrariando assim os liberais e neoliberais, que o funcionamento do sistema econômico é tendencialmente deficiente e criador de grandes distorções e desigualdades, eles defendem que o Estado deve atuar como aquela instância que corrige as falhas e as insuficiências do sistema econômico. Nesse sentido, atualmente, propõem que o Estado deve atuar para manter e aprofundar o que tem sido denominado de “estado de bem-estar social”.

Ora, há autores que criticam severamente essa última posição. Para apresentar uma argumentação compacta que se desenvolve nesse sentido, publica-se aqui a tradução de um texto de Clément Homs, autor francês que pertence à chamada “crítica do valor”.

Eis o artigo: Homs – Breve história do mercado e do Estado

O planejamento na era da Internet – Parte I

Este blog tem publicado textos que versam sobre o planejamento econômico que seria necessário para organizar uma economia de modo socialista e democrático. Ao contrário do que reza o senso comum atualmente dominado pelos preconceitos neoliberais, é possível argumentar que ele seria muito mais eficiente e eficaz do que a economia de mercado.

Com esse objetivo, é preciso ter em mente, sim, o que ocorreu no passado nas economias de comando centralizado, as quais eram dirigidas por burocratas do partido-Estado. Mas também é necessário investigar as formas de planejamento agora tornadas possíveis pelas novas tecnologias da informática e da comunicação.

No texto que agora se publica – em duas partes – Alan Freeman, economista da Universidade de Manitoba, no Canada, usa todo o seu conhecimento no planejamento da Grande Londres para mostrar porque o planejamento democrático é possível e mesmo necessário quando se tem em mira obter bons resultados econômicos.

Ele sugere que é preciso recomeçar a discutir a teoria do planejamento de forma adequada. Para tanto, afirma que pode fornecer algumas indicações sobre as características gerais que um sistema de planejamento precisa ter para que os objetivos econômicos sejam alcançados sem sacrificar – ao contrário, favorecendo – o processo da democracia.

A primeira parte do seu texto se encontra aqui: Planejamento na Era da Internet – Parte I