A violência do tecnofascismo

Autor:  Franco ‘Bifo’ Berardi [1] – CTXT, tradução: Rôney Rodrigues

“Caliban: Você me ensinou a língua
e meu benefício é que eu sei amaldiçoar.
“A peste vermelha leva você por me ensinar sua língua.”
Shakespeare: A Tempestade

Colonialismo histórico: extrativismo de recursos físicos

A história do colonialismo é uma história de depredação sistemática do território. O objeto da colonização são os locais físicos ricos em recursos de que o Ocidente colonialista necessitava para a sua acumulação. O outro objeto da colonização são as vidas de milhões de homens e mulheres explorados em condições de escravatura no território sujeito ao domínio colonial, ou deportados para o território da potência colonizadora.

Não é possível descrever a formação do sistema capitalista industrial na Europa sem ter em conta o fato de que este processo foi precedido e acompanhado pela subjugação violenta de territórios não europeus e pela exploração em condições de escravatura da força de trabalho subjugada em os países colonizados ou deportados para países dominantes. O modo de produção capitalista nunca poderia ter sido estabelecido sem extermínio, deportação e escravidão.

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A genealogia incomum do conceito de capitalismo

Autor : Marcello Musto [1] – Sin Permiso – 20/10/2024

Embora Karl Marx seja considerado o principal crítico do capitalismo, ele raramente usou esse termo. A palavra também estava ausente dos primeiros grandes clássicos da economia política. Não só não tinha lugar nas obras de Adam Smith e David Ricardo, como também não foi usado nem por John Stuart Mill nem pela geração de economistas contemporâneos de Marx. Eles usaram o termo capital — comum desde o século XIII – mas não o termo capitalismo, que dele se deriva.

O termo capitalismo não apareceu até meados do século XIX. Era uma palavra usada principalmente por aqueles que se opunham à ordem existente das coisas, o qual tinha ademais uma conotação muito mais política do que econômica. Alguns pensadores socialistas foram os primeiros a usar essa palavra, sempre de forma depreciativa. Na França, em uma reedição da famosa obra L’organisation du travail, Louis Blanc argumentou que a apropriação do capital – e, através do próprio capital, do poder político – era monopolizada pelas classes abastadas.

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Sociabilidade associal: de Bentham a Sade

Autor: Samo Tomšič – Continuação de temática abordada em outro texto antes publicado neste blogue.

Marx, em O capital, criticou o liberalismo como a filosofia política que se assenta na aparência do modo de produção capitalista e que se constrói com base em ilusões que veem harmonia onde prevalece desarmonia. Eis o que escreveu ao final do capitulo 4 do livro I de sua magna obra:

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral.

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Sociabilidade associal: Marx e Freud

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Essa nota tem um caráter experimental. Faz-se aqui uma nova tentativa de encontrar um nexo entre as concepções de Karl Marx e Sigmund Freud, as quais são e não deixaram de ser heterogêneas entre si mesmas. E ela se segue à tentativa feita no artigo Capitalismo e pulsão de morte (2024). Sem pretender contrariá-lo, retoma-se a sua linha de pensamento e as suas teses principais. Ora, esse novo ensaio se tornou necessário face ao desafio encontrado na leitura de um artigo de Samo Tomšič que versa sobre o caráter antissocial da sociabilidade capitalista (2024).

Segundo Tomšič ambos esses autores investigam e expõem características centrais da sociedade moderna, mesmo se um deles enfoca essencialmente a sociabilidade da relação de capital e o outro a constituição da psique humana-social nessas condições históricas. Eis como ele apresenta o problema:

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O fascismo como espectro resurgente

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Como é sabido o Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em 1848, inicia-se assim: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar” etc. etc. etc. Karl Marx e Friedrich Engels, é bem evidente, usaram o termo “espectro” como uma metáfora para falar de uma possibilidade real que, já na ascensão do capital industrial, assustava as burguesias e seus representantes no continente de nascimento do capitalismo. Se essa assombração tem assustado os donos do capital na história do capitalismo, não haveria também uma assombração que vem abismando a classe trabalhadora?

Samir Gandesha [2}, em seu esforço [3] para pensar o aparecimento dos novos extremismos de direita na cena política do século XXI (excertos de seu texto original são apresentados em sequência desta nota), sugere que sim; para esse autor há, sim, um outro espectro e ele vem ameaçando as forças da transformação desde os primórdios do capitalismo industrial. Por se antepor continuamente ao espectro do comunismo na história do capitalismo, considera que esse abantesma ressurge nas crises do sistema, especialmente quando elas se tornam crises do liberalismo. Se o fascismo faz sempre critica aparente ao sistema é porque subsiste como contrarrevolucionário.

