Publicado originalmente em inglês na revista Brazilian Journal of Political Economy, no número de julho/setembro de 2020.
Introdução
Karl Marx escreveu numa das notas de rodapé do primeiro capítulo de O capital que “os economistas têm um modo peculiar de proceder. Para eles há apenas duas espécies de instituição, as artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo são artificiais, as da burguesia naturais” (Marx, 1983, p. 77n). No entanto, se forneceu uma boa resposta para o enigma de saber por que essa duplicidade se impõe aos economistas em particular, não explorou todas as suas consequências. Pois, não presenciou a matematização da economia política que passou a ocorrer apenas no último quartel do século XIX.
É preciso observar que essa distinção é operada na linguagem. Portanto, as noções de natural e de artificial são ambas representações, as quais estão formadas por dualidades de significantes e de significados. Enquanto termos linguísticos são ambos artificiais, mesmo se não podem ser pensados como convenções, mas como signos que emergiram ao longo dos séculos de forma não intencional no próprio processo de formação da língua. Enquanto significados apontam – e por apontar mostram já lacunas e incerteza – para o que é próprio da natureza e para o que é próprio do homem. Ora, as instituições se encaixam sempre nesse último caso – e não do primeiro deles. São os homens que criam as instituições, ainda que possam fazê-las com consciência ou, até de modo mais comum, inconscientemente.
Na economia política clássica, os preços foram considerados explicitamente como naturais; na verdade, designava-se então como naturais apenas os preços tendenciais de longo prazo, distinguindo-os dos preços de mercado que dependiam de condições contingentes relativas às interações das pessoas nos mercados. Após a sua desativação progressiva já na secunda metade do século XIX, ascende a teoria neoclássica que passa a considerar, mesmo se isto não é mais dito expressamente, todos os preços como naturais. Essas duas tradições convergem, ademais, em tomar as instituições que permitem a existência dos mercados e, assim, dos preços – por exemplo, os contratos explícitos ou implícitos, formais ou informais – como naturais, considerando as intervenções em seus funcionamentos como artificiais. Há, entretanto, ênfases diversas e mesmo diferenças substantivas entre um Jean B. Say e um Adam Smith, entre um Stanley Jevons e um Alfred Marshall.
No que se segue, apresenta-se primeiro a concepção de ciência de Léon Walras, mostrando também como Marx explica a naturalização dos preços e dos fenômenos econômicos em geral. Na seção posterior, mostra-se – com base na teoria do sujeito de Jacques Lacan – de que modo o discurso da ciência contribui tanto para a formação do saber tecnocientífico quanto para desresponsabilizar os tecnocratas das consequências eventualmente funestas da aplicação da ciência positiva na condução da sociedade.
A Lei de Walras
Léon Walras figura como o principal fundador da teoria neoclássica tal como hoje é conhecida. Ele considerava que a Economia Política é tanto uma exposição daquilo que é quanto um programa daquilo que deve ser. No primeiro caso configura-se como ciência, no segundo se apresenta como arte e moral; enquanto saber moral diz respeito aos fins do ponto de vista da equidade e da justiça e enquanto arte (ciência aplicada ou técnica) diz respeito aos meios para obter os fins que agora aparecem como determinados pelos interesses. É em três partes, portanto, que delimita esse campo do conhecimento, o qual assim se compõe e se levanta, segundo ele, a partir de um saber científico rigorosamente determinado.
Walras deixa claro o caráter metafísico da teoria econômica tal como ela se constitui a partir dele. E por esse termo se entenda que busca apreender uma ordem objetivamente dada de uma vez por todas – e que, portanto, que não muda, que não é histórica. É precisamente assim que apresenta a “economia política pura” que vai elaborar em seu compêndio, notando-se que designa os entes como “corpos” e os seres que jazem implícitos nos comportamentos dos entes como “fatos”:
É uma verdade há muito tempo esclarecida pela filosofia platônica que a ciência não estuda os corpos, mas sim os fatos dos quais os corpos são o teatro. Os corpos passam; os fatos permanecem. Os fatos, suas relações e suas leis, tal é o objetivo de qualquer estudo científico (Walras, 1983, p. 15).
