Autor: Eleutério F. S. Prado [1]
A questão de saber o que é o materialismo parece às vezes fácil de resolver. De imediato tem-se que se trata da posição filosófica que admite a existência de uma realidade exterior ao homem e que independe da sua subjetividade. Ora, desde que ele se tornou um ser social num passado muito distante, a própria realidade passou a ser transformada coletivamente, não apenas materialmente, mas também de outro modo. Como esse “senhor” passou a se comunicar por meio de linguagens cada vez mais complexas, a realidade para ele deixou de ser aquela que pode ser apreendida por meio dos sentidos, para se configurar como realidade simbólica. As simbolizações em geral e, em particular, a linguagem, recobrem um mundo real que continua subsistindo independentemente delas.
Aqui, para discutir um suposto materialismo de Jacques Lacan, parte-se de uma compreensão básica de linguagem. As formas elementares dessa complexidade são as palavras e estas consistem em princípio da reunião de uma forma (o significado) com um suporte da forma (o significante) – ainda que não de um modo rigidamente fixo. O significado diz respeito àquilo que é chamado de noção no plano da lógica; o significante, por sua vez, está constituído por sons devidamente concatenados, os quais são transmitidos por via oral ou por meio de um conjunto de sinais escritos que o fixam de modo duradouro. Em princípio, o significante transporta o significado. E ambos se ligam a um ou mais referentes por meio de conexões que também não são unas, estritamente estabelecidas.
As palavras, portanto, não estão coladas a referentes, como se deles fossem meras imagens. Diferentemente, as palavras se referem ativamente às coisas por meio do uso que delas se faz na prática social. As pessoas que participam da associação linguística que se chama sociedade tem de apreender a usar a linguagem que, para elas, é um comum: eis que tem de se apoderar de suas regras, assim como do modo de empregar e combinar as palavras, as distinções entre elas, os seus limites referenciais etc. Ora, essa descrição sumária parece satisfatória, mas ela contém, entretanto, uma questão perturbadora: como as significações são postas socialmente, teriam elas alguma objetividade ou seriam meramente subjetivas? Os significantes apenas representam significados que moram na mente humana ou eles próprios são lugares onde moram os significados?
Apresentando o materialismo simbólico
Essa questão se apresentou para os olhos cansados de apreender coisas difíceis, mas ainda curiosos, deste economista quando leu a introdução do primeiro capítulo do livro Elementos políticos do marxismo lacaniano de David Pavón-Cuellar (2014). Aí esse autor afirma que Jacques Lacan é, contra algumas de suas afirmações esparsas, um materialista que reivindica um “materialismo simbólico”, isto é, “um materialismo baseado numa teoria materialista da linguagem, de sua materialidade simbólica ou do significante em sua literalidade material” (2014, p. 21).[2]
Pois bem, segundo esse intérprete do psicanalista francês, o materialismo de Jacques Lacan não é realista ideativo, ou seja, não pretende que os significados tenham uma realidade objetiva independente das mentes das pessoas. Posto isso, uma questão surge de imediato: nessa perspectiva, portanto, o significante está constituído exclusivamente por sua materialidade física? Dizendo de outra forma, ele não porta em si mesmo qualquer conteúdo significativo? Se se dá para essa questão uma simples resposta positiva, não há como escapar de uma dificuldade. Ter-se-ia significantes que nada significam!
Ademais, se é certo que ninguém pode ler poemas numa língua que não conhece – eis que os significantes nada significam para ele –, é bem certo que, mediante uma investigação apropriada, é possível em princípio ler hieroglifos deixados por povos desaparecidos. E se é assim, parece que certos significados estavam efetivamente presentes nesses significantes arcaicos, independentemente do fato de haver ou não pessoas que podiam lê-los. Ora, isso parece criar outra dificuldade: concebe-se o significado como materialmente existente, o que parece absurdo!
