A clínica psicanalítica é política

Autor: Samo Tômsic [1]

Este livro [2] desenvolve ainda uma linha de pensamento adotada num volume anterior.[3] Trata-se de uma discussão em curso sobre a atualidade da psicanálise para fazer uma crítica ao modo de gozo historicamente introduzido e imposto pela organização capitalista do trabalho social e da vida social, bem como do pensamento em geral. Minha preocupação tem se voltado para os esforços freudianos e lacanianos para elaborar algo que poderia ser chamado de crítica da economia libidinal.

Esta última, pode-se argumentar como base no envolvimento de Jacques Lacan com Karl Marx, pode ser considerada um componente essencial da crítica da economia política. Gostaria de iniciar o presente estudo referindo-me ao modo como o próprio Lacan definiu o significado político de sua disciplina:

A intrusão no político só pode ser feita reconhecendo que o único discurso existente, e não apenas o discurso analítico, é o discurso do gozo, pelo menos quando se espera dele o trabalho da verdade”.[4]

Nesta observação densa e, seguramente, um tanto enigmática, a primeira palavra já chama nossa atenção.

A psicanálise entrou na esfera do político como um intruso, um convidado não convidado ou mesmo um encrenqueiro, que perturbou o sono dos habitantes desse mundo e, portanto, encontrou resistência. No entanto, essa intrusão crítica não veio de fora, de algum lugar exterior aparente. Ocorreu mais como uma ruptura imanente ou como um curto-circuito que expôs algo inerente ao cerne da política, algo que até então permanecia desconsiderado: o papel problemático do gozo na constituição dos vínculos sociais e na reprodução das relações de poder.

Essa afirmação pode soar inusitada, até mesmo pretensiosa, já que um olhar mesmo superficial sobre a história do pensamento político europeu revela que a questão do prazer na política foi tematizada continuamente desde Platão e Aristóteles. Qual seria então a contribuição genuína da psicanálise para esse tópico? E, além disso, o que torna sua intervenção tão controversa que pode ser descrita como uma intrusão?

Uma indicação pode ser buscada no saber psicanalítico de que todo discurso é um discurso de gozo: não há gozo sem discurso e não há discurso que não seja um discurso de gozo.[5] Essa frase invoca algo semelhante ao famoso slogan de Lacan “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”: o gozo é articulado como um discurso – é um produto inevitável de laços simbólicos linguísticos, econômicos, religiosos, epistêmicos assim como outros, que afetam o corpo humano. Se todo discurso traz consigo a produção de gozo – algo que a clínica psicanalítica revelou em todos os seus aspectos problemáticos – isso implica que não há metadiscurso ou metalinguagem (para lembrar outro slogan lacaniano), nenhuma linguagem “pura” do ser além da linguagem “suja” do gozo.

Em contraste com essa perspectiva crítica da clínica psicanalista, há toda uma tradição filosófica engajada na busca de um discurso que não seria propriamente um discurso de gozo. Este é o papel que grande parte da filosofia atribuiu à lógica desde Aristóteles. Fundada no princípio da não contradição e no princípio do terceiro excluído, a lógica deve garantir a articulação consistente e significativa do pensamento.

A lógica visa colocar o pensamento e o conceito que ele elabora em correspondência com a realidade, evitando a contaminação do discurso com o sem sentido, o erro e a contradição. Isso vale tanto para os discursos científicos e filosóficos em sua produção de conhecimento e em sua busca pela verdade, quanto para o uso mais comum e cotidiano da linguagem. A lógica é entendida como a gramática fundamental do pensamento e uma cura contra as aberrações e os excessos da linguagem.

O gozo pode aparecer assim como um excedente errante e mesmo irracional, que desarticula a linguagem e o pensamento, que mina a sua consistência e, assim, ameaça corromper a ferramenta que sustenta as relações sociais intersubjetivas. Os esforços para manter a linguagem e o prazer separados entre si estendem-se até a linguística, o pragmatismo e a filosofia analítica do século XX. Tais formas de pensamento também continuam o esforço de fabricar uma linguagem que não seja nada mais e nada menos que comunicação, conforme o ideal regulador da expressão adequada.[6]

Daí o esforço da linguística, do pragmatismo e da filosofia analítica para estabelecer um discurso que seria outra coisa que um discurso de gozo, ou seja, o ideal de um discurso sem consequências. A cruzada contra o absurdo linguístico – pense em Ludwig Wittgenstein, Rudolf Carnap e, mais recentemente, a rejeição da ontologia e da filosofia especulativa por Noam Chomsky, autores que criticam o discurso do não sentido, portanto, do gozo – reflete a luta filosófica contra o gozo, pois este é o produto do discursivo indomável, de um falar que sempre parece vir sob a forma de um excedente desestabilizador ou de um resto parasitário.

Um discurso, que não se apresenta como um discurso de gozo, representa, em última análise, a ficção de uma linguagem completamente transparente, que põe o ser falante como mestre da linguagem. É aí que a psicanálise freudo-lacaniana intervém criticamente com sua descoberta de que os fenômenos inconscientes podem, em última instância, ser reduzidos a estruturas linguísticas e que as manifestações de gozo expõem uma dimensão de produção discursiva e, portanto, uma certa autonomia da linguagem. Claramente, esta descoberta aponta para além da questão pragmática de “como fazer coisas com palavras”.[7]

A citação de Lacan acima sugere que o vínculo entre gozo e discurso tem sido continuamente submetido à “mistificação” (para se expressar tomando emprestado um dizer típico de Marx). Isso se reflete na convicção de que o discurso e o gozo podem ser separados ou de que se pode alcançar os fundamentos sólidos da ordem simbólica, os fundamentos da linguagem, desvinculando-os do corpo falante e, portanto, dos efeitos-afetos problemáticos que ele provoca no próprio corpo.

