Sobre a suposta homologia do mais-de-gozar com o mais-valor

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Para tratar desse tema, vale-se de início de conteúdos que se encontram no livro Poder e política na clínica psicanalítica (Annablume, 2015) de Marcelo Checchia, um escrito longo, mas compreensível mesmo se proveio do teclado de um autor lacaniano. O que se fará é uma tentativa bem arriscada de entender um ponto difícil, atravessado por incertezas que se devem ao estilo do autor principal. Ademais, como bem de sabe, as noções da psicanálise não parecem estar ainda bem estabelecidas, o que dificulta muito o entendimento de qualquer ponto crucial de seu discurso.

O objetivo consiste em compreender criticamente a afirmação de Jacques Lacan de que haveria uma relação de homologia entre o mais-valor de Marx e a noção de mais-de-gozar proposta por ele mesmo. Contudo, não se pode compreender esse ponto polêmico se não se apreendeu antes o sumo da dialética da luta pelo reconhecimento que Georg Hegel apresentou na Fenomenologia do Espírito – essa luta, e isso é muito importante, consiste também, originalmente, numa contraposição entre vida e liberdade.

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A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (III)

Autor Samo Tomšič

A antissocialidade do capitalismo versus a sociabilidade da análise

Na citação inicial, antes apresentada, Lacan evoca a dialética hegeliana do senhor e do escravo, na qual o senhor é aquele que aposta sua existência numa luta de vida e morte. Enfrentando o risco, ele se põe como senhor não só de sua própria vida, mas também – e sobretudo – da vida dos outros que subordina. Ao transformar o adversário em seu escravo, o senhor simultaneamente triunfa sobre a morte. Mas Pascal não está preocupado com esse mito hegeliano da aposta inicial daquele que se transformará em mestre; na verdade, ele nos apresenta uma figura mais sofisticada e totalmente moderna do mestre.[1]

O mestre de Pascal não precisa apostar nada, porque o jogo que comanda delega o risco ao libertino, transformando-o num trabalhador compulsivo em prol de Deus. Transformado, o antes incrédulo deve trabalhar doravante para um Deus que é radicalmente indiferente ao sacrifício humano e cuja vontade não pode ser influenciada por nenhuma ação humana.

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A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (II)

Autor Samo Tomšič

O surgimento da fé a partir da compulsão de repetir

Depois de vincular a noção de mais-valor à transformação moderna do gozo, Lacan volta-se para Pascal e, em uma série de sessões do Seminário XVI, focaliza um detalhe específico dos Pensées de Pascal. Observa a notória aposta com que Pascal se empenha, por um lado, em desenvolver um argumento probabilístico para a existência de Deus e, por outro, em lançar luz sobre o mecanismo da conversão, a transformação do incrédulo em crente.

Se a ligação de Pascal com o capitalismo deve ser buscada em algum lugar, este vem a ser o vínculo – a princípio um tanto excêntrico – entre a questão da existência de um ser supremo e o jogo de aposta, na função estrutural dessa aposta e no surgimento da fé. A aposta, de fato, representa uma sofisticada mudança na tradição filosófica já que o esforço fundamental da filosofia sistemática consistiu sempre em fornecer provas sólidas da existência de Deus. Ao longo de sua história, a filosofia investiu muito esforço nessa empreitada, mas os resultados foram fracos; particularmente com o advento da ciência moderna, já que, por causa dela, a certeza da existência de Deus tem sido cada vez mais minada internamente pela dúvida ateísta.

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