Sociabilidade associal: de Bentham a Sade

Autor: Samo Tomšič – Continuação de temática abordada em outro texto antes publicado neste blogue.

Marx, em O capital, criticou o liberalismo como a filosofia política que se assenta na aparência do modo de produção capitalista e que se constrói com base em ilusões que veem harmonia onde prevalece desarmonia. Eis o que escreveu ao final do capitulo 4 do livro I de sua magna obra:

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral.

Continuar lendo

Sociabilidade associal: Marx e Freud

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Essa nota tem um caráter experimental. Faz-se aqui uma nova tentativa de encontrar um nexo entre as concepções de Karl Marx e Sigmund Freud, as quais são e não deixaram de ser heterogêneas entre si mesmas. E ela se segue à tentativa feita no artigo Capitalismo e pulsão de morte (2024). Sem pretender contrariá-lo, retoma-se a sua linha de pensamento e as suas teses principais. Ora, esse novo ensaio se tornou necessário face ao desafio encontrado na leitura de um artigo de Samo Tomšič que versa sobre o caráter antissocial da sociabilidade capitalista (2024).

Segundo Tomšič ambos esses autores investigam e expõem características centrais da sociedade moderna, mesmo se um deles enfoca essencialmente a sociabilidade da relação de capital e o outro a constituição da psique humana-social nessas condições históricas. Eis como ele apresenta o problema:

Continuar lendo

Samo Tomšič em paralaxe

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

A psicanálise de Freud à Lacan pressupõe o ser social posto pela sociabilidade mercantil, ou seja, o indivíduo social e, portanto, o dinheiro e, mais do que isso, o próprio capitalismo. Segundo o texto que aqui se vai examinar “não é o inconsciente que explica o capitalismo”, mas o oposto, “é o capitalismo que explica o inconsciente” (Tomšič, 2015, p. 108). Para examinar essa tese – e os seus problemas – é preciso estudar criticamente o que diz Samo Tomšič em seu livro O inconsciente capitalista (2015). Mas será que se chega a algum lugar?

Ele parte de Freud:

A Interpretação dos Sonhos quiz ir além dos seus significados para examinar os mecanismos formais que podem ser reconhecidos nos processos oníricos, isolando assim sua função de satisfação (Tomšič, 2015, p. 100).

Continuar lendo

A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (III)

Autor Samo Tomšič

A antissocialidade do capitalismo versus a sociabilidade da análise

Na citação inicial, antes apresentada, Lacan evoca a dialética hegeliana do senhor e do escravo, na qual o senhor é aquele que aposta sua existência numa luta de vida e morte. Enfrentando o risco, ele se põe como senhor não só de sua própria vida, mas também – e sobretudo – da vida dos outros que subordina. Ao transformar o adversário em seu escravo, o senhor simultaneamente triunfa sobre a morte. Mas Pascal não está preocupado com esse mito hegeliano da aposta inicial daquele que se transformará em mestre; na verdade, ele nos apresenta uma figura mais sofisticada e totalmente moderna do mestre.[1]

O mestre de Pascal não precisa apostar nada, porque o jogo que comanda delega o risco ao libertino, transformando-o num trabalhador compulsivo em prol de Deus. Transformado, o antes incrédulo deve trabalhar doravante para um Deus que é radicalmente indiferente ao sacrifício humano e cuja vontade não pode ser influenciada por nenhuma ação humana.

Continuar lendo

A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (II)

Autor Samo Tomšič

O surgimento da fé a partir da compulsão de repetir

Depois de vincular a noção de mais-valor à transformação moderna do gozo, Lacan volta-se para Pascal e, em uma série de sessões do Seminário XVI, focaliza um detalhe específico dos Pensées de Pascal. Observa a notória aposta com que Pascal se empenha, por um lado, em desenvolver um argumento probabilístico para a existência de Deus e, por outro, em lançar luz sobre o mecanismo da conversão, a transformação do incrédulo em crente.

Se a ligação de Pascal com o capitalismo deve ser buscada em algum lugar, este vem a ser o vínculo – a princípio um tanto excêntrico – entre a questão da existência de um ser supremo e o jogo de aposta, na função estrutural dessa aposta e no surgimento da fé. A aposta, de fato, representa uma sofisticada mudança na tradição filosófica já que o esforço fundamental da filosofia sistemática consistiu sempre em fornecer provas sólidas da existência de Deus. Ao longo de sua história, a filosofia investiu muito esforço nessa empreitada, mas os resultados foram fracos; particularmente com o advento da ciência moderna, já que, por causa dela, a certeza da existência de Deus tem sido cada vez mais minada internamente pela dúvida ateísta.

Continuar lendo

A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (I)

Autor Samo Tomšič

Renúncia à vida e mais-valor

No XVI Seminário, Jacques Lacan afirmou: “O que o senhor vive é uma vida, mas não a sua própria, mas a vida do escravo. É por isso que, sempre que uma aposta na vida está em jogo, o mestre fala. Pascal é um mestre e, como todos sabem, um pioneiro do capitalismo.”[1]

Sabe-se mesmo que Pascal foi um pioneiro do capitalismo? A conexão não é evidente, embora Lacan apoie sua afirmação com a lembrança de que Pascal inventou o ônibus e a primeira calculadora mecânica (machine arythmétique). Essas invenções de natureza técnica podem sugerir certa compatibilidade do espírito científico de Pascal com a proverbial capacidade de inovação do sistema capitalista; no entanto, elas não justificam uma tese tão forte quanto aquela formulada por Lacan.

