O socialismo é impossível como afirma Von Mises?

1. INTRODUÇÃO

            Mises publicou um texto em alemão versando sobre o cálculo econômico no modo de produção socialista, em 1920, o qual foi traduzido para o inglês em 1935, com o título de Economic Calculation in the Socialist Commonwealth (Mises, 1935). Desde logo, deve-se dizer que o termo comunidade (commonwealth, em inglês) aí empregado cria certa confusão, pois não se sabe bem se faz referência ao comunismo ou ao socialismo nas acepções de Marx – alvo principal do artigo.

Como as questões de que trata só fazem sentido ao se supor que visa uma sociedade em que a escassez não foi superada, deve-se admitir que trate mesmo do socialismo. O artigo, que é considerado um marco inicial no debate secular sobre o cálculo socialista, segundo um admirador incontinente, provou “de uma vez para sempre que, sob o planejamento central socialista, não há cálculo econômico possível e que, por isso, a própria economia socialista mostra-se ‘impossível’” (Salermo, 1990, p. 34).

            2. DO SOCIALISMO IMPOSSÍVEL

            Ludwig von Mises esforçou-se mesmo para provar que o socialismo seria impossível e as suas alegações tiveram enorme repercussão nos debates teóricos e práticos associados à construção desse novo modo de produção. Por razões que nascem daí, mas que só ficarão claras depois, faz ainda sentido indagar quais são os pontos centrais de sua argumentação. Em primeiro lugar, ele aponta que os socialistas em geral não se preocuparam ou se preocuparam de modo insuficiente com as questões relacionadas à organização econômica da nova sociedade. O seu texto indica que os seus defensores não se demoraram na consideração da extraordinária complexidade do processo de ajustamento entre as necessidades e as quantidades de bens e serviços a serem produzidas para atendê-las, entre as ofertas e as demandas em sua enorme diversidade, ignorando largamente as dificuldades da alocação de recursos escassos entre fins alternativos. Eis que a crítica do capitalismo – menciona – não resolve por si só o problema econômico do socialismo.

            No curso dessa lógica de argumentação, Mises concebe o socialismo como modo de organização econômica em que “todos os meios de produção são propriedade da comunidade”, sendo essa última, em exclusivo, aquela “que pode deles dispor e que determina seu uso na produção” (Mises, 1935, p. 4). De maneira digna de ser sublinhada, caracteriza-o pelo modo como aí necessariamente se faria a alocação de recursos. Ao invés de se basear no processo sistêmico, cego e disperso do mercado, esse novo modo se caracterizaria por confiar na centralização das decisões de alocação de recursos seja para a geração de produtos seja para proceder à repartição dos produtos previamente obtidos entre os membros da população. O socialismo mostra em seus olhos voltados para o futuro o brilho da esperança de que seria possível forjar um processo econômico transparente, consciente e planejado capaz de abranger toda a produção e toda a repartição da riqueza material numa sociedade complexa.

            É isso o que Mises contesta: essa expectativa, para ele, é ilusória.  

            A argumentação de Mises junta duas questões que é preciso separar: uma diz respeito ao fundamento do cálculo econômico que seria necessário implementar para tornar viável o socialismo e a outra trata da realização desse cálculo. Imediatamente, em seqüência, considera-se a primeira delas.

            2.1 Fundamento do cálculo

A alocação de recursos pelo órgão centralizador, seja ela fundada num processo democrático ou ditatorial de tomada de decisão – convém ele –, requer o estabelecimento de relações de equivalência – ou seja, relações que se expressam em algo semelhante aos valores de troca – entre os diversos bens e serviços produzidos e consumidos na sociedade. Sem a fixação dessas relações, admitindo que a escassez não tenha sido ainda superada, o cálculo econômico não poderia ser feito e a própria possibilidade do novo modo de organização estaria morta ab ovo. Entretanto, como estabelecê-las – é a pergunta que faz – sem as transações de livre mercado que não são permitidas no socialismo?