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Como funciona a propaganda fascista

Autor: Samir Gandesha [1]

Como se pode retomar atualmente a apresentação sociopsicológica de Adorno sobre a propaganda fascista? Existem basicamente três áreas nas quais as reflexões de Adorno são esclarecedoras: (1) populismo; (2) a análise dos “agitadores” contemporâneos; e, finalmente, (3) a indústria cultural. Antes de abordar estes temas é importante considerar primeiro as limitações de suas extraordinárias reflexões.

Como argumentei em outro lugar, as suposições sociológicas da apropriação de Freud por Adorno, especificamente o conceito de “capitalismo de Estado” de Pollock – segundo o qual o papel do Estado é administrar as tendências de crise do capitalismo – precisam ser repensadas no período caracterizado pela obsolescência do keynesianismo. Além disso, Adorno tinha uma confiança imediata no relato freudiano ortodoxo da teoria da pulsão e no conceito do conflito edipiano. Mas isso precisa também ser repensado e reconstruído para ir além, já que a ontologia atomística e hobbesiana de Freud não se encaixa particularmente bem com uma ontologia social que está em dívida com Hegel e Marx.

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A base subjetiva da propaganda fascista

Autor: Samir Gandesha [1]

A propaganda fascista é construída em torno do conceito básico do “‘pequeno-grande homem’, de um “sujeito” que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que vem a ser um “tipo” simples, de sangue vermelho e imaculado, alguém do próprio povo.”

É dessa forma que Adorno apresenta o conceito norteador da “personalidade autoritária”: aquele tipo de personalidade caracterizado tanto pela subordinação ao “forte” (barbeiro suburbano) quanto pela dominação sobre o “fraco” (King Kong). Nisso, a estrutura do caráter social reproduz a contradição que está no cerne da sociedade burguesa entre uma autonomia ou liberdade em teoria, mas heteronomia e falta de liberdade na prática. [N. T.: Eis que essa contradição engendra um “sujeito” fraco/forte, ou seja, que é fraco diante das forças do sistema econômico, mas que tem de ser forte para vencer na vida]. De acordo com Adorno, a imagem do “pequeno-grande homem” responde

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A massa fascista e o “pequeno-grande homem”

Autor: Samir Gandesha[1]

Não pode haver dúvidas hoje de que, após um longo período de dormência, elementos autoritários e, às vezes, francamente fascistas retornaram à vida pública com força total. Voltaram não apenas por toda a Europa, Reino Unido e Estados Unidos, mas globalmente, mais notavelmente na Turquia, Índia e Brasil.

A imagem visualmente mais chocante de tal retorno são os centros de detenção de migrantes que se espalham pelo sul da Europa. Mais notórios, são os “acolhimentos” de crianças centro-americanas negligenciadas e aterrorizadas, supostamente sujeitas a abusos psíquicos e sexuais, nos campos de concentração na fronteira sul dos Estados Unidos com o México.

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Identificação com o agressor: uma explicação para a adesão ao fascismo neoliberal

Autor: Samir Gandesha [1]

Pode-se dizer que o capitalismo neoliberal contemporâneo se caracteriza por duas notas negativas bem significativas: [aumento da desigualdade de renda e riqueza, e crescimento dos movimentos políticos de direita].

Observa-se, por um lado, um aumento impressionante na desigualdade social e econômica desde meados da década de 1970. Por exemplo, desde 1977, sessenta por cento do aumento da renda nacional dos EUA, conforme Piketty, foi canalizada para os dez por cento mais ricos da população. Dada a presente constelação de forças e tendências, tais como, por exemplo, o aumento do investimento em capital fixo e em inovação técnica que intensificam a automação, essa desigualdade só tenderá a aumentar nos próximos anos e décadas.

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A base estrutural das novas direitas

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Para explicar o fenômeno das novas direitas, assim como a sua ascensão vertiginosa no cenário político contemporâneo, Rodrigo Nunes, num artigo de grande qualidade (Nunes, 2024), aponta para a existência e persistência de um “operador ideológico” em sua base; para que ocorresse, segundo ele, era preciso que o seu crescimento fosse impulsionado pelo “empreendedorismo”. A base do fenômeno social aqui, portanto, é uma disposição psicopolítica.

Para que a aliança tácita de classe constitutiva desse movimento fosse posta, era necessário, segundo ele, que “algumas imagens e palavras produzissem uma identificação”. Só essa mediação tornou possível que interesses tão diversos, desde aqueles dos trabalhadores informais, de setores das classes médias até dos capitalistas financeiros, fossem soldados politicamente.

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