Essa suposta separação, no entanto, dá origem a uma ficção dupla: não apenas apresenta um discurso transparente e sem consequências desestabilizadoras, mas também sustenta que há um gozo normalizado, dotado de equilíbrio, regulação e medida. Em contraste, a intrusão psicanalítica no político gira em torno da natureza disruptiva do gozo e do discurso. A noção freudiana do inconsciente representa o reconhecimento de que não há mestre verdadeiro do discurso, que nenhum sujeito pode dominar inteiramente a produção discursiva.

Mesmo que não haja mestre do discurso, há, no entanto, um discurso do mestre. Este consiste fundamentalmente numa expressão do domínio do ser falante privilegiado sobre outros. O que está em jogo aqui é o reconhecimento do significante em sua “autonomia absoluta”.[8] Eis que a produção do gozo aqui é uma manifestação concreta ou uma cristalização dessa autonomia no corpo falante.

A psicanálise certamente chamou a atenção para a existência do gozo discursivo ou, em outras palavras, para a dependência do gozo em relação à linguagem. Além disso, expôs um certo caráter explorador da produção de gozo. É aqui que entra em cena o mecanismo discursivo da repressão. De acordo com Sigmund Freud, a repressão é a base da política e da cultura em geral.[9]

Dito isso, a forma como Freud concebeu a repressão implica mais do que simplesmente afirmar que algo no campo político permanece oculto, distorcido ou inibido e que deve, portanto, ser desvelado, liberado ou plenamente atualizado. A repressão é provavelmente um dos conceitos freudianos mais incompreendidos porque evoca imediatamente imagens e cenários de opressão e luta. A relação entre repressão e opressão torna-se complicada assim que reconhecemos que Freud viu nesse mecanismo mental um tipo significativo de trabalho inconsciente: Verdrängungsarbeit, o trabalho de repressão, incumbido de nada menos do que da produção de gozo.[10]

Embora a repressão certamente condicione a opressão, ela ainda representa um processo mais fundamental, uma operação produtiva, que ao fim e ao cabo traz a ordem discursiva e cultural à existência. Em outras palavras, a repressão mostra que a ordem política e cultural se constitui sobrepondo-se a uma resistência fundamental. Essa resistência constitutiva da cultura (e mais ainda da ordem simbólica como tal) precede todo objeto de resistência e produz a diferença entre resistência e aquilo que resiste (por exemplo, a diferença entre natureza e cultura). Isso é o que Freud chamou de repressão primal (Urverdrängung).

Uma vez que Freud reconheceu o caráter produtivo do recalque, este passou a designar um modo específico de gozo, ou seja, a economia libidinal mais comum; passou também a explicar o caráter intrusivo e involuntário do gozo em geral.[11] A repressão expôs uma discrepância entre o modo como uma ordem discursiva aparece para seus observadores, por um lado, e o modo como essa mesma ordem captura os sujeitos ao incorporá-los em uma organização de gozo estritamente determinada, por outro. Aqui novamente nos deparamos com o aspecto intrusivo da psicanálise, na medida em que a teoria e a prática de Freud revelam no gozo o modo como os indivíduos sustentam e reproduzem compulsivamente a ordem socioeconômica estabelecida mesmo em seus aspectos mais exploradores:

Caracterizar o discurso do mestre como constituído de uma verdade oculta não significa que esse discurso esteja oculto, que esteja bem escondido. A palavra caché [que significa “escondido” em francês] tem suas virtudes etimológicas. Vem de coactus, dos verbos coactare, coactitare e coacticare. Isso significa que há algo que está comprimido, que se encolheu dada uma sobreposição, algo que precisa ser desdobrado para ser legível.[12]

O interessante na formulação de Lacan é que ela rejeita a convicção segundo a qual as próprias relações problemáticas de dominação e exploração que elas sustentam estariam ocultas. Estão aí, à vista de todos: o discurso do mestre não esconde o que é ou o que quer. O que fica oculto é o vínculo entre exploração e gozo, a reprodução das relações de dominação por meio da produção de gozo.

As estruturas sociais que produzem desigualdade, injustiça e exploração se encontram sempre combinadas com um modo subjetivo de gozo, o qual é estritamente determinado; portanto, o gozo nunca é puramente subjetivo (o assunto privado do sujeito) ou voluntário (da escolha privada do sujeito). Em seu gozo aparentemente privado, os sujeitos trabalham para o sistema. A psicanálise expôs assim o nexo explorador que existe entre poder e gozo.[13] A questão da relação entre trabalho e gozo será tratada mais abaixo.

A etimologia latina da palavra francesa “caché” traz um olhar crítico sobre o caráter involuntário e intrusivo do discurso e do gozo a ele associado: coactus (compulsão, constrangimento, coerção e o forçar). A verdade oculta nessa questão diz respeito, portanto, a uma característica fundamental do discurso: a compulsão à repetição, a força das estruturas linguísticas e econômicas e seu poder determinante sobre os pensamentos e as ações do sujeito social.

O conceito freudiano de inconsciente pretendia teorizar esse funcionamento compulsivo do discurso no ser falante. Do mesmo modo, a clínica analítica lida com as consequências danosas da compulsão discursiva, ou melhor, do discurso como compulsão. A psicanálise aqui dá uma reviravolta importante no famoso slogan da segunda onda do feminismo, que foi posteriormente adotado pelos partidários da política de identidade: “O pessoal é político”.[14]

Em vez de partir de uma identidade subjetiva positiva, que distingue um grupo político de outro, a psicanálise invade o político ao expor um dano subjetivo universal, resultado da compulsão discursiva. Freud registra no sintoma (ou mais geralmente na doença psíquica) uma conexão específica entre o caráter aparentemente singular do caso clínico e as características problemáticas da ordem socioeconômica ou condição cultural predominante.