Fazendo uma interpretação marxista de seu argumento, note-se que faz referência à necessidade de que nessa economia exista uma medida social dos valores fundada num princípio de equivalência geral. Como a operação ideal de medição de valores no capitalismo parece depender diretamente da existência das transações reais, ele a associa de modo imediato à necessidade de que exista moeda, também no socialismo, e que ela atue como meio de troca.  Ora, como nessa economia, segundo a sua própria definição, não há e nem pode haver nem mercado e nem troca, chega à conclusão de que o “cálculo em termos monetários é aí impossível” (Mises, 1935, p. 6). Há aqui uma questão teórica a qual apenas poderá ser solucionada partindo de O Capital de Marx. De qualquer modo, é preciso mencionar que Mises tem razão em ponderar que as relações de equivalência teriam de existir e que estas não poderiam ser arbitrárias.

Ora, como se estabelecem as proporções de troca de mercadorias no próprio capitalismo? Mises, por razão evidente, ignora que o princípio de equivalência das mercadorias nesse sistema é fornecido pelo trabalho abstrato – a substância do valor. Ignora, também, que o valor se forma na produção e se expressa na superfície do mercado, de modo contraditório, nos valores de troca, ou nos preços, de modo sempre flutuante. Se assim pensasse, entretanto, veria que a equivalência das mercadorias vem a ser condição prévia e objetiva das trocas – e não o contrário. Como bom autor da escola austríaca, diferentemente, Mises sustenta uma teoria circular da formação de preços: “o valor de troca origina-se” – diz – “na interação das valorações subjetivas de todos os participantes da troca” (Mises, 1935, p. 9).

Assim, admitindo que a equivalência das mercadorias se estabeleça nas transações de mercado, infere, em seqüência, que sem trocas não há cálculo econômico possível – pelo menos além do âmbito da família. Eis que, entretanto, essa concepção depende da suposição de que essas próprias valorações subjetivas, cujas interações no mercado supostamente constituem os preços, são independentes da existência dos preços, o que é evidentemente falso. É notório que tal afirmação se assenta ou no mito do individualismo ontológico ou numa opção pelo individualismo metodológico, alternativas ambas fundadas no atomismo engendrado pela própria circulação de mercadorias, o qual vem a ser uma característica apenas superficial do modo de produção capitalista.

Seria possível estabelecer as proporções de equivalência dos produtos gerados numa economia socialista com base no tempo de trabalho? – eis a questão colocada também pelo próprio Mises. Ora – pensa ele – os diferentes trabalhos (chamados pelos marxistas de concretos) são heterogêneos e a importância relativa deles para o bem-estar social varia com as próprias necessidades sociais. Ademais, na avaliação do valor relativo dos bens e serviços seria preciso considerar não apenas os trabalhos diretos, mas também os indiretos, os quais foram investidos na produção dos bens e serviços intermediários utilizados na produção dos bens e serviços finais.

Dito de outro modo, as relações de equivalência dos bens e serviços em geral não poderiam se basear nas quantidades de trabalho necessárias para produzi-las, já que os trabalhos são também heterogêneos entre si. “Assim” – conclui Mises –, “numa comunidade socialista, vem a ser totalmente impossível estabelecer conexão entre a significância para a comunidade de qualquer espécie de trabalho e a divisão proporcional do resultado do processo comunal de produção” (Mises, 1935, p. 7).

De uma perspectiva marxista, como se sabe, os trabalhos concretos não são mesmo equivalentes entre si. Entretanto, no modo de produção capitalista, eles são reduzidos a algo comum por meio do processo social. Eis que ele é capaz de comensurar os trabalhos concretos transformando-os em trabalho abstrato. É certo, também, que o processo econômico em geral, capitalista ou socialista, requer um processo objetivo que estabeleça a equivalência dos produtos singulares aí produzidos, permitindo assim a sua mensuração de um ponto de vista social. É errado, entretanto, pensar que sem troca não há comensuração possível das coisas úteis que estão sendo socialmente produzidas. É certo, por outro lado, que qualquer comensuração admissível venha ser apenas condição necessária, mas não suficiente, para que haja movimento de balanceamento entre produção, consumo e investimento.  