É evidente, que Cuellar, em sua interpretação e apresentação da teoria da linguagem admitida por Jacques Lacan, teria de enfrentar essa questão. E ele não adota nenhuma das alternativas anteriores. Eis que, para esse autor, o significante não contém qualquer conteúdo ideativo de modo independente da mente humana; enquanto tal, o significante é sensível e inteligível para ela e, assim, interpretável por ela, especialmente em contextos determinados. Se é assim que responde à pergunta formulada, o que está ainda oculto nesse materialismo simbólico que precisa ser mais bem esclarecido?
Lacan, como psicanalista que reivindicou a herança de Freud, mantém a distinção entre o consciente e o inconsciente na esfera da psique individual e da sociedade. E, o que o caracteriza nesse aspecto, é que ele vai considerar toda a realidade social – e não apenas a realidade econômica, por exemplo – como intrinsecamente não transparente já que, para ele, a assimilação de uma linguagem implica em se alienar do mundo real. Eis que, em consequência, toda realidade simbólica vai lhe aparecer como uma dualidade formada por uma presença e uma “ausência”. Apresenta-se de modo expresso como materialidade fônica ou escritural diante da recepção humana possível. Enquanto tal, porém, representa significados possíveis, mas aí ausentes, que podem ser achados pela interpretação – um processo sempre imperfeito e falível.
Eis como Cuellar tenta explicar essa questão: o significante não contém qualquer significado próprio, mas vem a ser portador de significado possível: “ao reduzir as ideias conscientes a materialidade simbólica opaca dos significantes (…), Lacan não está reduzindo o inteligível apenas a uma materialidade informe, mas sim a uma materialidade sensível” (2014, p. 22).
O significante não consiste, pois, de em mera materialidade, mas de uma materialidade sensível em que está inscrito algo inteligível, ainda que de modo mediato. E essa não é uma propriedade do significante enquanto isolado, mas estrutural já que, em geral, ele pertence a uma sequência de significantes tirada do sistema complexo dos significantes como um todo. Por isso mesmo, na perspectiva desse autor, esse inteligível se apresenta como opaco e até mesmo obscuro – ainda que decifrável com maior ou menor esforço – para a consciência dos indivíduos na vida em sociedade. De qualquer modo, veja-se que o significante assim compreendido estabelece relações dos homens com o mundo, consigo e entre si mesmos. Ele próprio, dizendo de outro modo, é a manifestação dessas relações.
Para melhor compreender isso é preciso expor os conceitos de signo e de significante que aparecem nessa teorização. Ora, isso só pode ser feito – julga-se aqui – com o auxílio de duas noções aparentadas, mas bem distintas, de significado e significável. Para maior clareza, o significante lacaniano será aqui, de início, renomeado e a razão desse procedimento ficará clara na própria exposição que se segue.
Entendendo o materialismo simbólico
A linguística moderna, a partir de Ferdinand Saussure, emprega generalizadamente na compreensão da linguagem o conceito de “signo” entendendo por ele a união posta, de modo eventual, mas durável e mutável, entre um significante e um significado. Julga-se às vezes, nessa perspectiva, que os signos fônicos advêm por meio de convenções. De modo mais correto, pode-se afirmar que eles se originam na práxis social e histórica dos homens, numa configuração que não é nem instável nem totalmente estável. De qualquer modo, tomando o significado como a forma e o significante como suporte da forma, o signo, então, pode ser assim apresentado:
Ora, essa fórmula não é inocente e isso precisa ser esclarecido já que implica um modo de compreender a sociabilidade humana.
A linguagem é assim apreendida como meio de comunicação e o signo em geral como a sua forma elementar. O significado se sobrepõe ao significante nessa apresentação formal para afirmar que, em princípio, ele se mostra de modo imediato ou sem grande esforço no processo da comunicação. Como o signo é tomado como transparente, o significado é visto como dominante em relação ao significante. Se é transmitido por um sujeito numa conversação, admite-se que ele será compreendido pelos outros sujeitos que dela participam. Supõe-se que isso ocorre em geral ou, pelo menos, que isso vem a ser uma possibilidade real.