O político não é mais examinado do ponto de vista de uma hipotética figura abstrata da subjetividade universal (sujeito transcendental, consciência, homo oeconomicus, homo legalis, sujeito da comunicação etc.) ou da perspectiva de uma identidade particular. Cada uma dessas perspectivas acaba ficando presa na ficção de um discurso que não seria um discurso de gozo. Em vez disso, Freud e Lacan investigam o político a partir de uma “subjetividade danificada”, que assume em seu trabalho crítico e clínico o status de sintoma social. Como Lacan observou ocasionalmente, “o inconsciente é político”.[15]

Isso significa, antes de tudo, que o sujeito do inconsciente deve ser reconhecido como sujeito político. Se a clínica psicanalítica nunca se fecha inteiramente na singularidade de um caso clínico e se desdobra sempre-já no político, então suas lições teóricas e práticas dizem respeito diretamente ao terreno comum negativo de todos os sujeitos.

Dito de outro modo, se para Marx os indivíduos eram “personificações de categorias econômicas, portadores de relações de classe e de interesses particulares”[16], personificações das abstrações que sustentam o modo de produção capitalista, para Freud e Lacan distintamente, esses mesmos indivíduos são personificações das disfunções e das contradições estruturais; eis que os seus sintomas nunca se desvinculam do quadro social e seu sofrimento aparentemente pessoal sempre-já enuncia uma certa verdade da condição socioeconômica.

O peso político da psicanálise, pelo menos em seu aspecto freudo-lacaniano, consiste no esforço de organizar os pensamentos e ações do sujeito em torno de uma tentativa de trabalhar a estrutura que condiciona o seu adoecimento psíquico. Por um lado, a psicanálise desconstrói a identidade do sujeito e, ao fazê-lo, revela o terreno fantasmático de toda política identitária; por outro lado, esboça algo que de fato merece ser chamado de política da não-identidade,[17] politizando a não-identidade e a alienação inscritas no sujeito como o ponto em que o subjetivo e o social, o pessoal e o político formam um continuum estrutural.

A identidade é substituída pela identificação – mais especificamente pela identificação com sintoma,[18] portanto, com uma formação simbólica, no nível em que a não-identidade permanece um componente essencial da identidade do sujeito (ou de um grupo). Em contraste, as versões liberais de hoje da política de identidade defendem a purificação da identidade em relação à não-identidade, enquanto sua apropriação racista e sexista mostra abertamente a projeção da diferença no outro (cultural, sexual, étnico etc.). Nessa projeção, a diferença e, portanto, o outro, é abertamente concebido como uma ameaça, que precisa ser abolida.

Sem surpresa, em tal cenário político, as identidades são sustentadas pela fantasia de uma subjetividade organicamente inteira, plenamente constituída e estável. Pode-se também argumentar que a política de identidade contemporânea, em última análise, resume-se à identificação com uma fantasia identitária. Portanto, do ponto de vista da teoria psicanalítica do sujeito, “o pessoal é político” deve ser complementado com “o clínico é político” – eis que o ponto principal nessa formulação é que o clínico não é redutível ao pessoal. O inconsciente representa a manifestação do impessoal dentro do que parece ser pessoal.

Lacan viu na psicanálise não apenas uma intrusa, mas também uma inversão (envers) do discurso do mestre. Na tentativa de subverter o domínio que sustenta o modo de produção capitalista e neutralizar as suas consequências danosas,[19] a psicanálise sempre teve que lutar contra uma resistência organizada que desafia os seus esforços teóricos e clínicos. Essa resistência certamente conseguiu “reeducar”, neutralizar ou integrar muitas escolas psicanalíticas de acordo com a doutrina econômica capitalista e seus imperativos sociais.

No entanto, isso não implica que a psicanálise tenha perdido todo o seu significado crítico, político e subversivo. Este último tem sido reclamado sempre – sempre de novo. O que é necessário é uma contratendência, entre outras coisas sob a forma de um “retorno a Freud”, tal como Lacan descreveu seu próprio projeto. Ao fazê-lo, ele demonstrou que a psicanálise é o local de uma luta política que está em curso. Essa luta pode certamente assumir a aparência de um conflito epistêmico (oposição à medicina, à psiquiatria, às neurociências etc.), mas, em última análise, gira em torno das implicações políticas da “verdade oculta” revelada pela teoria e prática freudianas. O retorno a Freud representa a radicalização, pela repetição, dos fundamentos e perspectivas epistemológicos, críticos e políticos da psicanálise.

Os esforços teóricos e clínicos de Freud desde o início circularam em torno da ligação entre discurso, gozo e trabalho. Ou seja, dito isso, não seria ilegítimo considerar Arbeit (trabalho, labor) um conceito psicanalítico fundamental. Freud não apenas definiu a multiplicidade de processos inconscientes e operações intelectuais, como condensação e deslocamento do material do pensamento em termos de trabalho (neste aspecto, Freud de fato merece ser lido como um teórico do trabalho intelectual), ele também concebeu a psicanálise como trabalho transformador sobre as condições estruturais que sustentam o modo de gozo do sujeito. Trata-se este de um trabalho sobre – mas também contra – a resistência estrutural, o qual ele chamou de Durcharbeiten, isto é, trabalho de elaboração).