Note-se, agora, que a equiparação dos trabalhos no modo de produção capitalista é feita pelo processo social sem que os produtores de mercadorias se dêem conta dela. Nesse sistema, como se sabe desde Marx, o processo de redução do trabalho concreto ao abstrato ocorre diuturnamente por exigência do funcionamento do próprio sistema.

Na verdade, é realizado segundo os imperativos da produção mercantil generalizada e da valorização do capital no próprio processo produtivo, de modo independente do processo de troca. O trabalho abstrato coagula-se como forma de valor e, por meio de complexa mediação, manifesta-se como valor de troca – na verdade, como preço de produção e preço de mercado. Como se sabe, nessa perspectiva teórica, o papel da circulação de mercadorias e dos mercados vem a ser confirmar ou não o valor gerado na produção.

Como se realizará, então, a equiparação dos trabalhos concretos no socialismo? Diferentemente do que ocorre no capitalismo, ela só poderá ser feita aí de modo consciente por meio de um processo social de interação que estabeleça as relações de equivalência das diferentes espécies de trabalho, considerando as necessidades sociais, a eficiência da produção, os princípios de justiça, etc.

Esse processo deverá configurar um sistema de justiça distributiva socialista que vá se afastando cada vez mais dos padrões da economia burguesa. Uma diferença crucial, entretanto, terá de se estabelecer: a formação dos valores e dos preços de produção no capitalismo é um processo cego e, por isso, fetichista, enquanto no socialismo ela será necessariamente estabelecida por convenções acordadas politicamente. Se o valor é fixado conscientemente, então a sua forma não se confundirá com a matéria que lhe dá suporte, o que dissipará o fetichismo da mercadoria.

Também no socialismo, as quantidades de tempo de trabalho abstrato gastas na produção de coisas úteis terão de se exprimir, igualmente com mediações complexas, em valores de troca. Nas transações tipicamente socialistas, como diz Marx, vale então “o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que é troca de valores iguais”. A produção e a repartição se regulam aí, portanto, por relações de equivalência: “o princípio diretor é o mesmo que para a troca de mercadorias equivalentes, uma mesma quantidade de trabalho, sob uma forma, troca-se por uma mesma quantidade de trabalho, sob outra forma”.

 Marx, no entanto, assevera que há uma diferença importante em relação ao capitalismo porque nesse sistema anárquico pela própria natureza “a troca de equivalentes só existe em média e não nos casos individuais” (Marx, 1966, p. 8-9). Ora, essa última afirmação aparentemente singela tem dois pressupostos fortes: a) o primeiro diz que as transações não podem ocorrer em mercados desregulados em que os preços flutuam; eis que devem acontecer em centros de distribuição, onde os “preços” seriam fixos; e b) o segundo supõe que seja possível compatibilizar as ofertas e as demandas antes que as transações ocorram e que este é um problema relativamente fácil de resolver.  

Se Mises registra o primeiro pressuposto como característica definidora do socialismo, mostra-se totalmente incrédulo sobre a possibilidade de que o segundo seja realizável. Para tratar dele em especifico, é preciso deixar o tema do fundamento do cálculo para passar à questão do próprio processo de cálculo. E nesse ponto, por razões que ficarão claras, Mises apresenta um argumento poderoso.

Depois de compreendê-lo, verificar-se-á que mesmo no socialismo haverá necessidade de permitir a flutuação dos valores de trocas, ou seja, para deixar as coisas mais explícitas, dos valores de troca que se formam nos mercados socialistas. Procurar-se-á mostrar que o planejamento orientador de toda atividade econômica nesse modo de produção não poderá deixar de se utilizar de processos homeostáticos de ajustamento entre ofertas e demandas.  Dito de outro modo, o primeiro ponto acima levantado não pode ser característica pétrea do socialismo para que o processo referido, sempre imperfeito, de compatibilização seja aí possível.

