Pode o capitalismo global durar?

Autor: William I. Robinson [1]

Introdução

Se a história do capitalismo consiste numa de transformação sem fim, as crises geralmente marcam – antes e depois – os momentos decisivos. No período de 2008 até a terceira década do século XXI ocorreu uma crise prolongada que, longe de ser resolvida, foi agravada pela pandemia do novo coronavírus. Essa crise é tanto econômica e estrutural, quanto política, ou seja, de legitimidade do Estado e da hegemonia capitalista.

Como muitos observaram, a crise é também existencial devido à ameaça de colapso ecológico, bem como à ameaça renovada de guerra nuclear, à qual devemos acrescentar o perigo de futuras pandemias que podem envolver micróbios muito mais mortais do que os da espécie coronavírus.

O capitalismo global pode resistir e durar? A humanidade sobreviverá? Estas são, com certeza, duas questões distintas. É perfeitamente possível que o sistema ainda perdure mesmo que a maioria da humanidade passe a enfrentar lutas desesperadas pela sobrevivência.  Muitos vão perecer nos próximos anos e nas décadas vindouras.

Cada grande crise no capitalismo mundial envolveu previsões de que o sistema entraria em colapso diante de contradições insolúveis. No entanto, o capitalismo provou repetidamente ser mais resiliente e adaptável do que acreditaram os seus previsores apocalípticos. Como se explora neste ensaio, o sistema vem passando por uma nova rodada de reestruturação e transformação desde o colapso financeiro de 2008. E ela acontece com base numa tecnologia da digitalização muito avançada que afeta toda a economia e a sociedade globais.

O contágio tem turbinado essas transformações. Os agentes do capitalismo global estão tentando arrumar um novo sopro de vida para o sistema por meio dessa reestruturação digital e por meio de uma reforma – pelo menos, alguns próceres da elite global defendem-na – que enfrente as pressões das massas vindas de baixo.

Caso ocorra alguma reforma regulatória ou redistributiva, a reestruturação pode – dependendo do jogo das forças sociais e de classe – desencadear uma nova rodada de expansão produtiva que atenue a crise. A longo prazo, entretanto, é difícil ver como o capitalismo global pode continuar a se reproduzir sem uma revisão muito mais profunda do que aparece atualmente no horizonte. Talvez seja mesmo necessário uma total derrubada do sistema.

O desafio para a economia política radical é captar o movimento da mudança estrutural e identificar as possíveis trajetórias e os resultados admissíveis que sempre dependem da política e da luta de classes. E o desafio para os intelectuais radicais é contribuir, por meio da teoria e da análise, para expor as contradições do sistema vigente, fornecendo assim um insumo para as lutas candentes de nossos dias.

Ao tentar enfrentar esses desafios, as advertências usuais se aplicam. As explorações do mundo são sempre um processo aberto de esclarecimento e revisão. O relato que aqui se apresenta é necessariamente uma simplificação, como o são todas as sinopses de realidades complexas, as quais tentam apresentar um «grande quadro». Este é um ensaio exploratório, com algumas passagens teóricas de caráter experimental. Como tal, todas as conclusões são preliminares.

A Dimensão Estrutural da Crise Global

O capitalismo mundial experimentou nos últimos dois séculos vários episódios de crises estruturais; tais crises de reestruturação são assim chamadas porque a sua resolução requer uma grande mudança estrutural do sistema. Aqui «resolução» significa deslocamento no tempo e no espaço por meio da reestruturação que abre caminho para uma nova explosão de acumulação sustentada e expansão externa após um período de estagnação e de mal-estar.

 Eventualmente, as contradições subjacentes do sistema se acumulam e irrompem em novas crises, muitas vezes desencadeadas por um evento precipitante, como o estouro de uma bolha especulativa ou um divisor de águas político.