A tarefa principal do trabalho inconsciente consiste em produzir gozo, mesmo se essa produção implica num consumo problemático de atividades mentais, na medida mesmo em que empurra o sujeito até a Verausgabung. Eis que essa palavra alemã descreve com mais propriedade o problema em questão, pois representa tanto o dispêndio econômico de “energia” quanto o esgotamento físico e mental, reunindo assim o aspecto social e o subjetivo dos danos efetuados pela compulsão discursiva. No cerne do vínculo entre trabalho inconsciente e gozo está a contradição entre a demanda de gozo e a exaustão do sujeito por meio do consumo.

Falar do “trabalho da verdade”, como fez Lacan em nossa citação inicial, aponta diretamente para a verdade do trabalho. É aqui que a percepção de Marx de que a invenção capitalista do trabalho abstrato, que transformou todas as atividades humanas produtivas em processo de exploração, torna-se mais relevante para a psicanálise. Pois Marx também vislumbrou o caráter compulsivo da produção e até associou essa compulsão ao impulso capitalista de acumulação.[20]

Em contraste com a economia política clássica, a compreensão de Marx sobre os fundamentos lógicos e estruturais da produção mostrou o caráter contraditório central do capitalismo e, ao mesmo tempo, o caráter compulsivo das leis e imperativos econômicos. Freud estendeu a mesma visão crítica à questão do gozo: para tratar os distúrbios subjetivos e compreender suas reais causas materiais, deve-se considerar a tensão no vínculo entre trabalho e gozo, que se cristaliza no fenômeno da compulsão à repetição. Ao fazê-lo, inevitavelmente, deparou-se com o componente libidinal da exploração social que Marx já havia detectado no capitalista, isto é, o “conflito faustiano entre o impulso de acumulação [Akkumulationstrieb] e o impulso de gozo [Genusstrieb]”.[21]

O fato de Marx usar a palavra Trieb não deve ser subestimado. A pulsão de acumulação e a pulsão de gozo reproduzem o mesmo “conflito faustiano” que a pulsão de morte e a pulsão sexual em Freud. Mas, em vez de ver aqui um conflito entre duas tendências opostas, deve-se seguir a sugestão de Lacan de que o que está em jogo é uma cisão no interior de uma mesma pulsão. Em última análise, isso permitiu a Lacan reconhecer no mais-valor a forma especificamente capitalista de gozo discursivo.[22]

O exame psicanalítico do vínculo entre gozo e exploração expôs dois fenômenos, nos quais tanto Freud quanto Lacan fundamentaram sua visão política: o descontentamento (Unbehagen) e a resistência (Widerstand). Ao falar de descontentamento cultural (Unbehagen in der Kultur) Freud acabou por conceber a cultura em geral e o capitalismo em particular como uma doença organizada ou como um laboratório de psicopatologias. Ao invés de criar as condições para a busca da felicidade – esse ideal social e subjetivo compartilhado por doutrinas éticas tão diferentes quanto a Eudaimonia de Aristóteles, o utilitarismo de Bentham e o neoliberalismo contemporâneo com seu imperativo de felicidade –, as demandas culturais, as instituições e os seus mecanismos causam traumatismo, ansiedade e exaustão para o sujeito.

A etiologia freudiana das neuroses partiu da afirmação crítica de que as organizações sociais como a família, a igreja ou o exército, bem como os processos desestabilizadores como a exploração, a guerra e a crise, desempenham o papel fundamental na gênese e proliferação das neuroses. As visões psicológicas e econômicas predominantes ainda tendem a tratar os “transtornos mentais” como algum tipo de propriedade privada negativa, desconectada do modo de produção social, das condições culturais e dos imperativos econômicos. Em contraste, a psicanálise nos fornece as ferramentas conceituais para uma completa desprivatização dos complexos e doenças psicopatológicas, demonstrando que eles assumem o status de sintomas sociais. Este é o sentido crítico da afirmação de que há apenas um discurso de gozo. A doença mental aparece como dano colateral, que acompanha inevitavelmente a reprodução da condição social.

Em contraste com as várias imagens e ideais que afirmam uma subjetividade forte, normal ou abstrata, que vem sendo fabricadas pela filosofia, psicologia, economia etc. ao longo da história, a psicanálise encontra a subjetividade política na forma da vida danificada ou do ser alienado. Nisso, também, a crítica freudiana da economia libidinal se cruza mais abertamente com a crítica marxista da economia política.

Não é de admirar, então, que as construções teóricas e as práticas clínicas de Freud, que lhe forneceram material para sua crítica radical da cultura, fossem tudo menos do que bem-vindas nos meios científicos e culturais. A psicanálise foi recebida com rejeição. E os contínuos confrontos de Freud com o problema da rejeição sugerem que a cultura não é apenas uma doença organizada, mas também uma resistência organizada – em primeiro lugar, resistência à crítica, que visa descobrir os fundamentos podres e o impacto prejudicial da organização da produção social e do gozo subjetivo.

Além disso, Freud mostrou que essa resistência assume a forma privilegiada de resistência à mudança, uma inércia estrutural subjacente, que sabota todas as tentativas de trabalho transformador organizado em determinadas condições sociais, estruturas e instituições. Para Freud, a situação é comparável à dos analisandos, que recusam a ajuda do analista, sabotam o desenrolar da cura e, em vez de enfrentar o cerne de seus problemas, se refugiam na doença.[23]

A teoria das pulsões de Freud está no cerne do reconhecimento de que todo discurso é um discurso de gozo. Uma complicação significativa já aparece ao nível da tradução de ambos os termos em questão. “Lust” em alemão certamente significa prazer, mas também abrange fenômenos involuntários e incontroláveis, como a luxúria (“lust” em inglês). Lacan traduziu “Lust” com o termo “jouissance” (gozo)para reforçar o questionamento freudiano de nossa compreensão cotidiana do prazer em termos da sensação corporal, prazer que acompanha a satisfação das necessidades fisiológicas (uma compreensão errônea que, apesar de todos os esforços críticos, continua a persistir).