            2.2 Realização do Cálculo

            Mises, evidentemente, poria em dúvida a utilidade das convenções de equivalência dos trabalhos concretos sob o argumento de que seu emprego num procedimento de cálculo não permitiria em geral encontrar o equilíbrio entre o montante das necessidades de um bem qualquer e o suprimento desse mesmo bem. Se forem produzidos, por exemplo, 1000 sapatos que contém cada um 10 horas de trabalho social (contabilizadas estas de algum modo), por que razão haveria exatamente 1000 trabalhadores dispostos a gastar, cada um, cupons correspondentes a 10 horas de trabalho social, para adquirir precisamente aqueles sapatos?  Mas isto não é tudo.

            Na formulação dessa indagação, admitiu-se que as informações veiculadas – custo em horas dos sapatos e horas efetivamente trabalhadas – estavam grosso modo corretas. Mesmo mantendo essa suposição irrealizável na prática generalizadamente, o problema subjacente vem a ser bem mais complicado do que parece a primeira vista.  Pois, no parágrafo anterior, apresentou-se a dificuldade de equilibrar oferta e demanda apenas num ramo da produção, levando em conta apenas determinado bem, em certo momento; ora, existem e não pode deixar de existir milhares numa economia moderna – ou talvez mesmo milhões se forem consideradas todas as diferenças de qualidade observáveis.

A variedade da produção e das preferências manifestas, além disso, encontra-se sempre em permanente processo de transformação quantitativa e qualitativa. Ademais, como se sabe hoje, não é possível supor o equilíbrio numa atividade produtiva qualquer sem que o mesmo ocorra em todas as outras. Na verdade, para que haja ajustamento numa atividade qualquer é necessário que ocorram ajustamentos entre as ofertas e as demandas em todas as atividades ao mesmo tempo – e ao longo do tempo.

O problema genérico do mútuo ajustamento entre ofertas e demandas, sob condições extremamente formalizadas, foi tratado na esfera da chamada teoria do equilíbrio geral – um ramo da teoria neoclássica. Walras, na segunda metade do século XIX, iniciou um programa de pesquisa cujo teor consistiu em conceber o problema real de alocação de recursos como outro, inerentemente matemático, de equilibração de mercados.

O problema substituto, por sua vez, é então resolvido buscando a solução de um sistema de equações que expressam os excessos de demanda e oferta de todos os bens e serviços produzidos no sistema econômico. Sabe-se, no fundo, que essa teoria sempre foi bem inadequada como representação da economia capitalista; mencionou-se às vezes, ao discuti-la, que ela melhor representava uma economia socialista idealizada.

Entretanto, essa última visão também não parece adequada. Pensa-se aqui, entretanto, que pode ser encarada como uma formulação útil para se entender o problema do equilíbrio econômico em abstrato. Admitindo que o órgão de planejamento econômico disponha de todos os “dados” e que estes sejam “corretos”, o seu problema central vem a ser resolver computacionalmente um problema da alocação de recursos que é formalmente idêntico ao problema de encontrar o equilíbrio num modelo neoclássico desse tipo.

Ora, descobriu-se, após um longo caminho de aperfeiçoamento teórico que o equilíbrio (Ingrao e Israel, 1990) – situação em que os excessos se anulam – pode não ser alcançável e, mesmo que o seja, o tempo necessário para computá-lo seria possivelmente astronômico. Segundo alguns matemáticos brasileiros que trabalharam no tema da complexidade computacional, “mercados em equilíbrio podem ter preços não-computáveis”, de tal modo que “o principal argumento em favor do planejamento econômico claramente falha” (Costa e Doria, 2005, p. 38).

            Apontou-se no final do parágrafo anterior um notável resultado da matemática recursiva, o qual foi obtido apenas nas últimas duas décadas do século XX. É surpreendente, mas o problema da complexidade computacional já figura no texto de Mises, ainda que lá apareça em decorrência de percepção sobre o funcionamento do mundo real – e não, portanto, como resultado de prova matemática rigorosa como veio a ocorrer nos desenvolvimentos da ciência da computação.

            Veja-se que para Mises a moeda é absolutamente essencial para o cálculo econômico em geral; sem ela, “não seria possível reduzir todas as relações de troca a um denominador comum” (Mises, 1935, p. 12). Ora, o mesmo, ainda que de um modo mais rigoroso, é verdadeiro para Marx tomando como referência o capitalismo: o dinheiro como equivalente geral é para esse último autor o veículo que permite todas as outras mercadorias expressarem os seus valores como valores de troca.

