Cidadão Trump: sob o jugo do excesso

Autor: Todd McGowan [1]

O que falta a Kane

Houve pelo menos uma vez em que Donald Trump se mostrou mais capaz do que qualquer outro presidente americano. Quando perguntado sobre seu filme favorito, Donald Trump deu uma resposta digna de um estudioso de cinema. Ele nomeou Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, não apenas como o melhor filme já feito, mas como o seu pessoalmente favorito.

Certamente essa é a melhor resposta que qualquer outro presidente americano possa ter dado para essa pergunta. Mas quando se a considera de imediato, parece que se trata de um deslize inconsciente. Trump identifica como seu favorito o único filme que narra o vazio de um homem rico e poderoso que tem uma semelhança notável com ele mesmo.

Continuar lendo

A massa fascista e o “pequeno-grande homem”

Autor: Samir Gandesha[1]

Não pode haver dúvidas hoje de que, após um longo período de dormência, elementos autoritários e, às vezes, francamente fascistas retornaram à vida pública com força total. Voltaram não apenas por toda a Europa, Reino Unido e Estados Unidos, mas globalmente, mais notavelmente na Turquia, Índia e Brasil.

A imagem visualmente mais chocante de tal retorno são os centros de detenção de migrantes que se espalham pelo sul da Europa. Mais notórios, são os “acolhimentos” de crianças centro-americanas negligenciadas e aterrorizadas, supostamente sujeitas a abusos psíquicos e sexuais, nos campos de concentração na fronteira sul dos Estados Unidos com o México.

Continuar lendo

Sim, é suicidarismo

Eleutério F. S. Prado [1]

Essa nota dá continuidade a outra que foi publicada em 12/2023 aqui em A terra é redonda, mas que não foi bem notada. Sob o propósito de caracterizar o extremismo neoliberal, ela recebera originalmente um título negativo, “não, não é fascismo”. O escrito, entretanto, saiu com um título afirmativo que também se mostrou bem justo, “extremismo neoliberal suicidário”. Ninguém deu bola, mas a questão é importante para o que vem vindo no século XXI com o ocaso do capitalismo.

O artigo tinha uma mensagem: eis que é preciso evitar usar a etiqueta “fascista” para caracterizar todos os extremismos de direita. Pois, esse costume impede uma melhor compreensão dessa prática política que, desde os anos 1980, vem buscando dar sustentação ao sistema fundado na relação de capital.

Continuar lendo

A grande substituição

Publica-se aqui um pequeno artigo de uma autora que pensa a partir de uma idealização, o capitalismo liberal corrigido em seus excessos pela social-democracia. A sua tese de fundo é que o sistema econômico está embutido numa sociedade que supostamente garante a solidariedade social. Eis que essa solidariedade é contrariada constantemente pela sociabilidade posta pelo sistema mercantil generalizado – outro nome para o capitalismo.

A sociedade é assim pensada, portanto, não como “sociedade civil” tal como acontece na tradição que vai de Hegel a Marx, mas como comunidade – forma de existência dos humanos soldada supostamente por uma sociabilidade orgânica. Apesar disso, a sua questão parece relevante. O que vai acontecer na civilização humana realmente existente se o neoliberalismo extremista (que chama de populismo) predominar num grande número de países?

Publica-se porque faz um contraponto aos artigos Não, não é fascismo e Sim, é suicidarismo sim, ambos publicados neste blogue.

Continuar lendo

Não, não é fascismo

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Às vezes, certas palavras se transformam em etiquetas que podem ser coladas em qualquer lugar que pareça interessante. É o que vem acontecendo com a palavra “fascista” que é usada por gente de esquerda quando enfrenta opiniões e ações controversas de gente de direita. Trata-se, é bem evidente, de uma tática de fácil emprego em entreveros políticos, mas que pode pecar por falta de rigor teórico: nem toda posição política de direita, ainda que adversa, pode ser denotada como fascista – mesmo quando se insurge como igualmente perversa.

Aqui não se quer considerar esse uso corriqueiro da palavra “fascista”, mas um outro que se afigura bem comum atualmente e que se vale de um embasamento bem mais austero. E ele se encontra, por exemplo, no artigo A ascensão global da extrema direita, de Sérgio Schargel, que veio à luz recentemente no sítio A terra é redonda. Os argumentos aí apresentados foram introduzidos por meio da seguinte epígrafe: “mais do que nunca, precisamos chamar e classificar o bacilo da extrema direita por seu nome verdadeiro: fascismo”.

Continuar lendo

A pulsão catastrófica do capitalismo

Autores: Lucas Pohl[1] e Samo Tomsic[2]

A narrativa apocalíptica, provavelmente, vem sendo a mais difundida do que qualquer outra nos tempos atuais.  Aparece de várias formas e influencia o caráter do presente momento histórico: há os sucessos de bilheteria de Hollywood, assim como os romances de ficção científica, os documentários de TV; além disso, há os videogames, as postagens em blogs, projetos de arte, reportagens jornalísticas e volumes inteiros dedicados ao tema.

Nas primeiras semanas após o início da pandemia da COVID-19, quando ela começou a dominar na grande mídia e no grande público, assim como nos debates políticos e na vida cotidiana em muitas partes do mundo, chegou aquele momento em que pareceu que o fim do mundo finalmente havia chegado. As imagens de hospitais transbordantes de gente na Itália, os bloqueios de subúrbios inteiros na Espanha, as filas em frente as lojas de armas nos EUA e as prateleiras vazias nos supermercados em todo o mundo – ou seja, imagens que a maioria das pessoas conhece por meio da cultura de repente começou a se espalhar por toda a imprensa diária e pelas mídias sociais as mais variadas. De repente, os cenários fictícios das histórias sobre o fim dos tempos, publicadas e difundidas pela indústria do entretenimento nas últimas décadas, pareceram finalmente se tornar realidade. 