Note-se, ademais, que o sujeito aqui enunciado é o sujeito cartesiano e que, por isso, se sustenta já sempre no ego, numa consciência esperta e clarividente. De outro modo, entretanto, a figura do sujeito também pode ser pensada dialeticamente. Nesse caso, ter-se-ia não um sujeito posto, que já sempre é, mas um sujeito pressuposto que pode advir na prática social. Assim, por exemplo, alguém que está sujeitado à outrem em certas circunstâncias da vida social pode se tornar crítico e, assim, consciente da sujeição, dela se libertando, ou seja, tornando-se agora um sujeito posto.
Nessa perspectiva, tendo como referência o Marx do primeiro capítulo de O capital, pode-se julgar que o signo, assim compreendido, faz a mediação de relações sociais diretas, nas quais os agentes sociais figuram como sujeitos possíveis e não como meras personificações de relações sociais coisificadas. Como se sabe, para esse autor, no mundo das mercadorias, os agentes travam relações sociais indiretas, ou seja, relações mediadas por coisas, mercadorias, cujo existir se autonomizou em relação a eles porque são criaturas do capital. Tais agentes, os capitalistas e os trabalhadores em geral, não são sujeitos porque atuam meramente como suportes das relações sociais; nessa condição, eles são apenas predicados das relações sociais inerentes ao capitalismo.
Note-se, agora, que a psicanálise lacaniana não trabalha primariamente com os signos, ou seja, mesmo para além da esfera econômica da sociedade. Ela não considera, assim, que a conversação cotidiana seja inerentemente transparente e que ela possa ser compreendida como uma mediação diáfana entre “sujeitos” sociais. Se as palavras parecem operar como signos no mundo da vida social e cultural, esta é uma ilusão que falsifica em certa medida a natureza da comunicação humana em sociedade.
Para expor então como ele subverteu o signo, faz-se uma distinção inicial entre um símbolo denotado por X e o significante propriamente dito. A duplicidade que constitui esse X se apresenta, então, como a união de um significante enquanto suporte da forma e algo – uma protoforma – que se denomina aqui de significável com a finalidade de indicar não uma significação posta, mas uma significação meramente possível:
Nessa nova expressão, ao contrário do que ocorreu anteriormente, foi dada prioridade ao significante em relação ao que ele pode representar e que está abaixo da barra horizontal. Esta deixa, assim, de se referir a uma reunião para se transformar numa barreira entre o significante e o significável. Formaliza-se, assim, um elemento de linguagem caracterizado agora pela intransparência.
Esse símbolo X é entendido então como um elemento constitutivo de um sistema linguístico, certamente complexo, que recobre e oculta o mundo real de um modo definitivo. E isso tem consequências. Ele obstrui qualquer possibilidade de que o ser humano seja capaz de chegar a verdades, a certezas. Ele pode e deve se esforçar para encontrá-las, eis que elas mesmo podem surgir eventualmente no curso dessa busca; porém, em última análise, ele nunca poderá estar certo disso. O sistema linguístico dota o mundo de uma opacidade que, em última análise, é insuperável. Em consequência, o vir a ser do sujeito social, nessa perspectiva, torna-se um processo muito mais difícil, incerto e, no limite, impossível. E, se assim é, a autonomia lhe está vedada; a alienação não pode ser superada.
Como o significável é dominado fortemente pelo significante, o próprio símbolo X é tomado por Lacan e os seus seguidores, diretamente, como “significante”. Ora, essa operação, que reprime o significado, diviniza o suporte da forma tal como ocorre na matemática geral. Esse acabamento dá um toque final na opacidade do sistema linguístico. E isso bloqueia fortemente a possibilidade de que a crítica seja certeira e que, por meio dela, surja o homem como sujeito no intercurso social. Por outro lado, é evidente que, por meio dessa subversão do signo, é encontrada uma forma de conceber a existência do inconsciente individual e social. À medida que o homem aprende uma linguagem, ele passa a habitar esse domínio opaco e complicado do qual ele não poderá sair mais, senão por meio da morte.