A tradução de Lacan pode não ter sido inteiramente bem-sucedida porque introduziu uma diferença que não estava presente em Freud: entre o prazer, uma afecção do corpo que acompanha a diminuição da tensão e a satisfação de necessidades presumivelmente naturais, e o gozo, uma afecção do corpo associada com o aumento da tensão e a satisfação do impulso. A perspectiva crítica de Freud sobre o prazer consistia em pensar a tensão entre os dois momentos em uma mesma afecção corporal. Ao fazê-lo, Freud abandona eventualmente o conceito homeostático e relacional de prazer, o qual pode ser historicamente rastreado até Aristóteles, substituindo-o por uma concepção entrópica e não-relacional.

Outro equívoco, que se tornou também um problema de tradução, diz respeito ao alemão Trieb, para o qual James Strachey, editor e tradutor de Freud para o inglês, escolheu a palavra “instinct”. A tradução de Strachey reforçou a convicção de que o Trieb de Freud está em continuidade direta com o arcabouço fisiológico e biológico, no qual a noção surgiu pela primeira vez no final do século XVIII; eis que ao longo do século XIX designava de fato uma força natural instintiva, ao invés de uma força eminentemente simbólica, que está diretamente ligada ao caráter compulsivo do discurso.

O próprio Freud contribuiu para esse mal-entendido, já que seus trabalhos anteriores partiam da ideia de proibição e, consequentemente, do conflito entre pulsões e cultura, que de uma forma ou de outra reproduzia a oposição entre natureza e cultura. Deste ponto de vista, todos os distúrbios e patologias subjetivas presumivelmente surgiam do fato de que as demandas, instituições e mecanismos culturais reprimiam, inibiam ou proibiam a satisfação imediata das forças e inclinações naturais dos seres humanos. Isso de fato está em correspondência ao regime da “hipótese repressiva” que Foucault, assim como a esquerda freudiana, criticou em Freud.[24]

Entendida como “força constante”,[25] a pulsão em todo caso não precede a ordem simbólica, mas é seu produto específico. Ela reapresenta sobre uma forma não-natural um estímulo fisiológico ou uma necessidade corporal. Isso significa que a pulsão representa algo diferente de uma tradução simbólica mais ou menos fiel de um estímulo fisiológico, instinto ou necessidade. A pulsão substitui efetivamente a necessidade como formação simbólica, isola seu aspecto imperativo e vem na forma de uma demanda virtualmente infinita de prazer pelo prazer.

Como força constante, a pulsão representa a afecção perpétua do corpo, um estímulo constante. Consequentemente, o prazer não é uma afecção corporal que acompanharia a satisfação de alguma necessidade presumivelmente natural como um subproduto fisiológico mais ou menos acidental, mas é produzido por meio do aparelho simbólico, produto de um trabalho ininterrupto. Deste ponto de vista, a linguagem finalmente aparece como uma fábrica de gozo.

Aqui nos deparamos com um problema que é mais bem exemplificado por meio da mudança na teoria do gozo de Lacan: da proibição à imposição, da repressão à produção, da contingência à necessidade, onde o gozo se torna um dever (daí a identificação recorrente de Lacan do superego com o imperativo de gozo). Foi por isso que Lacan viu no sadismo (e não no masoquismo) a perversão dotada de potencial crítico.

O masoquismo ainda supõe que o gozo poderia ser separado da exploração; eis que poderia ser obtido na forma de gozo contratual, ou seja, por meio de um acordo simbólico entre o masoquista e o dominador. O sadismo, por outro lado, revela o caráter compulsivo, involuntário, forçado e não-relacional do gozo, como os romances do Marquês de Sade demonstram sobejamente. A esse respeito, a suposição masoquista de que existe um contrato libidinal, que prescreve e regula o gozo, falha tanto quanto as filosofias do contrato social e as teorias do contrato econômico.

Perversões como o sadismo e o masoquismo mobilizam abertamente o vínculo entre gozo e exploração, giram em torno do investimento libidinal nas relações de exploração. Em contraste, a neurose representa uma expressão de protesto contra a organização da economia libidinal sobre o pano de fundo de estratégias de exploração. Gilles Deleuze e Felix Guattari, por outro lado, reconheceram na esquizofrenia – e não na neurose – o sintoma social privilegiado.[26]

Em sua polêmica argumentaram que a psicanálise participava da neurotização da subjetividade característica do capitalismo e, consequentemente, que Freud permanecia cego ao papel de suas próprias teorias na reprodução das relações capitalistas de produção. Desnecessário dizer que a premissa do presente livro é que a psicanálise é, em primeiro lugar, uma teoria crítica da produção social da vida danificada. Como prática clínica, visa fornecer ao sujeito pelo menos o mínimo de terreno para trabalhar os efeitos danosos do modo de produção capitalista em particular e da condição cultural em geral. Esta pode ser uma leitura otimista ou uma tentativa de pensar filosoficamente que ainda vale a pena lutar na psicanálise.

Olhando para trás na história do pensamento político e econômico, rapidamente se observa que a questão do prazer sempre acompanhou as meditações sobre a ordem social justa. Poder-se-ia, seguramente, muito grosseiramente, isolar três grandes paradigmas teóricos na história das tentativas de pensar a relação entre economia libidinal e social: Aristóteles, Adam Smith e Freud, ou mais genericamente, filosofia, economia e psicanálise. O que os distingue é que tanto Aristóteles quanto Smith partem da aposta conceitual de que há algo como uma medida [boa] de prazer ou que o prazer contém proporcionalidade e equilíbrio imanentes.