A primeira Grande Depressão da década de 1870 até a década de 1890 produziu a grande onda do imperialismo do final do século XIX, assim como a ascensão de poderosas corporações nacionais; finalmente, trouxe a Primeira Guerra Mundial e, depois, a Revolução Bolchevique.

A Grande Depressão, na década de 1930, desencadeou intensas lutas de classes e convulsões políticas em todo o mundo, trazendo em seu rastro o fascismo, a Segunda Guerra Mundial e, eventualmente, a consolidação de um novo modelo de capitalismo redistributivo ou regulado. Conhecido como o New Deal nos Estados Unidos e como Social Democracia em outros lugares, pode-se também ser chamado de capitalismo fordista-keynesiano. Ele estabeleceu as bases para o boom pós-Segunda Guerra Mundial, o qual foi denominado de idade de ouro do capitalismo.

A crise estrutural seguinte, ocorrida nos anos 1970, caracterizou-se pela “estagflação”, ou seja, pela combinação de estagnação e inflação. Essa crise foi “resolvida” por uma nova onda de globalização. O sistema passou por um período de reestruturação radical, transformação e expansão no final do século XX e início do século XXI, envolvendo o surgimento de um sistema globalmente integrado de produção, financeiro e de serviços, à medida que o capital se tornou global e reorganizou seus circuitos mundiais.

Ao contrário da situação em crises estruturais anteriores, nesta era do capitalismo global, a economia mundial está agora inextricavelmente integrada e funciona como uma única unidade em tempo real.

As crises estruturais têm sua origem na superacumulação. Isso se refere a uma situação em que enormes quantidades de capital (lucros) são acumuladas, mas os investidores não conseguem encontrar saídas produtivas para aplicar o excedente. Esse capital então fica estagnado, pois os capitalistas evitam reinvestir os lucros já que o sistema está em crise. A superacumulação tem origem no circuito da produção capitalista, em última análise, na tendência de queda da taxa de lucro.

De facto, a taxa média de lucro que se situara em cerca de quinze por cento no período pós-Segunda Guerra Mundial, caiu no final da década de 1980 para dez por cento e continuou a diminuir, para seis por cento em 2017, conforme explica o jornal The Economist, em 26 de janeiro de 2019). Mas a superacumulação é tipicamente expressa como um problema de realização, mas ela se manifesta no mercado como uma crise de superprodução e subconsumo.

Em 2018, o 1% mais rico da humanidade controlava mais da metade da riqueza mundial, enquanto os 80% mais pobres tinham de se contentar com apenas 5% (Oxfam, 2020). Tais desigualdades – o resultado natural da dinâmica capitalista não controlada por tendências compensatórias que podem compensar a polarização social – acabam por minar a estabilidade do sistema à medida que aumenta a distância entre o que é (ou poderia ser) produzido e o que o mercado pode absorver.

A superacumulação, portanto, aparece primeiro como um excesso no mercado e depois como estagnação. De fato, de 2008 a 2020 houve um aumento constante da capacidade subutilizada e uma desaceleração da produção industrial em todo o mundo. O excedente de capital acumulado sem ter para onde ir se expandiu rapidamente. As corporações transnacionais registraram lucros recorde durante a década de 2010, ao mesmo tempo em que o investimento corporativo diminuiu.

Observe que há aqui um duplo movimento: a taxa de lucro caiu enquanto a massa de lucro aumentou. O caixa total mantido em reservas das 2.000 maiores empresas não financeiras do mundo aumentou de US$ 6,6 trilhões em 2010 para US$ 14,2 trilhões em 2020 – consideravelmente mais do que as reservas cambiais dos governos centrais do mundo – enquanto a economia global estagnava.

Embora a acumulação de tais lucros possa ser boa para os indivíduos que ficam mais ricos ou enriquecem, ela representa um problema para o sistema como um todo. Em termos estruturais, o capital não pode ficar ocioso sem deixar de ser capital. Nos últimos anos, a acumulação avançou em fluxos e refluxos, à medida que a classe capitalista transnacional procurou saídas para descarregar esse excedente crescente.