Ora, para bem entender essas duas “fórmulas” é preciso fazer um esclarecimento enfático. No caso do signo, a significação está posta por meio significado, mas no caso do símbolo X, a significação imediata pode ser ilusória e a significação verdadeira pode em princípio estar oculta. É justamente por isso que o signo denota transparência e o símbolo denota intransparência. É preciso, pois, examinar tudo isso com mais cuidado.
Entendendo o materialismo crítico
De uma perspectiva bem geral, três possibilidades se configuram para interpretar o que o significante diz nessa última formulação, ou seja, naquela que vem de Jacques Lacan. Pode-se tomar o próprio significante como a forma e, nesse caso, ele se torna de modo imediato, aparentemente, inteligível – mesmo se isso vem a ser um equívoco fundado, uma aparência socialmente necessária. Ora, ao se confundir a forma com o suporte da forma tem-se aquilo que Marx, tendo por referência a mercadoria, denominou de “fetichismo”. Se o crítico por excelência da economia política falou em fetichismo da mercadoria, aqui ter-se-ia de falar em fetichismo do significante.
Pode-se admitir, alternativamente, que o significante é apenas algo sensível que funciona como suporte de significação possível – sem se identificar como uma forma que supostamente se encontra apenas na mente do ser humano, mente essa que se desdobraria agora em consciente e inconsciente. Nesse caso, o significável, mantendo-se como algo elusivo, apenas pode ser preenchido pelo operar do cérebro do “sujeito” que apreende o significante. Este último, tende então a ser entendido como arbitrário ou mesmo como produto de convenção tal como aparece no estruturalismo de Saussure. O costume, então, conservaria a ligação entre o significante e determinados significados mentais, manifestos e/ou latentes, explícitos e/ou implícitos. Esta seria, pois, aquela possibilidade que, segundo Cuellar, fora adotada por Lacan.
Nenhum desses duas possibilidades, entretanto, é adequada para se referir à compreensão de Marx dessa questão. Segundo a lógica que preside a elaboração de O capital, em particular da seção quarta do primeiro capítulo do Livro I, não se pode cair nem no fetichismo nem no convencionalismo, tal como foram apresentados nos dois parágrafos anteriores (ver Fausto, 1997a). Para esse autor, o significante propriamente dito, enquanto suporte da forma, constitui-se apenas como uma aparência. Já o significável, apresentado já como significado, vem a ser a sua essência, a qual apenas se revela quando se tem não apenas o significante como tal, mas todo um contexto simbólico criado socialmente de algum modo.
Ou seja, dizendo de outra maneira, a significação se forma apenas por meio do evolver de um complexo de relações sociais mediadas por linguagens, um processo que é usualmente chamado de práxis. Dependendo do caráter dessas relações sociais, as linguagens que fazem as mediações sociais e que, assim, participam sempre dessa práxis – que é sempre, ao mesmo tempo, material e simbólica – apresentam-se como transparentes ou não transparentes. No caso do modo de produção capitalista, as relações sociais são indiretas; a mediação é feita, segundo Marx, por coisas revestidas simbolicamente como valor de uso e valores de troca. Assim, ele denomina a linguagem que preside esse mundo de linguagem das mercadorias. De qualquer modo, o significável assim pensado constitui-se como uma objetivação posta pela atividade humana material e simbólica – e não meramente como algo mental. É o caso do valor das mercadorias.
Posto isso, é interessante examinar mais um pouco a apresentação de Cuellar do materialismo simbólico de Lacan. Tendo por referência o símbolo X (ou significante), ele diz: “esta matéria pré-formada, cuja forma simbólica pode ser também uma forma econômica, é a que vai permitir a Lacan professar um materialismo simbólico que se encontra e concorda com o materialismo econômico marxiano” (2014, p. 22). Esse autor está entendendo por “forma econômica”, ao se referir aos textos de Marx críticos da economia política, aquilo que chamada de forma-mercadoria e, assim as formas econômicas em geral. Crê-se aqui, no entanto – como aliás já se indicou –, que essa aproximação de Lacan à Marx está equivocada.