Ainda que o fundamento do valor de troca não esteja no mercado, é certo que os preços que aí aparecem empiricamente permitem o funcionamento do sistema. Na verdade, por um lado, se os preços de mercado expressam em geral a ausência de balanceamento entre as ofertas e as demandas, por outro, possibilitam a existência de um processo de correção endógeno que permanentemente engendra, ao mesmo tempo, flutuações e a auto-organização do sistema. Assim, efetivamente, os preços de mercado permitem o cálculo econômico das unidades de produção e de consumo no modo de produção capitalista. Sem eles – e sem o dinheiro, portanto – os agentes tateariam no escuro.

Tomando como referência principal o problema da alocação de meios de produção fixos entre usos alternativos, Mises levanta um argumento cuja essência consiste em afirmar que o sistema econômico real é, do ponto de vista informacional, um sistema computacional distribuído cuja complexidade vem a ser irredutível. O argumento, ainda que longo, merece ser apresentado por inteiro: “Nenhuma mente humana sozinha pode dominar todas as possibilidades de produção, inumeráveis tais como o são, de tal modo a ficar numa posição de fazer diretamente julgamentos de valor sem a ajuda de um sistema de computação. A distribuição entre certo número de indivíduos do controle administrativo dos bens econômicos numa comunidade de pessoas que participam do trabalho de produzi-las ou que estão nelas interessados, requer um tipo de divisão de trabalho intelectual, o qual não seria possível sem economia e sem algum sistema de cálculo de produção” (Mises, 1935, p. 12). Para bem conectar a apresentação na abertura do parágrafo com o próprio argumento do autor, é preciso enfatizar que Mises nesse trecho faz alusão ao sistema econômico, considerando-o de modo abstrato como um sistema computacional descentralizado.

A referência a certa “divisão intelectual do trabalho” que figura também nesse trecho requer uma consideração mais longa. De certo modo, essa noção vem a ser expressão da concepção austríaca de formação dos preços em que estes últimos surgem da interação nos mercados dos planos dos agentes, ressalvado que esses planos se originam das valorações subjetivas, e independentes entre si, dos bens e serviços disponíveis na economia. Entretanto, ao mesmo tempo, faz referência a um processo distribuído de constituição do valor que se reflete nos preços – e nos cálculos feitos com base neles – que também tem sentido do ponto de vista da teoria do valor trabalho. A redução dos trabalhos concretos ao trabalho abstrato no capitalismo também ocorre de modo descentralizado; também surge por emergência a partir de um processo interativo que, mesmo sendo socialmente objetivo, tem a natureza de um pensamento coletivo.

Será mesmo o socialismo impossível?

3. DO SOCIALISMO POSSÍVEL

O socialismo na perspectiva de Marx, pensando no conjunto da obra, deve ser distinguido, sobretudo, como processo de produção que não está mais orientado cegamente pela acumulação de capital. Dito de outro modo, como metabolismo social entre os homens para a apropriação civilizada da natureza que deixou de ser comandado pela relação de capital, ou seja, pelo travamento social entre o capital e o trabalho assalariado.

Nesse sentido, em O Capital, Marx aponta para o socialismo mencionando que este deve possuir duas características centrais: o processo de produção é planejado e se organiza com base em livre associação de homens. Se a tradição socialista tendeu a conceder prioridade à primeira dessas características em face da segunda, aqui se crê que essa relação de dependência deve ser invertida. A livre associação dos homens para a produção da vida social deve ser considerada como a meta principal, como um objetivo de primeira grandeza e mesmo como um valor absoluto do socialismo. Logo, o assalariamento deve ser abolido no socialismo.