O “coronapocálipse” começou a correr e a se espalhar nas redes sociais e, assim, certamente captou o espírito desse momento. Ou seja, apresentou uma situação tão completamente desordenada que ficou difícil imaginar como as coisas poderiam voltar ao normal. Embora esses fatos tenham tido diversos efeitos colaterais inesperados, pelo menos por um momento pareceram corroborar o conhecido e questionado slogan atribuído a Frederic Jameson, segundo o qual “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. 

As primeiras semanas da pandemia demonstraram em princípio a validade desta estranha afirmação, ou seja, que é surpreendentemente fácil imaginar que o fim do mundo está chegado, sem conceber que o capitalismo está encontrando o seu fim.[3] Mas os efeitos ambientais registrados do bloqueio temporário e das medidas econômicas adotadas pelo menos por alguns estados europeus também mostraram que o dogma neoliberal “não há alternativa” pode ser superado muito mais facilmente do que julga o imaginário capitalista atualmente vigente.

Continuar lendo

A relação de capital: o fascismo e o stalinismo

Introdução

Como essas duas formas políticas, o fascismo e o stalinismo, podem ser compreendidas a partir da relação de capital – a relação social que subsumi o trabalho e, assim, o modo de trabalhar, por meio do assalariamento? Como essa relação estruturante da sociedade moderna é sustentada no fascismo e no stalinismo? Como o Estado garante a acumulação de capital em cada uma delas? Uma dessas formas, como se sabe, configura-se ainda no evolver do capitalismo e a outra aparece no “socialismo” burocrático – ambas, no entanto, mesmo se pareceram sólidas, revelaram-se ao fim reversíveis e transitórias. Para responder essa pergunta, que se tornou novamente central neste começo do século XXI, parte-se aqui da categoria de fetichismo apresentada em O capital.

Como já aconteceu outras vezes, o capitalismo enfrenta agora uma crise estrutural que coloca em dúvida a sua permanência na história. Diante dela, imensa como nunca fora antes, parece haver dois caminhos. A razão comunicativa recomenda aprofundar a democracia para resolver os impasses do desenvolvimento na sociedade contemporânea e, sobretudo, para contrariar o rumo do colapso societário. A sua negação extremista, entretanto, é que se tem apresentado e prosperado na cena política.

Diante dos esgarçamentos sociais produzidos pela atual crise estrutural, o fantasma de formas políticas totalitárias tem ressurgido no horizonte. E elas laboram para impedir a superação das ameaças à própria civilização humana. Não existe mais, portanto, a via de retorno à socialdemocracia. Logo, para as forças do desenvolvimento e da transformação só resta o caminho mais difícil do socialismo democrático. Por isso é que se afigura importante compreender melhor essas duas formas de totalitarismo, distinguindo o que tem de comum e o que tem de diferente.

Continuar lendo

Niilismo, capital, fascismo

Eleutério F. S. Prado [1][2]

Cesse tudo o que musa antiga canta; Que outro valor mais alto se alevanta

A declaração de Nietzsche, feita entre 1884 e 1888, de que a sociedade europeia abrira-se já para a entrada desoladora do niilismo, isto é, da depreciação de todos os valores morais que mantinham os humanos juntos na terra, ainda que com os pensamentos no céu, é desafiadora. Eis precisamente o que ele profetizou; eis como o fez; eis como negou uma causa apontada; eis como explicou o advento do niilismo [3]:

O niilismo está à porta: de onde vem esse mais sinistro de todos os hóspedes?

Ponto de partida: é um erro remeter [essa questão] a “estados de indigência social’ ou ‘degeneração fisiológica’ ou até mesmo à corrupção, como causa do niilismo.

Continuar lendo

O modo da dominação nazista segundo Zizek

Autora: Jodi Dean[1]

Esta nota[2] é parte de meu esforço para apresentar a teoria política de Slajov Zizek como um sistema coerente: versa, por isso, sobre a sua compreensão do nazismo.

As discussões de Zizek sobre o fascismo focam a Alemanha nazista e a maneira pela qual o nazismo transtornou a luta de classes em um confronto de raças. Ele apreende a dimensão estética da dominação nazista, assim como o papel do mestre “totalitário” nessa dominação. Como ele conjuga esses elementos? Adotando uma visão em paralaxe. Ou seja, o seu relato sobre o nazismo percorre três registros: o do Real em que se dá o confronto do nazismo com o Capital, o do Simbólico em que opera o comando da burocracia nazista e o do Imaginário em que acontece a estética nazista.

O nacional-socialismo, explica Zizek, foi uma tentativa de mudar algo para que nada mudasse.

Continuar lendo

Quando o neoliberalismo encontra o fascismo

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

O neoliberalismo é, sim, criador. Do que mesmo, na prática!? De má distribuição da renda, da destruição da proteção social dos mais pobres, da precarização da condição de vida dos trabalhadores – tudo isso é bem conhecido. Ainda que procure se justificar em nome da liberdade, o que ele procura mesmo é elevar a taxa de lucro do capital industrial e manter intocado e em processo de valorização o volumoso capital fictício acumulado nas últimas décadas. Mas a sua mais terrível – tem gente que gosta desse último termo e o emprega positivamente – criação não é bem conhecida. E ela precisa, sim, ser mostrada e bem mostrada.

Antes disso, note-se que esse agenciamento político é de certo modo sincero quando exalta a liberdade, mas se veja também que defende, em última análise, a liberdade do agente econômico, do homem como personificação do seu capital. E, nessa perspectiva, é preciso perceber que o neoliberalismo se move também no terreno da moralidade e tem uma pretensão tanto idealista quanto “idealista”.   

Continuar lendo