Freud, ao contrário, parte da desmedida constitutiva do prazer,[27] sem, contudo, rejeitar o seu caráter lógico. É para demonstrar a ligação entre prazer e homeostase que Aristóteles introduziu sua noção de boa medida. Esta última acaba por ser uma mera suposição, o que prova ao final que existem apenas aproximações para a verdadeira vida ética. Com efeito, o pensamento de Aristóteles habita um “mundo de aproximação”. Nesse mundo de imprecisão, a ética não pode se inscrever no regime do conhecimento. E o mesmo impedimento vale também para o prazer: não há ciência do prazer.

Pode parecer que no moderno “mundo da exatidão” as coisas se transformaram.[28] A economia política insistiu em sua noção de interesse privado – nome que Adam Smith deu à tendência de todos os sujeitos econômicos de buscar o lucro (que é uma figura crucial do prazer). Ele representa, para ele, o núcleo quantificável de nosso ser individual. Além disso, no universo moderno da exatidão, a medida última do prazer não é tanto o interesse privado quanto o próprio valor econômico. No capitalismo, valor e prazer finalmente parecem se sobrepor inteiramente: nenhum prazer parece ser possível fora da forma mercadoria e da forma valor.[29]

Desse modo, o prazer finalmente parece ter se tornado um objeto da ciência. O capitalismo também finge que encontrou no valor a medida última do ser. O assunto é traduzido em dados positivos por meio de métodos estatísticos, procedimentos de avaliação e mineração de dados, que supostamente visam não uma média fictícia e abstrata, mas uma universalidade real quantificável que é suscetível de valorização e pertence a todos os assuntos particulares. Medir os sujeitos e, ao fazê-lo, transformá-los em fonte de valor (força de trabalho), portanto, em fonte de gozo sistêmico, é o objetivo final da política capitalista.

A premissa norteadora do presente volume é que Marx e Freud se unem em algo que poderia ser chamado de política do trabalho de elaboração, em contraste com dois influentes paradigmas da política libidinal: a política da felicidade (Aristóteles) e a política do narcisismo (Adam Smith). O retorno a esses dois paradigmas pré-freudianos em matéria de economia libidinal, que abre o presente volume (Capítulo Um), expõe a mudança de status do prazer na história da economia e da filosofia política entre a pré-modernidade e a modernidade.

O livro [que aqui se apresenta] então se volta para a crítica psicanalítica do gozo (capítulo dois) e mais particularmente para sua crítica do narcisismo (capítulo três) para reconhecer no amor-próprio uma formação reativa – e não uma condição fundamental do sujeito humano (pondo-se, portanto, em oposição a liberalismo econômico e neoliberalismo que declaram sua dívida com a teoria do sujeito de Adam Smith).[30] O narcisismo já é uma tentativa fracassada de superar a persistência da alienação enquanto condição do ser subjetivo. Ao contrário da maioria do pensamento filosófico, político e econômico, a radicalidade da psicanálise de Freud e da crítica da economia política de Marx deriva de seu pleno reconhecimento da alienação como um processo, que é constitutivo do sujeito e não necessariamente carrega apenas conotações negativas.

Nesse sentido, Marx e Freud estão na outra ponta de um desenvolvimento histórico, que remete à dúvida metodológica de Descartes, a primeira mobilização sistemática da alienação na história da filosofia e o início da história conceitual da alienação (capítulo quatro). O ápice dessa história é, sem dúvida, a filosofia de Hegel, na qual o falar e o trabalho são pela primeira vez reconhecidos como processos de alienação constitutiva.

Ao passar do narcisismo para a alienação, o presente volume retorna à discussão de Marx sobre a acumulação primitiva a partir da perspectiva do endividamento sistêmico. É aí onde está ancorada a gênese histórica da forma capitalista de alienação e, mais geralmente, a exploração capitalista da alienação (capítulo cinco). A última parte deste volume volta-se então mais sistematicamente para o status do trabalho na psicanálise, a fim de examinar o núcleo crítico da teoria e da prática clínica de Freud, o nexo pensamento-trabalho-prazer (capítulo seis). Este tópico está diretamente ligado ao fenômeno da resistência (capítulo sete), que é de fato um problema crucial tanto para a psicanálise quanto para a política radical de esquerda.

O que é mais desafiador na resistência é seu caráter impessoal, estrutural e sistêmico, mais do que seu aspecto psicológico, sua aparência ou manifestação. Esses dois problemas – trabalho e resistência – são particularmente perspicazes para entender o caráter intrusivo e radical das descobertas psicanalíticas e seu engajamento com a política. Trabalho e resistência também demonstram que politicamente os aspectos mais carregados da psicanálise são seus impasses epistemológicos e clínicos: a questão do fim da análise (e consequentemente o caráter impossível da profissão de psicanalista) e o problema da pulsão de morte (cuja concepção traz junto as lições de resistência estrutural). Esses impasses psicanalíticos são de fato indispensáveis para obter um quadro completo dos problemas que a esquerda deve enfrentar repetidamente.


Notas

[1] Samo Tomsic é pesquisador do laboratório interdisciplinar Bild Wissen Gestaltung, na Universidade de Humboldt, em Berlin. Em 2015, escreveu The capitalism unconscius: Marx and Lacan, Verso, 2015.

[2] N. T.: The Labour of enjoyment – towards a critique of libidinal economy. August Verlag, 2019.