Por outro lado, o planejamento deve ser tido como condição subordinada, ainda que intrinsecamente necessária, para a realização da finalidade de criar uma sociedade de homens livres. Note-se, entretanto, que o planejamento só funciona se for limitado e se permitir o livre uso do conhecimento disperso na sociedade seja para a realização das tarefas postas pelo passado seja para o desenvolvimento de novas iniciativas. Eis que ele não pode impedir – mas deve permitir – o processo de adaptação permanente das unidades de produção e de consumo que compõem o sistema econômico às condições que estão em permanente processo de mudança. Note-se que adequação do comportamento ao ambiente, assim como a recriação do próprio ambiente em função dessa própria adequação, é uma característica fundamental tanto da vida orgânica quanto da vida social que não pode ser mudada ao bel prazer do homem.

Se o mercado capitalista – lugar por onde circulam as coisas que adquiriram a forma de mercadorias já na produção – é o reino da igualdade formal, da liberdade ainda que assimétrica e do comportamento pragmático e flexível, a produção capitalista – lugar onde ganham tal forma as coisas úteis submetidas à lógica de valorização – é a esfera da opressão e do despotismo do capital, da hierarquia de postos e do comportamento regulado de modo imperativo. Como a relação de capital está intimamente ligada à propriedade privada dos meios de produção, a superação do capitalismo exige a sua supressão, o que, por sua vez, exige que essa propriedade se torne coletiva.

Mas isto não significa, de modo algum, que venha a ser a comunidade como um todo quem unicamente dispõem e decide como usar os meios de produção. Ao contrário, a exigência que postula a livre associação dos produtores obriga que a propriedade dos meios de produção esteja adjudicada às unidades de produção organizadas democraticamente como coletivos de trabalhadores e de trabalhadoras. É evidente que a ampla liberdade que devem dispor para decidir como e quanto produzir, assim como a que preços devem ser oferecidas as coisas úteis no mercado socialista, esteja subordinada ao interesse público e que seja exercida segundo regras gerais de responsabilidade social.   

O funcionamento de tal sistema econômico exige que as unidades de produção possam adquirir, umas das outras, meios de produção duráveis assim como insumos correntes. É também necessário que sejam capazes de fornecer produtos diretamente para as unidades de consumo, sejam elas famílias ou grupos de famílias organizadas em cooperativas, ou para as unidades intermediárias de distribuição. Para que tudo isso se efetive, o sistema econômico tem de ser um sistema complexo que opera necessariamente fora do equilíbrio, mantendo a propriedade da auto-organização.

Sendo assim, então, todo o processo econômico deve animar-se decentralizadamente. As unidades produtivas e de consumo devem possuir ampla liberdade de decisão, operando sob regras e metas que visam alcançar objetivos humanos e ecológicos acordados amplamente. O sistema econômico assim constituído é capaz de funcionar diante de um futuro aberto e que permanece incerto e desconhecido.  Na falta, entretanto, do impulso de acumulação que vem do capital e do lucro que guia as decisões de investimento na economia capitalista, o sistema econômico socialista requer um planejamento macroeconômico capaz de fornecer as regras e as metas globais para o processo econômico.

A adaptação permanente permitida pelo funcionamento descentralizado do sistema econômico está de fato em contradição com o seu planejamento centralizado, mas isto não significa que esses dois aspectos sejam incompatíveis; ao contrário, a verdade é que eles se exigem mutuamente e se combinam limitando um ao outro. Na verdade, eles têm de “dialogar”. Por um lado, a ausência completa de planejamento origina o caos, a fragmentação da organização, por outro, a ausência da possibilidade de adaptação descentralizada leva à morte que é, aliás, idêntica à ordem extrema.

Ora, a combinação de planejamento com a adaptação existe também nas economias capitalistas, mas o primeiro é aí inefetivo e impotente diante do automatismo inerente ao auto-movimento do capital. Ele tende a crescer ilimitadamente, obedecendo apenas a lei de crescimento exponencial e tendo o céu por limite. Como a capacidade de carregamento da terra é limitada, é possível afirmar atualmente, com certa segurança, que o déficit de planejamento inerente ao capitalismo ameaça a própria existência humana na face da terra. O homem está, pois, condenado a procurar um modo de desenvolvimento sustentado, longe da anarquia da produção capitalista e longe da ordem posta por um planejamento relojoeiro; esta última é de fato inviável, mas nem por isso deixou de aparecer em certas concepções positivistas a respeito da organização da sociedade.