A especulação financeira desenfreada e a dívida crescente do governo, das empresas e dos consumidores impulsionaram o crescimento nas duas primeiras décadas do século XXI, mas essas são soluções temporárias e insustentáveis para a estagnação de longo prazo.

A financeirização

A dívida de consumidores, empresas e estados atingiu um recorde histórico de US$ 281 trilhões em 2020, mais de 355% do produto mundial bruto total. Tal crescimento impulsionado pela dívida é simplesmente insustentável na ausência de uma redistribuição significativa e outras mudanças estruturais longe das políticas neoliberais. Uma grande inadimplência na dívida do consumidor, estado ou empresa – ou ondas de inadimplência – desencadearia uma nova reação em cadeia na queda da economia global.

Do outro lado da dívida está a especulação financeira frenética no cassino global. Ora, ela aponta para transformações mais fundamentais na economia política global. A financeirização começou no final do século XX com a desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros em todo o mundo, juntamente com a introdução de informática e tecnologia da informação nesses mercados.

À medida que os sistemas financeiros nacionais se fundiram em um sistema financeiro global cada vez mais integrado, o capital financeiro transnacional emergiu como a fração hegemônica do capital em escala mundial. Acumulou ele um enorme poder social, incluindo a capacidade de ditar regras por meio dos mercados financeiros globais aos Estados nacionais. Contra os circuitos de mercado para regular os circuitos do capital em todo o mundo, numa inversão da relação histórica em que as finanças servem como complemento do capital industrial.

Existe agora um corpo de literatura sobre essa financeirização muito vasto para ser referenciado aqui. No entanto, o fenômeno ainda permanece mal compreendido e pouco teorizado. Em parte, isso ocorre porque as mudanças ocorridas na natureza do capitalismo global que a financeirização – se é que essa é a melhor maneira de descrevê-la – são tão profundas e estão ocorrendo tão rapidamente que é difícil apreendê-las. A questão é complicada pelo duplo processo de digitalização, que possibilita a financeirização e está provocando uma reestruturação radical de todo o sistema.

A financeirização tornou possível transformar a economia global em um cassino gigante para investidores transnacionais. À medida que as oportunidades se esgotam para reinvestir o capital superacumulado em outras partes da economia global, a classe capitalista transnacional passou a descarregar trilhões de dólares na especulação nos mercados globais de commodities, mercados de ações, mercados de câmbio, mercados futuros, alavancagens, todos os derivativos imagináveis e curtos, criptomoedas e imóveis urbanos, entre outras atividades especulativas no submundo do “shadow banking”.

Esses mercados especulativos tornam-se saídas para os investidores globais “aplicarem” seu capital superacumulado. Como resultado, o fosso entre a economia produtiva de bens e serviços e o capital fictício tornou-se um abismo insondável. O capital fictício refere-se ao dinheiro lançado em circulação sem qualquer base em mercadorias ou na produção.

Grande parte da renda gerada pela especulação financeira é fictícia, significando (aqui de forma simplificada) que existe no papel ou no ciberespaço, mas não corresponde à riqueza real do mundo, ou seja, bens e serviços que as pessoas precisam e desejam, como alimentos, roupas, casas e assim por diante.

A acumulação de capital fictício por meio da especulação pode compensar temporariamente a crise, no futuro imediato ou espacialmente para novas geografias digitais e novos grupos populacionais, mas, a longo prazo, apenas exacerba o problema subjacente da superacumulação. Em 2018, por exemplo, o produto mundial bruto ou o valor total dos bens e serviços produzidos no mundo, situou-se em cerca de US$ 75 trilhões, enquanto o mercado global de derivativos – um marcador de atividade especulativa – foi estimado em impressionantes US$ 1,2 quatrilhões. [2]

Na sequência do colapso financeiro de 2008, os governos dos EUA e de outros países ocidentais recorreram a políticas conhecidas como ‘flexibilização quantitativa”, o que significa essencialmente que os tesouros do governo imprimem dinheiro e injetam-no no sistema bancário como crédito barato, mesmo envolvendo taxas de juro negativas.