[3] Samo Tomšič, The capitalistic…

[4]Jacques Lacan, Seminar, Book XVII, The Other side of Psychoanalyse, Nova York: Norton 2006, p. 78.

[5] Anotação: o dito “todo discurso é um discurso de gozo” ecoa a descrição de Lacan do discurso como um “aparelho de gozo” e do significante, esta unidade elementar da linguagem, como “causa do gozo”. Ver Jacques Lacan, Seminar, Book XX, Encore, Nova York: Norton 1999, p. 24 e p. 55

[6]  Em seu ensino mais recente, Lacan considerou o objeto epistêmico da linguística (le langage, linguagem) uma reflexão do conhecimento sobre a linguagem (élucubration du savoir sur lalangue). Sua crítica é a seguinte: “Comunicação implica referência. Mas uma coisa é clara – a linguagem é meramente o que o discurso científico elabora para dar conta do que chamo de “lalangue” [alíngua]. A linguagem serve a propósitos completamente diferentes daquele da comunicação. É o que nos mostrou a experiência do inconsciente… Se a comunicação se aproxima do que efetivamente funciona no gozo da linguagem, é porque a comunicação implica uma resposta, ou seja, um diálogo. Mas a linguagem serve, antes de tudo, ao diálogo? Como eu disse antes, nada é menos certo.” Lacan, Encore, p. 138. Ao reduzir a linguagem à comunicação, a linguística ignora um desequilíbrio e uma inadequação subjacentes à linguagem. Ao fazê-lo, minimiza o fato de que “a linguagem nos afeta antes de tudo por tudo o que traz consigo por meio de efeitos que são afetos”. Ibid., pág. 139.

[7] Austin, John L. – How to Do Things with Words, Oxford: Oxford University Press 1976. A teoria da performatividade linguística parece dar conta da produção linguística, ainda que insuficientemente, pois ainda pressupõe uma agência humana consciente ou uma intencionalidade subjetiva que manipula a linguagem e as palavras. A problemática psicanalítica do gozo, por outro lado, aponta para além do “princípio da performatividade”. Eis que requer uma teoria materialista da linguagem, que parte do reconhecimento da autonomia do significante e, assim, inverte a relação entre este e o sujeito. Segundo Lacan, tal teoria materialista deve ser acoplada ao marxismo. Ver Jacques Lacan, Autres Écrits, Paris: Seuil 2001, pp. 208-209.

[8] Ibidem, p. 403-404.

[9] Segundo a crítica de Michel Foucault, a noção freudiana de repressão ainda pressupõe uma relação de poder centralizada e vertical, enquanto sua própria obra se esforçou para reconhecer a natureza descentralizada do poder, notadamente nas condições introduzidas pela modernidade capitalista. Para uma visão direta dos problemas que acompanham a crítica de Foucault a Freud, ver Alenka Zupančič, “Biopolitics, Sexuality and the Unconscious”, Paragraph, nº 39 (2016), pp. 49-64.

[10] Para um relato mais detalhado da repressão e dos problemas que acarreta, ver Sigmund Freud, “Repression”, em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. 14, Londres: Vintage Books 2001, p. 146-157.

[11]  Para ser mais exato, para Freud a repressão representa o Triebschicksal mais comum, o destino da pulsão, a sua fixação. Outros destinos são a conversão da pulsão em seu oposto (por exemplo, da atividade para a passividade), o giro sobre o próprio sujeito (por exemplo, no masoquismo) e a sublimação. Ver Freud, “Instincts and their Vicissitudes”, em: Standard Edition, vol. 14, pág. 117-139.

[12] Lacan, The Other side or Psychoanalysis, pp. 78-79

[13] Foucault falou notoriamente de saber-poder, que poderia ser descrito como a forma moderna de fruição do poder. Para Foucault o saber-poder era de fato a característica definidora da modernidade e serviu para designar o nexo político da ciência experimental e a lógica do capital, o regime cumulativo do conhecimento e o regime cumulativo do valor. Aliás, no Seminar XVII, contemporâneo ao engajamento de Foucault com o saber-poder, Lacan definiu o conhecimento como meio de fruição, em forte referência à noção econômica de meios de produção de Marx.

[14] O slogan apareceu pela primeira vez no famoso texto de Carol Hanish, “The Personal is Political”, http://www.carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html (acessado em 29/06/18). Não é por acaso que a principal luta do feminismo da segunda onda evoluiu em torno do problema da reprodução, já que essa forma essencial de trabalho não remunerado é o principal processo compulsivo a que as mulheres foram submetidas no capitalismo. Para um relato histórico e crítico completo da violenta restrição da subjetividade feminina ao seu presumível destino anatômico, ver Silvia Federici, Caliban and the Witch, New York: Autonomedia, 2004.

[15] Jacques Lacan, Le Seminar, livro XIV, La logique du fantasme (inédito), 17/5/67.

[16] Karl Marx, Capital, vol. 1, Londres: Penguin, 1990, p. 92.

[17] Estou tomando emprestado o termo de Moya Lloyd, Beyond Identity Politics, London: Sage 2005, p. 160.

[18] A identificação com o sintoma era, segundo Lacan, um resultado possível da análise em geral: “Com o que, então, nos identificamos ao final da análise? Identificamo-nos com o nosso inconsciente? Não acredito nisso, porque o inconsciente permanece – não digo eternamente por que não há eternidade – permanece o Outro… Em que consiste essa marcação que é a análise? Seria – ou não seria – identificar-se… com o próprio sintoma?” Jacques Lacan, “Séminaire du 16 de novembre, 1976”, Ornicar? 13/12 (1977), p. 6.