Para descobrir aqueles que a ciência econômica pura visa, ele distingue duas espécies de fatos: os naturais e os humanitários. Os primeiros têm origem no “jogo das forças da natureza, que são cegas e fatais; os segundos advêm da “vontade do homem, que é uma força clarividente e livre”. A ciência propriamente dita, a ciência natural, estuda os fatos naturais, já os fatos humanitários são objeto da ciência moral pura. Esta última, “aconselha, prescreve, dirige”, a primeira “observa, expõe, explica”. Em consequência, não resta alternativa à ciência natural senão estudar as relações entre as causas e os efeitos que regem os fenômenos já que as forças da natureza são, como diz, perfeitamente determinísticas. Ora, essa distinção tem uma consequência que é preciso mencionar:
O fato da clarividência e da liberdade da vontade do homem divide todos os seres do universo em duas grandes classes: as pessoas e as coisas. Todo ser que não se conheça e não se possua é uma coisa. Todo ser que se conheça e que se possua é uma pessoa. O homem se conhece, ele se possui; é uma pessoa. Apenas o homem é uma pessoa; os minerais, as plantas e os animais são coisas. (Walras, 1983, p. 16)
Nessa perspectiva, agora, é preciso indagar como Walras encara a troca de mercadorias, que vê como se fosse meramente uma mera troca de bens, de valores de uso. Eis que identifica as coisas transacionadas como meras utilidades, mesmo se as chama de mercadorias. Tais trocas, como se sabe, envolvem pessoas e coisas; logo, como a finalidade das coisas, segundo ele, deve ser racionalmente subordinada à finalidade das pessoas, é de se esperar que as trocas sejam consideradas como fatos humanitários.
Entretanto, esta não é esta a conclusão a que chega; ao contrário, diz expressamente que “o fato do valor de troca toma, pois, desde que estabelecido, o caráter de um fato natural, natural em sua origem, natural em sua manifestação e em sua maneira de ser”. Pois, o valor de troca, como afirma, não resulta de um acordo entre aqueles que trocam, mas advém pura e simplesmente da raridade relativa das coisas trocadas. Se estas têm valor – diz ele – é porque são raras, isto é, advém da dupla condição de que são mais ou menos úteis e, ao mesmo, mais ou mesmo limitadas em quantidade ou disponibilidade.
Assim, é óbvio, a finalidade das pessoas se encontra subordinada à finalidade das coisas, o que notoriamente contraria o seu postulado moral segundo o qual é direito das pessoas determinar o destino das coisas. Ora, há aqui um enigma que ele não esclareceu, mas que foi devidamente elucidado por Marx.
Esse autor explicou por que os economistas naturalizam os preços, notando, ademais, a inversão entre o sujeito e o objeto que a naturalização da relação social de troca implica. Eis que eles apreendem como tal – sem compreendê-la criticamente e mesmo sem desejar fazê-lo – a reificação das relações sociais que é constitutiva do modo de produção capitalista. Note-se no trecho em sequência que Marx expressa aquilo que Walras denomina de “raridade” – contra a sua proposta de explicação, obviamente – como tempo de trabalho socialmente necessário para produzir as mercadorias que são reprodutíveis por meio da indústria. Para Walras, a raridade é subjetiva, própria da mente do agente econômico, mesmo se o valor de troca é bem objetivo. Para Marx, o trabalho abstrato que constitui o valor da mercadoria e se expressa no valor de troca não é reconhecido como tal por tais agentes já que reside no inconsciente social.
As grandezas de valor “variam sempre, independentemente da vontade, da previsão e da ação dos que trocam. O seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-los. (…) O tempo de trabalho socialmente necessário se impõe com violência como lei natural reguladora, do mesmo modo que a lei da gravidade, quando a alguém a casa cai sobre a sua cabeça. A determinação da grandeza de valor pelo tempo de trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias” (Marx, 1983, p. 72-73).
Walras afirma novamente o caráter metafísico platônico de sua teoria dos preços e dos mercados quando indica o método da economia política pura: “o hectolitro de trigo vale 24 francos” – é donde se deve partir. E este fato, diz ele, não depende da vontade nem do comprador, do vendedor ou de um acordo entre eles. “Essa asserção é nova e parecerá estranha; mas acabo de prová-la e a provarei ainda melhor em seguida”, isto é, ao longo da obra que, nesse momento, ainda vai ser apresentada. A economia política pura não segue o método experimental, mas sim o método que denomina de racional. “A economia política pura é uma ciência em tudo semelhante às ciências físico-matemáticas” (Walras, 1983, p. 22-23):
As ciências físico-matemáticas, bem como as ciências matemáticas propriamente ditas, saem da experiência desde que lhes tomaram seus tipos [ou seja, o que está implícito no comportamento fenomênico dos entes]. Elas abstraem desses tipos reais, tipos ideais, que definem; e com base nessas definições, constroem a priori todos os andaimes de seus teoremas e de suas demonstrações. Depois disso, retornam à experiência, não para confirmar, mas para aplicar suas conclusões (Walras, 1983, p. 23-24).
