O que é que a extrema direita é?

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

De Marx a Adorno

Muitos estudos do extremismo de direita, que genericamente chamam de fascismo, baseiam-se no escrito Teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista [2] de Theodor Adorno, de 1951. Trata-se, como se sabe, de um texto superposto a dois outros: eis que discute o escrito Psicologia das massas e análise do eu [3] de Sigmund Freud, de 1921, o qual, por sua vez, discute o escrito Psicologia das massas de Gustav Le Bon, de 1895, e o escrito A mente dos grupos [4] de William McDougall, de 1920. Os últimos três, portanto, vieram à luz antes da ascensão do fascismo histórico. O primeiro, ao contrário, enfrentou a questão de compreender esse câncer social depois que ele foi derrotado na II Guerra Mundial.  

Continuar lendo

O humano segundo Freud

Eleutério F. S. Prado[1]

Sobre a “inércia orgânica”

Para entender a metapsicologia de Sigmund Freud é preciso fazê-lo metodologicamente. Eis que ele pensa o homem social do seu tempo partindo do homem animal que ainda, supostamente, mora dentro dele, apesar de ter sido já transformado pela civilização. Ora, esse homem animal é para ele, essencialmente, um ser pulsional.

Antes de apresentá-lo como tal, é preciso começar lembrando que a existência humana percorre ciclos sucessivos de atividade e inatividade e que eles acontecem num tempo de vida limitado. Como se sabe, essa ciclicidade se inicia no útero e termina na morte.

Continuar lendo

Nacionalismo de desastre

Richard Seymour [1]

É muito fácil ser antifascista no nível molar sem nem mesmo ver o fascista que existe dentro de você mesmo, o fascista que você mesmo sustenta, nutre e estima com moléculas tanto pessoais quanto coletivas. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs [2].

I.

O fascismo, como Robert O. Paxton escreve em sua convincente história,[3] torna-se uma força histórica quando enfrenta “uma sensação de crise avassaladora além do alcance de quaisquer soluções tradicionais”. O livro, que aqui chega ao fim,[4] aponta para num paradoxo: as crises reais estão proliferando, mas o nacionalismo de desastre está se nutrindo de crises inteiramente fictícias.

Continuar lendo

O prazer e gozo segundo Todd McGowan

Autor: Todd McGowan

Compreender a política do gozo requer reconhecer a sua diferença em relação ao prazer. O gozo e o prazer existem em uma relação dialética, [pois um é negação determinada do outro]. O gozo é o termo privilegiado nessa relação, pois é ele que impulsiona o sujeito inconscientemente. As pessoas agem em prol do seu gozo, mesmo que o gozo nunca possa se tornar seu objetivo consciente.

Continuar lendo

Morte como desejo, não como mero fato!

Apresenta-se abaixo um escrito de Jon Mills, um psicanalista que se define como hegeliano, sobre a questão da pulsão de morte em Freud. Ao invés de tomar a pulsão de vida como primeira e a pulsão de morte/agressão como interversão desta em decorrência do surgimento de barreiras internas/externas respectivamente à realização dos desejos, ele, tal como o pai da psicanálise, procede de modo contrário.

Eis o texto de Jon Mills

O que poderia ser mais banal do que a morte, do que o inevitável, se ela é previsível, algo totalmente certo? É banal em virtude do fato de ser um evento que se imagina como rotineiro – algo inevitável. A morte não pode ser abolida ou superada. Por isso, Heidegger em Ser e tempo confessa que ela “está diante de nós – como algo fatal e iminente – nosso projetar – que pode ser adiado e, até mesmo, negado.

Continuar lendo

O bem comum e o excesso no capitalismo

Todd McGowan [1]

Dialética do Progresso

Saber como o progresso engendra movimentos de reação é uma questão que tem preocupado muitos pensadores desde meados do século XX, quando uma onda reacionária, muito destrutiva, manifestou-se na história. A primeira grande tentativa de dar sentido ao que alimenta essa política reacionária é a Dialética do Iluminismo de Theodor Adorno e Max Horkheimer.