Cuellar diz que “o materialismo de Marx, tanto quanto o de Lacan, é um materialismo simbólico – e não realista” (2014, p. 23). Atendo-se às suas próprias definições, afirma-se aqui, enfaticamente, que o materialismo de Marx não é nem simbólico nem realista no sentido dado por esse intérprete de Lacan. Para o primeiro, tem-se, sim, um significado sob a barra encimada pelo significante e este é posto pelo operar do modo de produção capitalista como um todo. O valor, ainda que não seja atributo da mercadoria por si mesmo, é um atributo social dela que tem o caráter de uma materialidade espectral, confirmando-se assim como uma ilusão real.
Há, ademais, um conceito de estrutura em Marx, mas ela não pode ser caracterizada por meio um mero sincronismo – mesmo um sincronismo que não abdica do diacronismo. Marx é um pensador dialético [3] que toma o real como realidade humano-social, como um processo histórico atravessado por contradições. Estas nunca permanecem silentes ou quietas, mas trabalham e evolvem determinando o curso do processo na temporalidade histórica. Se o conceito de estrutura se revela no estruturalismo por meio de uma totalização que vai da aparência das coisas às suas relações constitutivas, no caso do autor de O capital, ela se revela por meio de uma redução que vai da aparência à essência (ver Fausto, 1997b). Ora, isso também aponta para um afastamento entre os dois autores – e não para uma aproximação.
Tendo avançado na compreensão desses dois materialismos, é preciso agora aprofundar a compreensão do materialismo realista considerado também por Cuellar. Segundo esse marxista lacaniano, “o materialismo realista parte de certas condições materiais, claramente definidas como realidade extramental, as quais determinam as condições mentais por meio de determinação causal” (2014, p. 23). Por realidade extramental, portanto, deve se entender simplesmente o mundo tal como ele está dado ao vivente em sociedade, não apenas como matéria, mas como matéria que já foi tomada pela simbolização. Ademais, por condições mentais deve-se compreender as reflexões desse mundo na mente humana.
Cuellar tem, pois, razão: este não é o materialismo do filósofo alemão já que ele não separa – ainda que distinga – a realidade social da realidade mental como se fossem duas esferas separadas que se conectam externamente uma à outra, por vínculos de causalidade eficiente. Mas, então, como se pode aprofundar a compreensão do materialismo crítico vis-à-vis do materialismo simbólico.
Crítica do materialismo simbólico
De acordo com Cuellar, “o materialismo de Marx parte de certas condições materiais cuja conformação estrutural e forma simbólico-econômica as distingue de uma realidade extramental, pois estão vinculadas indissociavelmente ao mental e ao ideal que determinam, transcendem e atravessam” (2014, p. 23). Ora, esse psicanalisa marxista agora não tem razão, pois este também não é o materialismo do autor que também o inspira. Note-se que em O capital, ele considerou a mercadoria não apenas como algo sensível, mas como algo sensível-suprassensível. O valor que mora nas mercadorias, para ele, é uma objetividade social, um referente que a análise crítica tem de descobrir.
Cuellar compreende o mundo social como um mundo recoberto por simbolizações, as quais não apenas estão aí por meio das próprias coisas e das palavras que as descrevem, mas são apreensíveis por meio da sensibilidade humana. Ora, essas simbolizações estruturam o mundo, fazendo dele um mundo que entretêm significações. E estas podem ser postas pela mente humana já que ela sabe – implicitamente, mais do que explicitamente – as regras usuais de interpretação dos significantes que tem existência material efetiva. A mente é, pois, a única residência das significações. É mais propriamente no imaginário que a mente as guarda na forma de signos, ou seja, da união de significados associados a significantes. Segundo Cuellar, o imaginário se constitui como um depósito das significações individualmente detidas. Entre as pessoas que entram em comunicação, ele “oferece nada mais do que vagas similaridades entre entidades mentais análogas” (2010, p. 1).