Se, porém, os economistas neoclássicos contemporâneos afirmam que testam as proposições derivadas da teoria que professam saber e empregar, se dizem que empregam a metodologia falibilista de Karl Popper, eles se enganam ou mesmo mentem – sem saber que o fazem – porque a teoria neoclássica, por construção, não é falseável. Pois, ficando ainda na perspectiva da metafísica platônica em que se insere, diante da extraordinária complexidade dos fenômenos econômicos, ela se mostra inexoravelmente incapaz de controlar as chamadas condições coeteris paribus. Ademais, indo agora além dessa perspectiva, é preciso ter claro que ela ignora a temporalidade histórica em que tudo acontece em nome de uma “temporalidade” puramente lógica que é inobservável como tal. Como a teorização neoclássica emprega o critério de verdade como correspondência que vem da metafísica platônica[1], a sua verdade possível apenas pode ser afirmada dogmaticamente, tal como o faz o próprio Walras.
É preciso mencionar agora a Lei de Walras em sentido estrito, para além daquela que caracteriza a sua construção metafísica como um todo e que diz respeito ao funcionamento ideal dos mercados. Essa lei é assim apresentada: “para que haja equilíbrio do mercado (…) é necessário e suficiente que a demanda efetiva de cada mercadoria seja igual à sua oferta efetiva” (Walras, 1983, p. 87). Assim se estabelecem preços que ele chama de estacionários. Se há “n” mercadorias e se para n – 1 delas o preço se torna estacionário, o preço da enésima também se fixará no nível estacionário. Ademais, se houver excesso de demanda de uma dada mercadoria, o seu preço terá de subir; se, ao contrário, houver excesso de oferta dessa mercadoria, o seu preço deverá cair. Esse mecanismo, como se sabe, ficou denominado de “tâtonnement walrasiano”.
Veja-se agora que, para ele, o estado de equilíbrio é ideal, ainda que quase real: “jamais ocorre que a oferta e a demanda efetivas de serviços produtivos ou de produtos sejam absolutamente iguais; mas é o estado normal, no sentido de que é aquele para o qual tendem por si própria as coisas no regime de livre concorrência” (Walras, 1983, p. 118). O termo “tendem” aí enuncia – note-se – uma tendência que deve se manifestar de forma virtual, pois na teoria de equilíbrio geral não há trocas fora e longe do equilíbrio. Para resolver esse problema, Walras imagina que o mercado é conduzido por leiloeiro que grita preços falsos, os quais são corrigidos até que os verdadeiros apareçam e as trocas possam ocorrer. Nesse esquema, o advento do equilíbrio precede as trocas. O fato de que nos mercados reais as trocas precedem a um equilíbrio apenas possível em princípio parece não ter incomodado esse autor que preza sobretudo a logicidade formal dos argumentos.
Note-se, porém, que os preços estacionários – e normais – assim definidos diferem dos preços naturais da economia política clássica: “o preço natural é como que o preço central ao redor do qual continuamente estão gravitando os preços de todas as mercadorias” (Smith, p. 1983, p. 85). Veja-se que os preços naturais, para Smith e Ricardo, são implícitos e se configuram em um espaço de tempo real, precisamente naquele em que as produtividades médias do trabalho necessário à produção das mercadorias podem ser consideradas aproximadamente como constantes. Já aqueles definidos por Walras são pontuais, explícitos, de equilíbrio, mesmo se aproximados. Os preços de mercado, no primeiro caso, circulam efetivamente em torno dos preços naturais, já que estes são determinados pelas condições de produção das mercadorias. Diferentemente, para a teoria neoclássica, todo preço é preço de mercado de tal modo que ela tem de raciocinar com uma dinâmica virtual de estabilização em que os preços estacionários funcionam como atratores.