Para Adorno e Horkheimer, o progresso sempre conteve um resíduo perverso de violência. Eles veem esse resíduo se manifestar nas estrepolias perpetuadas por Odisseu, nas perversões celebradas pelo Marquês de Sade e nas manipulações da indústria cultural. As forças negativas do iluminismo operam aí e se impõem diante de qualquer resistência possível.

Continuar lendo

A violência do tecnofascismo

Autor:  Franco ‘Bifo’ Berardi [1] – CTXT, tradução: Rôney Rodrigues

“Caliban: Você me ensinou a língua
e meu benefício é que eu sei amaldiçoar.
“A peste vermelha leva você por me ensinar sua língua.”
Shakespeare: A Tempestade

Colonialismo histórico: extrativismo de recursos físicos

A história do colonialismo é uma história de depredação sistemática do território. O objeto da colonização são os locais físicos ricos em recursos de que o Ocidente colonialista necessitava para a sua acumulação. O outro objeto da colonização são as vidas de milhões de homens e mulheres explorados em condições de escravatura no território sujeito ao domínio colonial, ou deportados para o território da potência colonizadora.

Não é possível descrever a formação do sistema capitalista industrial na Europa sem ter em conta o fato de que este processo foi precedido e acompanhado pela subjugação violenta de territórios não europeus e pela exploração em condições de escravatura da força de trabalho subjugada em os países colonizados ou deportados para países dominantes. O modo de produção capitalista nunca poderia ter sido estabelecido sem extermínio, deportação e escravidão.

Continuar lendo

Sociabilidade associal: de Bentham a Sade

Autor: Samo Tomšič – Continuação de temática abordada em outro texto antes publicado neste blogue.

Marx, em O capital, criticou o liberalismo como a filosofia política que se assenta na aparência do modo de produção capitalista e que se constrói com base em ilusões que veem harmonia onde prevalece desarmonia. Eis o que escreveu ao final do capitulo 4 do livro I de sua magna obra:

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral.

Continuar lendo

Sociabilidade associal: Marx e Freud

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Essa nota tem um caráter experimental. Faz-se aqui uma nova tentativa de encontrar um nexo entre as concepções de Karl Marx e Sigmund Freud, as quais são e não deixaram de ser heterogêneas entre si mesmas. E ela se segue à tentativa feita no artigo Capitalismo e pulsão de morte (2024). Sem pretender contrariá-lo, retoma-se a sua linha de pensamento e as suas teses principais. Ora, esse novo ensaio se tornou necessário face ao desafio encontrado na leitura de um artigo de Samo Tomšič que versa sobre o caráter antissocial da sociabilidade capitalista (2024).

Segundo Tomšič ambos esses autores investigam e expõem características centrais da sociedade moderna, mesmo se um deles enfoca essencialmente a sociabilidade da relação de capital e o outro a constituição da psique humana-social nessas condições históricas. Eis como ele apresenta o problema:

Continuar lendo

O fascismo como espectro resurgente

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Como é sabido o Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em 1848, inicia-se assim: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar” etc. etc. etc. Karl Marx e Friedrich Engels, é bem evidente, usaram o termo “espectro” como uma metáfora para falar de uma possibilidade real que, já na ascensão do capital industrial, assustava as burguesias e seus representantes no continente de nascimento do capitalismo. Se essa assombração tem assustado os donos do capital na história do capitalismo, não haveria também uma assombração que vem abismando a classe trabalhadora?

Samir Gandesha [2}, em seu esforço [3] para pensar o aparecimento dos novos extremismos de direita na cena política do século XXI (excertos de seu texto original são apresentados em sequência desta nota), sugere que sim; para esse autor há, sim, um outro espectro e ele vem ameaçando as forças da transformação desde os primórdios do capitalismo industrial. Por se antepor continuamente ao espectro do comunismo na história do capitalismo, considera que esse abantesma ressurge nas crises do sistema, especialmente quando elas se tornam crises do liberalismo. Se o fascismo faz sempre critica aparente ao sistema é porque subsiste como contrarrevolucionário.

Continuar lendo