4. O QUE É POSSÍVEL ASPIRAR?

Note-se antes de mais nada que não se está apresentando aqui um modelo de socialismo de mercado. O termo mercado, tal como é empregado usualmente pelos economistas, vem a ser um termo genérico despido de especificidade e de contexto histórico e que, por isso mesmo, pode ser empregado em discursos pouco rigorosos. Assim, por exemplo, caí-se em mistificação quando se denomina o capitalismo de economia de mercado, pois, ao fazê-lo, desloca-se o foco da compreensão do modo de produção para o modo de circulação de mercadorias E nessa última esfera desaparecem o despotismo do capital e a dominação de classes.

Por outro lado, numa economia de produtores independentes que trocam os excedentes na praça pública, a forma mercadoria adere aos produtos do trabalho de um modo apenas fortuito, não essencial. Já em mercados dominados pelo antigo capital comercial, a forma mercadoria colada aos produtos originados em economias comunais, feudais ou escravistas, recebe também a forma de capital, mas apenas na circulação. Nesse caso, como diz Marx, têm-se a forma, mas não o conteúdo de capital: “não há produção capitalista e por isso o capital não existe aí em sentido estrito” (apud Arthur, 2004, p. 202).

Somente no modo de produção capitalista a forma mercadoria ganha também o conteúdo de capital porque isto já ocorre na produção e porque o télos da produção é aí a produção de mais-valia. Se a relação de capital é abolida, ou seja, se o circuito D – M (FT) – D’ é bloqueado institucionalmente, o produto do trabalho pode assumir a forma de mercadoria, mas apenas porque há a mediação homeostática entre a produção e o consumo.

Desde o primeiro escrito de Lange em resposta aos questionamentos de Mises e Hayek, em 1936, não se concebe mais o planejamento centralizado como global.  Este autor em seu artigo pioneiro concedeu já aos críticos austríacos que não seria possível substituir os mercados por um cálculo socialista que conciliasse a produção com o consumo e o investimento ex-ante. Assumindo que a propriedade dos meios de produção naturais e produzidos seria forçosamente estatal, imaginou um socialismo em que se preservariam os mercados de bens de consumo e de força de trabalho. Caberia, assim, ao Estado, enquanto proprietário de todas as condições da produção e de suas unidades produtivas, planejar o emprego dos terrenos, máquinas, equipamentos, instalações e insumos tendo em vista atender a todas as necessidades sociais. É evidente que assim o planejamento central se transformava também em economia de comando central.  

Este, entretanto, não precisa ser abrangente ao ponto de impedir o desenvolvimento das criatividades e das iniciativas da população trabalhadora livremente organizada. É sabido que o controle de algumas variáveis importantes como a produção anual de aço, de energia, grãos, etc. garante já o controle do processo de crescimento econômico no interior de um determinado país.  

Referências Bibliográficas

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Carcanholo, M. D. e Nakatani, P. A planificação socialista em Cuba e o grande debate dos anos 90. In: Outubro, nº 15, 2007, p. 195-231.

Costa, N. C. A. e Doria, F. A. Computing the Future. In: Computability, Complexity and Constructivity in Economic Analysis. Ed. K. V. Velupillai. Oxford: Blackwell, 2005, p. 15-50.

Ingrao, B. e Israel, G. The Invisible Hand – Economic Equilibrium in the History of Science. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1990.

Marx, K. Critique of the Gotha Programme. Nova York: International Publishers, 1966.

Mises, v. L. The Calculation in the socialist commonwealth. In: Collectivist Economic Planning. Ed. F. A. Hayek. Londres: George Routledge & Sons, 1935, p. 87-130.

Novo, A. Novos rumos do comunismo. In: Critica Marxista, n° 22, 2006, p. 75-96.

Salermo, J. T. Postscript: why a socialist economy is ‘impossible’. In: Ludwing von Mises Institute: http://www.mises.org., 1990.