Ora, toda essa construção mais moderna é uma construção da razão instrumental que sonha com o equilíbrio num mundo complexo e turbulento em que o desequilíbrio impera. Eis que pretende ser uma apreensão adequada, clara e segura do comportamento dos preços nos mercados, que adveio da necessidade e da pretensão de dominar, primeiro intelectualmente, mas também efetivamente depois, as coisas e os fenômenos nessa esfera da sociedade. Ainda que às vezes esteja associada à liberdade econômica, a liberdade de cada um atuar segundo os seus interesses, pressupõe de fato a sujeição de todas as pessoas ao sistema econômico descentralizado, dito de mercado. Ela contempla mesmo, com a história mostrou, a possibilidade do advento da organização total da vida econômica por meio de um sistema centralizado.
A positividade do equilíbrio, que não se encontra na economia política clássica, é mais um sinal do zelo metafísico que perpassa a teoria neoclássica desde o seu início, e mesmo antes dela, já na vertente que se originou com Jean B. Say. Ainda que tenha distinguido uma esfera moral do saber econômico, Walras envidou esforços para fundar um saber científico exato, perfeito, inabalável, capaz de orientar uma técnica de intervenção bem-sucedida no sistema econômico.
A metafísica, como se sabe, é filha dileta do medo, da incerteza, das contradições, do devir trágico e do desenrolar irruptivo da história desde o seu nascimento na Grécia antiga. Que ela reemerja como concepção científica por excelência no desenvolvimento do capitalismo não pode, portanto, ser considerado como algo fortuito, já que nesse sistema a ordem só surge por meio da desordem, assim como por meio de crises irregulares e periódicas. Ela se afigura, assim, tanto como uma apologia do bom funcionamento do sistema quanto como uma ferramenta da política econômica que imagina poder atuar para consertá-lo quando supostamente se desvia do ótimo idealizado.
Note-se, agora, que Marx nunca tratou a economia política como uma ciência natural capaz de fornecer receitas de política econômica. Nunca construiu modelos que simbolizavam o desempenho do sistema econômico mecanicamente. A ideia, por exemplo, de empregar a teoria do equilíbrio geral para fundamentar o planejamento socialista, lhe teria parecido como algo bem absurdo. Ao contrário de seus epígonos cientificistas, também não fundou a prática política numa suposta cientificidade forte que orienta, baliza e constrange os desígnios humanos, tal como ocorreu com o deslizamento histórico da ideia infeliz do socialismo científico: o partido-filósofo do proletariado. A crítica do romantismo utópico não poderia ter caído numa lógica objetivista, que se via como capaz de prescrever ex-ante o que viria ex-post na história, porque supostamente conhecia as suas leis de desenvolvimento.
Por outro lado, ainda que não com as mesmas consequências, é bem evidente na prática política dos economistas neoclássicos o esforço constante para interditar as políticas que, sob a sombra dessa teorização, parecem ameaçar o “bom” funcionamento do sistema econômico tal como existe. Apenas uma cientificidade fraca, baseada em interpretações que se abrem para a crítica, para o debate, para as decisões coletivas, pode ser consistente com a democracia não apenas formal e aparente como existe – mas que, por isso mesmo, não deixa de ser melhor do que qualquer ditatura. Os economistas neoclássicos, tal como os burocratas soviéticos, não podem negar que às vezes promovem políticas que causam silenciosamente sofrimentos e mesmo milhares de vítimas. Devem eles, entretanto, assumir a culpa por essas ocorrências, ditas colaterais? O que eles alegam quando negam essa possibilidade?
Ideologia e/ou tecnociência
Para Marx, o erro de Walras acima apontado é consequência da ideologia que medra espontaneamente a partir da esfera da circulação mercantil do modo de produção capitalista; pelo termo ideologia, como se sabe, ele indicava sempre uma aparência socialmente necessária. As trocas de mercadorias se afiguram, sim, como fatos naturais no capitalismo, mesmo se são eventos implicitamente sociais. Para falar da troca de mercadorias de um modo veraz nessa interpretação que se enxerga como crítica, é preciso dizer com Marx que se tem assim “relações sociais de coisas” ou relações fetichistas de mercadorias.
Essa mesma aparência, por outro lado, clama por uma cientificidade dura e vulgar como a da teoria neoclássica que se contenta em apreender o nexo aparente entre os fenômenos como “tipos” ou “fatos”. Muitos economistas pensam que Marx formulou também uma concepção metafísica do capitalismo porque fez uso da categoria de trabalho abstrato para explicar os valores que se manifestam nos valores de troca. O que eles não sabem é que, para Marx, o próprio capitalismo é que é metafísico: não disse ele que a mercadoria é algo sensível suprassensível?