Além do imaginário, que é puramente mental, Lacan distingue o simbólico que é constituído por significantes, os quais constituem a materialidade propriamente dita dos discursos. Os discursos supostamente descrevem as coisas do mundo, mas, ao fazê-lo, eles se diferenciam das próprias coisas. Mais do que isso, eles se autonomizam em relação às coisas: “após a diferenciação simbólica, as coisas ficam perdidas no discurso (…) as palavras não podem descrever sem determinar aquilo que é descrito” (2010, p. 5). É assim que o simbólico se aparta do real, algo que permanece existindo para além dos discursos. O papel do simbólico na constituição da sociabilidade humana em geral é dar corpo ao significável – não pondo determinadas significações diretamente – mas pondo a própria estrutura significante que constitui o discurso. É crucial perceber que, nessa teoria, “o simbólico precede e determina o imaginário” (2010, p. 4).
Desse modo, Cuellar não contempla e não pode contemplar o suprassensível tal como foi acima referido. Por desconectar o discurso da prática material, “um lacaniano nunca pretende ter a capacidade de apreender, mediante o discurso, algo real que se encontra antes e atrás do próprio discurso” (2010, p. 6). Para ele e Lacan, o discurso nunca é realista. Ademais, toda objetivação se afigura como ilusória. Mas isto não está de acordo com Marx cujo materialismo está centrado na práxis. Segundo ele, essa práxis cria às vezes ilusões reais – ilusões que são realmente postas pela atividade social dos homens na conservação e na transformação do real. Ora, o suprassensível no capitalismo mostra que essa sociabilidade cria um mundo metafísico. E essa instância é recriada pelo próprio evolver das relações sociais, numa práxis que envolve a própria corporalidade do ser humano – e não apenas a sua mente cognoscitiva.
Para os psicanalistas aqui considerados, em consequência o inconsciente se apresenta no encontro da mente humana com a materialidade simbólica dos significantes opacos enquanto tais. As significações não existem socialmente para além das mentes das pessoas que compõem a sociedade. Eis que o mundo social é tratado pelos lacanianos como um mundo simbólico destituído de significação em si mesmo, mas estruturado para permitir interpretações significativas.
Para Marx, ao contrário, há um inconsciente social que os homens põem a existir por meio do que fazem – e não por meio do que pensam fazer. Em consequência, o mundo social, para ele, não é meramente simbólico, mas também pode dar corpo à certas substancialidades metafísicas – o valor econômico, por exemplo. E é justamente por isso que ele é um materialista radical, enquanto os lacanianos – pelo menos segundo a interpretação de Cuellar – podem ser descritos como idealistas. Trata-se de um idealismo linguageiro que se revela no modo como encaram o real para além da realidade já simbolizada. O ser humano não é apenas mente, mas corpo que age sobre outros corpos, que entra em contato com a materialidade física do mundo.
Marx não põe um véu negro e intransparente entre o sujeito e o mundo real. A linguagem, por meio das palavras, acessa e pode apreender o real já que, ao fim e ao cabo, elas exprimem “formas de ser, determinações da existência”. Ora a adequação entre as formas simbólicas e a própria natureza das coisas, ainda que difícil e sempre contestável, é buscada incessantemente na práxis social – atividade sensível do ser humano que envolve sempre o corpo e a mente, a objetividade e a subjetividade. Se assim não fosse, ela não poderia jamais ser bem-sucedida – ainda que erros nesse processo incessante sejam possíveis e mesmo necessários. A mutação possível dos significados submetidos aos significantes se impõe como necessária dada a própria complexidade do mundo.