Como a citação inicial faz referência não apenas às invenções de Pascal, mas também à notória aposta – o argumento probabilístico de Pascal para a existência de Deus –, uma questão se impõe.

Continuar lendo

Pulsão, resistência e capitalismo

Samo Tomšič [1]

A mudança [3] para além da estreita questão psicológica sobre “quem resiste?” para a questão “de onde vem a resistência?” – a sua descentralização e afastamento do indivíduo psicológico e de sua consciência –, revelaram a Freud a onipresença da resistência. Disso resultou a fundamentação das estruturas libidinais e sociais numa ação constitutiva de resistência, a qual ele chamou de Urverdrängung, ou seja, repressão primária:

Temos motivos para assumir que existe uma repressão primária, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada na consciência do representante psíquico (ideia) da pulsão. Com isso, uma fixação é estabelecida; o representante em questão persiste inalterado a partir de então e a pulsão permanece presa a ele… O segundo estágio de repressão, repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido ou as sequência de pensamento que originaram outros lugares, entrando em conexão associativa com ele.

Por causa dessa associação, essas ideias experimentam o mesmo destino do que foi reprimido primeiramente. A repressão propriamente dita, portanto, é na verdade uma pós-pressão. Além disso, é um erro enfatizar apenas a repulsão, que opera a partir do consciente em direção ao que deve ser reprimido; tão importante é a atração exercida pelo que foi reprimido principalmente sobre tudo com o qual ela pode estabelecer uma conexão. Provavelmente, a tendência para a repressão falharia em seu propósito se essas duas forças não cooperassem, se não houvesse algo reprimido anteriormente para receber o que é repelido pelo consciente.

Continuar lendo

A sociedade não existe? Parte III

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Ao invés de concluir

 Lacan repetidamente argumentou que Marx inventou a noção de sintoma e acabou especificando que “há apenas um sintoma social – cada indivíduo é realmente um proletário, pois nenhum discurso pode fazer um laço social” (Lacan, La troisième). Poder-se-ia imediatamente censurar Lacan por repetir o privilégio dado por Marx ao trabalhador industrial, excluindo assim outros sintomas sociais, tais como, por exemplo, a mulher ou o escravo colonial. Mas talvez essas figuras distintas apontem para um “comum negativo”, por assim dizer, uma figura da subjetividade em estado de exclusão do laço social.

Então, o “proletário de Lacan” se colocaria como um possível nome genérico para essa subjetividade foracluída. O próprio Marx exemplificou essa rejeição na figura social do trabalhador industrial e, de maneira mais geral, insistiu que o capitalismo impõe relações sociais entre coisas (mercadorias) e não, diretamente, entre subjetividades. Nesse sentido, a economia capitalista realiza uma espécie de foraclusão do sujeito homóloga àquela operada pela ciência moderna (ver Lacan, Écrits). Depois de fazer essa observação sobre o proletário, Lacan passa a apontar a especificidade da psicanálise em comparação com outros discursos e/ou vínculos sociais:

Socialmente, a psicanálise tem uma consistência diferente dos outros discursos. É um elo entre dois [indivíduos]. Nesse sentido, a psicanálise se coloca no lugar da falta de relação sexual. Isso não basta para fazer dela um sintoma social, já que a relação sexual carece de serem todas as formas de sociedades. Isso está ligado à verdade que estrutura cada discurso. Por isso, aliás, não existe uma verdadeira sociedade fundamentada no discurso analítico. Existe uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. (La troisième).

Continuar lendo

A sociedade não existe? Parte II

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Solidariedade e Vida Afetiva

O axioma político-ontológico de Thatcher implica que a soma dos indivíduos (e suas famílias) de forma alguma excede suas partes, que não há excedente social sobre a organização da subjetividade (individualidade) e parentesco (família). Insistir, ao contrário, que existe algo como a sociedade implicaria que o “ser-com” ou o ser social excede e constitui o indivíduo e, consequentemente, que a individualidade não implica indivisibilidade. Eis o que ela disse:

Eles [os fracos, os carentes e os ressentidos] jogam os seus problemas para a sociedade, mas quem é a sociedade? Não existe tal coisa! Existem homens e mulheres individuais e famílias, e nenhum governo pode fazer nada exceto por meio das pessoas e as pessoas olham primeiro para si mesmas

Continuar lendo

A sociedade não existe? Parte I

Competição, Solidariedade e Laço Social

Samo Tomšič [1]

Prólogo

Em 1964, a Abadia de Royaumont, em Ilê-de-France, sediou um colóquio sobre Nietzsche, onde Michel Foucault apresentou sua famosa palestra “Nietzsche, Freud e Marx”. Nele, ele argumentou que esses três nomes representam uma ruptura radical na história das técnicas interpretativas. Eis que expõem a autonomia da ordem simbólica (do valor moral, em Nietzsche; do valor econômico, em Marx; do valor linguístico, em Freud) expondo, assim, a descentração do sujeito humano.

Juntas, a genealogia de Nietzsche, a crítica da economia política de Marx e a psicanálise de Freud fazem ainda um outro insulto ao amor-próprio humano, comparável ao Kränkungen científico – que Freud associava à Física do início da modernidade (descentração da realidade física; abolição do modelo cosmológico geocêntrico) e à biologia evolutiva (descentração da evolução da vida; abolição da exceção humana na hierarquia dos seres).[2]

Continuar lendo