A flexibilização quantitativa acaba criando montanhas do que é conhecido como dinheiro fiduciário, ou moeda emitida pelo governo que não é lastreada em uma commodity, agravando a lacuna entre o capital fictício e a economia produtiva. Além das perspectivas de colapso em si mesma, a impressão descontrolada de dinheiro pode, a longo prazo, [se convertida em demanda], desencadear uma inflação descontrolada que desestabilizaria ainda mais a economia global. Essa acumulação de capital fictício deu a impressão de recuperação nos anos que se seguiram à Grande Recessão.

Mas, na verdade, apenas compensou a crise temporariamente, enquanto a longo prazo exacerbou o problema subjacente. Por meio de seu programa de flexibilização quantitativa, o Federal Reserve dos EUA aplicou US$ 16 trilhões em resgates secretos a bancos e corporações de todo o mundo após o colapso de 2008.

Mas isso conta apenas parte da história. Segundo um relatório do FMI, o montante total que os Estados e bancos centrais das «economias avançadas» se comprometeram a apoiar o sector financeiro ascendeu a 50,4 por cento de todo o PIB mundial. Esse número por si só deveria deixar claras as profundas transformações nas finanças globais a tal ponto que a crise iniciada em 2008 é distinta de todas as anteriores e coloca o capitalismo global em território desconhecido.

Os bancos e investidores institucionais que receberam grande parte desse apoio simplesmente reciclaram os trilhões de dólares em novas atividades especulativas, contrariando as expectativas keynesianas de que isso estimularia a recuperação produtiva. Como as oportunidades de investimento especulativo em um setor se esgotaram, a classe capitalista global simplesmente se voltou para outro setor para descarregar seu excedente.

Então, quando a economia global caiu em queda livre em 2020, muitos governos recorreram a resgates maciços de capital. Os governos dos EUA e da UE forneceram uma quantia surpreendente de US$ 8 trilhões para empresas privadas apenas nos primeiros dois meses da pandemia, uma quantia aproximadamente equivalente aos seus lucros nos dois anos anteriores.

A maioria dos governos em todo o mundo aprovou pacotes que envolviam a mesma combinação de estímulo fiscal, resgate corporativo e modesto alívio público, se é que foi fornecido (FMI, 2021). Reciclada em mais atividades especulativas, a injeção de financiamento estatal no sistema financeiro global durante a pandemia expandiu ainda mais a lacuna entre a economia produtiva e o capital fictício, pois as bolhas mantiveram a economia capitalista à tona. A figura apresentada abaixo mostra o crescimento do dinheiro fiduciário medido nos Estados Unidos, indicando o pico acentuado a partir de 2008 e, em seguida, um pico quase vertical com o início da pandemia.

Quantidade de dinheiro fiduciário, $ bilhões (1960-2020)

Fonte: St. Louis Fed database (FRED).


[1] Professor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Autor do livro de Can global capitalism endure? O excerto aqui publicado é a parte inicial de um artigo publicado na Revista de Estudios Globales, Análisis Histórico y Cambio Social, nº 1, 2021, p. 13-31. A versão completa em inglês se encontra aqui: Can global capitalism endure?

[2] Cédric Durand analisa o crescimento do capital fictício na forma de crédito ao setor privado não financeiro, dívida pública e mercado de ações. Ele observa: “As diferentes formas básicas de capital fictício se combinaram para garantir que, em geral, essa categoria se expandisse ao longo de todo o período em questão, inclusive após a crise de 2008. Por outras palavras, nas últimas três décadas, a quantidade de valor validada em antecipação de futuros processos de valorização tem aumentado constantemente relativamente à quantidade de riqueza efetivamente produzida» (Durand, 2017:65)