Segundo Marx, a razão crítica é capaz não apenas de desvendar a essência das coisas, descobrir o que é, mas também o que elas podem vir a ser. O seu método é dialético e por isso se entenda que ele é interno ao objeto em consideração. Ele visa apresentar o seu desenvolvimento apreendendo as suas próprias contradições. Pretende fazer a crítica do existente e, ao mesmo tempo, das concepções ideológicas que contribuem para ocultá-lo, para que possa ser transformado. A razão crítica marxiana não considera que a alienação seja invencível, contrariando assim uma posição que no fundo é quietista.
Em suma, Marx e Lacan (pelo menos na interpretação de Cuellar) divergem no modo de considerar aquilo que foi aqui denominado de significável. Enquanto o primeiro toma o significável como um pressuposto que pode ser efetivamente posto objetivamente no devir da sociedade, o segundo toma o significável como algo que só pode se realizar na mente humana, ainda que por meio dos signos que nela habitam. A razão é que Lacan, diferentemente de Marx, desconecta a linguagem da práxis, da atividade material, transformadora de mundo e criadora de significações objetivas, que caracteriza propriamente o existir em sociedade do ser humano. Como diz Fausto, “a dialética, ao contrário, leva a sério o encantamento do mundo” (1997, p. 169).
Mas como caracterizar o materialismo de Marx? Ao invés de um materialismo simbólico, sustenta-se aqui, esse autor se orienta por um materialismo crítico, assim como histórico. Seguindo Andrew Collier (1994) em sua caracterização do realismo crítico de Roy Bhaskar, pode-se elencar as características do materialismo desse notável filósofo da ciência como se fossem também as de Marx. Eis que ele se inspirou no materialismo desse subversivo que revolucionou o modo de compreender a sociedade.
Se isto se confirma, eis aqui as características desse materialismo marxiano. A sua referência última é a objetividade, ou seja, ele aceita que o real é aquilo que existe independentemente se é ou não conhecido. O saber científico é falível e está aberto às refutações eventuais. O conhecimento não se atém apenas à aparência das coisas, pois o real está estruturado por nexos internos; o materialismo crítico vai da aparência para a essência por meio de reduções que tem a forma lógica de uma operação transcendental. Em adição, ele admite que a estrutura da realidade não apenas está além da aparência, mas a contradiz em geral (1994, p. 6-7). Finalmente, no âmbito da sociedade, ele acolhe a existência possível de ilusões reais produzidas por um reencantamento do mundo, de um mundo que fora desencantado.
__________________________________
Referências
Bailly, Lionel – Lacan – an introduction. Londres: Oneworld Publications, 2009.
Collier, Andrew – Critical realism – An introduction to Roy Bhaskar philosophy. Londres/Nova York: Verso, 1994.
Fausto, Ruy – Os agentes da troca. As ilusões complementares: convencionalismo e fetichismo. In: Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997a, p. 75-85.
__________ – Dialética, estruturalismo, pré(pós)-estruturalismo. In: Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997a, p. 137-171.
Murray, Martin – Jacques Lacan – a critical introduction. Londres: Pluto Press, 2016.
Pavón-Cuellar, David – From the conscious interior do an exterior unconscious. Londres: Karnac, 2010.
_______________ – Elementos políticos de marxismo lacaniano. México: Paradiso Editores, 2014.
Safatle, Vladimir – A paixão do negativo – Lacan e a dialética. São Paulo: Editora da UNESP, 2006.
_______________________________________
Notas
[1] Professor titular aposentado e sênior da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blog na internet: https://eleuterioprado.blog
[2] Lacan, como se sabe, é um autor difícil. Uma boa introdução ao seu pensamento é o livro de Lionel Bailly (2009). Uma crítica que ajuda a compreendê-lo está no livro de Martin Murray (2016).
[3] Lacan não seria também um pensador dialético dado o seu interesse por Hegel? Sobre essa questão certamente difícil, ver Safatle (2006).
Você precisa fazer login para comentar.