Economia libidinal em Karatani (I)

Autor: Daniel Tutt[1]

O filósofo japonês Kojin Karatani desenvolveu uma sofisticada teoria da história e da práxis, oferecendo uma leitura em “paralaxe” de Kant e Marx que alinha o sistema ético kantiano com uma crítica imanente da troca de mercadorias tal como Marx se desenvolve em O Capital.

As reflexões éticas de Kant não são a-históricas e meramente abstratas, como apontam Marx e muitos marxistas. Pelo contrário, a dimensão universal da ética de Kant não pode ser realizada num arranjo social qualquer. Karatani argumenta que, para o “reino dos fins” kantiano possa acontecer, é preciso uma modificação materialista do modo de troca das coisas (os bens em geral).

 Kant torna-se, assim, um interlocutor necessário no âmbito da práxis marxiana. Karatani mostra que, mesmo para o próprio Kant, a troca de mercadorias que dominava no seu próprio tempo – o capitalismo mercantil – tinha que ser transcendida como pré-condição para qualquer promulgação da ética kantiana. Essa ética, portanto, é pensável junta não apenas com a crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria e ao capitalismo, mas a teoria ética kantiana informa a práxis tal como pensada por Marx, oferecendo um relato utópico da revolução mundial.

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A relação entre mercado e Estado

Sobre a relação entre Estado e mercado há várias teses bem problemáticas. Uma delas, provinda da esquerda, considera que o Estado, entendido como superestrutura descolada da base econômica, é um mero aparato da burguesia. Ora, como argumentou Ruy Fausto em Marx, Lógica e Política II, o Estado se caracteriza por pôr a identidade das classes sociais, negando a contradição entre elas. Ele põe, assim, a unidade do sistema, sela as contradições evitando que elas possam vir a destruir o sistema. O Estado se deriva, portanto, da contradição entre a aparência e a essência do modo de produção capitalista.

Nessa última perspectiva, o Estado e o sistema econômico do capital devem ser vistos como instâncias da sociedade moderna que se complementam: o sistema econômico não pode existir sem o Estado. Ele está “fora”, mas justamente por isso penetra constantemente nesse sistema para regulá-lo, dirigi-lo e mesmo substituí-lo quando isso ase mostra necessário. Ele não apenas garante as condições externas de funcionamento do sistema, mas também cria ativamente, por interferência constante, as condições internas de seu funcionamento.

Mas isto não é tudo. Da incompreensão dessa tese básica decorrem outras. A ideologia liberal considera o Estado como externo ao sistema produtor de mercadorias, como esfera de uma burocracia que frequentemente se comporta de modo disfuncional em relação ao sistema econômico. Afirma, em sequência, a eficiência e eficácia do mercado enquanto tal, reduzindo o papel do Estado à de garantidor das condições do melhor funcionamento dos mercados. Nessa perspectiva, as suas interferências diretas são vistas como inadequadas ou mesmo como desastrosas em princípio.

Ora, também os social-democratas acolhem a tese de que o Estado é de certo modo externo ao sistema econômico. Como assumem, contrariando assim os liberais e neoliberais, que o funcionamento do sistema econômico é tendencialmente deficiente e criador de grandes distorções e desigualdades, eles defendem que o Estado deve atuar como aquela instância que corrige as falhas e as insuficiências do sistema econômico. Nesse sentido, atualmente, propõem que o Estado deve atuar para manter e aprofundar o que tem sido denominado de “estado de bem-estar social”.

Ora, há autores que criticam severamente essa última posição. Para apresentar uma argumentação compacta que se desenvolve nesse sentido, publica-se aqui a tradução de um texto de Clément Homs, autor francês que pertence à chamada “crítica do valor”.

Eis o artigo: Homs – Breve história do mercado e do Estado