[19] “Quanto mais santos, mais risos; esse é o meu princípio; a saber, a saída do discurso capitalista – que não constituirá progresso, se acontecer apenas para alguns”. Jacques Lacan, Television, Nova York: Norton 1990, p. 16. A citação quase não deixa dúvidas de que o valor crítico da psicanálise consiste na passagem do “para alguns” rumo ao “para todos”, portanto da singularidade clínica para a universalidade política e, consequentemente, da política identitária (que inevitavelmente permanece uma política de segregação “para alguns”) à política não-identitária (que se esforçaria para se tornar uma política comunista “para todos”). Lacan se refere à figura do santo para ilustrar a posição limite do analista tanto no processo analítico quanto no quadro social mais amplo: o analista santo como refugo do gozo (rebut de la jouissance, recusa e desperdício). Nesse exato aspecto, a posição do analista em relação ao gozo do sistema inverte, por um lado, a posição do neurótico e, por outro, representa o ponto final do processo analítico (dado que para Lacan não havia distinção entre análise didática, formação de analistas e análise de casos clínicos, cura de pacientes). Para um extenso comentário sobre o significado político do “para todos” psicanalítico, ver Jelica Šumič, “La politique et la psychanalyse: du pas-tout au pour tous”, em: Jelica Šumič (ed.), Universel, singullier, suject, Paris: Editions Kimé, 2000, pp. 129-158.

[20] Por exemplo, Marx fala da “compulsão para realizar trabalho excedente” (Marx, O Capital, p. 1026). Em outro lugar, ele diz em relação ao impulso de enriquecimento algo que poderia de fato ser chamado de compulsão à repetição: “Somente como uma personificação do capital é o capitalista respeitável. Como tal, ele compartilha com o avarento um impulso absoluto para o auto enriquecimento. Mas o que aparece no avarento como a mania de um indivíduo, no capitalista surge como o efeito de um mecanismo social no qual ele é apenas uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista torna necessário aumentar constantemente a quantidade de capital investido em uma determinada empresa industrial, e a concorrência subordina cada capitalista individual às leis imanentes da produção capitalista, como leis externas e coercitivas. Ela o compele a continuar expandido o seu capital para preservá-lo; ora, ele só pode expandi-lo por meio da acumulação progressiva” (ibid., p. 739).

[21] Ibid., pág. 741. Trad. modificado.

[22] O mais-valor aponta diretamente para a vicissitude moderna da pulsão (Triebschicksal) que Lacan associou ao recalque, entendido este em termos de “renúncia ao gozo”. Ver Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XVI, D’un Autre à l’autre, Paris : Seuil 2006, p. 17. Aqui, também, Lacan retoma um insight formulado por Marx: “Enquanto o capitalista do tipo clássico classifica o consumo individual como um pecado contra a sua função, como “abstinência” do ato de acumular, o capitalista mais moderno é capaz de ver a acumulação como “renúncia” de seu impulso de gozo [Genußtrieb]. Além disso, o capitalista enriquece, não como o avarento, na proporção de seu trabalho pessoal e consumo restrito, mas na mesma proporção em que espreme a força de trabalho de outros, obrigando o trabalhador a renunciar a todos os prazeres da vida”. Marx, Capital, pp. 740-741.

[23] Flucht in die Krankheit (ida para a doença) e Krankheitsgewinn (ganho com a doença) são dois fenômenos clínicos que Freud associa intimamente à resistência à psicanálise. No final das contas, a tendência ao ganho de gozo na estrutura libidinal e econômica – a pulsão – é a fonte última de resistência.

[24] Ver Michel Foucault, The History of Sexuality, vol. 1: An Introduction, New York: Vintage Books 1990, pp. 15-35.

[25] Freud, “Instincts and Their Vicissitudes”, Standard Edition, vol. 14, pág. 114-118. Em outro lugar, Freud também fala da “constante tensão da necessidade” (Freud, “Repression” em: Standard Edition, vol. 14, p. 147).

[26] Ver Gilles Deleuze e Felix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1983.

[27] Pode ser surpreendente omitir o cristianismo do quadro. Se há continuidade entre o cristianismo e a psicanálise, ela existe no reconhecimento do caráter não-relacional e excessivo do prazer. A sua principal diferença consiste no fato de que apenas a psicanálise delineou uma crítica verdadeiramente materialista do gozo; e, nesse aspecto, assumiu a mesma posição que a crítica da economia política de Marx em relação à religião, vendo em seus ensinamentos a expressão mistificada (reprimida) dos impasses libidinais e das contradições. O confronto do cristianismo com os meandros do prazer é amplamente explorado na obra de Slavoj Žižek (por exemplo, em The Puppet and the Dwarf: The Perverse Core of Christianity, Cambridge, MA: The MIT Press, 2003).

[28] Os termos “mundo da aproximação” e “universo da exatidão” vêm de Alexandre Koyré, “Du monde de l’à-peu-près à l’univers de la précision”, Études d’histoire de la pensée philosophique”.  Paris: Armand Colin 1961, pp. 311-329.

[29] “Existem apenas prazeres ligado à mercadoria” – este é o principal axioma da doutrina moderna do prazer (ver Jean-Claude Milner, Constats, Paris: Gallimard 2002, p. 120). Dito de outra forma, a multiplicidade dos prazeres foi abolida sob a predominância da forma mercadoria e da forma valor como o envelope geral, que sustenta a quantificação e a mensurabilidade do prazer

[30] Para um relato histórico e teórico exaustivo, ver notadamente Pierre Force, Self-Interest Before Adam Smith: A Genealogy of Economic Science, Cambridge: Cambridge University Press, 2003, assim como Christian Laval, L’homme économique. Essais sur les racines du néolibéralisme, Paris : Gallimard 2007