Para compreender melhor essa teorização é preciso ir ao encontro do saber crítico desenvolvido por Jacques Lacan na forma de uma ciência da linguagem em que moram os sujeitos sociais, na tradição que vem de Sigmund Freud.[2] A primeira lição crucial que se obtém desse choque cultural é que os humanos são seres de linguagem e que este meio de existência tem para eles um valor equivalente ao patrimônio genético: mesmo a existência física dos humanos se torna impossível sem o domínio de uma linguagem, da valência quase infinita das palavras que a compõem.
Trata-se esta última de um sistema de significantes em que o indivíduo tem de entrar para que possa assumir um lugar entre os seus semelhantes. Ora, vir a se tornar capaz de falar implica em tomar distância do real, em não estar em contato direto com as coisas, em passar a viver para sempre nesse meio, nesse envolvimento de palavras – substantivos, verbos, preposições etc. – e os seus significados quase sempre imprecisos. Se assim se concretiza a possibilidade de o indivíduo emergir como um sujeito social, essa realização implica numa negação do mundo da coisidade pelo mundo da significância. Lebrun indica que a assunção ao mundo de uma linguagem implica numa alienação, já que o descolamento do real por ela implicado é normalmente esquecido na prática cotidiana.
Como se sabe desde Freud, essa entrada na condição de sujeito implica em estar a partir de então dotado por uma duplicidade, uma unidade contraditória, o consciente e o inconsciente. Para Lacan, se o consciente faz uso dela para recriar o real e criar o imaginário, o inconsciente encontra-se estruturado como uma linguagem. Como a linguagem tem regras próprias, implica em obrigações e põe demandas, como dá forma à memória superficial e profunda do sujeito à sua revelia, o inconsciente assume o caráter de um Outro em relação ao Eu. Há duas características dessa estruturação reflexiva que é preciso enfatizar: por um lado, ela é incompleta, tem lacunas, suporta a indeterminação, por outro é aberta e permanece em contínua transformação. Em consequência, se permite a emergência do sujeito pessoal e social, transmite-lhe essa incompletude, essa indeterminação e abertura à mudança.
Bem, esses três últimos parágrafos sobre o saber psicanalítico de base foram necessários para que se pudesse falar do discurso da ciência moderna, marcado indelevelmente pela metafísica da presença, o que é obviamente escondido e negado pelo objetivismo cego da ciência positiva, mas não por Walras. Veja-se, de início, que a instância do Outro mostra que há uma alteridade no próprio interior do sujeito, a qual, entretanto, não deveria nunca o determinar fortemente, dizendo inclusive o que ele é e vem a ser no contínuo do tempo.
Se há, pois, um processo de constituição da subjetividade, se esse processo se constrói por delimitação em relação ao Outro, este último está sempre aberto para ser ocupado por discursos que sobrevém da sociedade. De modo genérico, costumam estar aí ancorados as falações do poder, da ciência, da religião etc. Como diz Lebrun: “o subjetivo e o social enodam-se na necessidade de instituir o vazio”, aquilo que preenche as lacunas do Outro de cada um e que é crucial para a formação da mente individual; assim, os processos da “institucionalização e subjetivação se interpenetram e caminham estreitamente juntos” na constituição dos laços que unem os indivíduos entre si, formando a sociedade (Lebrun, 2008, p. 87).
Ora, o Outro é sempre também um lugar de lutas em que se defrontam, por exemplo, enunciações conformistas e transformadoras do individual e do social. As teorias críticas, entre elas a própria psicanálise, querem também exercer um papel na formação desse Outro que as pessoas guardam em si mesmas sem perceber em geral que ele está aí. Mas não para ordenar a mente das pessoas. Ao contrário, para permitir que os sujeitos se tornem capazes de reconhecer o que vem do Outro e seus ditames, permaneçam ativos na reflexão, permitam-se ficar em dúvida e passem a criticar as pessoas, as instituições e a si mesmos quando julgam necessário, passando a pensar com um bom grau de autonomia.
Vem de Nietzsche a tese de que na época moderna ocorreu uma vitória do método científico sobre a própria ciência (Lebrun, 2004, p. 51), uma tese que precisa ser apropriada na crítica da sociedade contemporânea. Por um lado, o saber que essa cientificidade veicula mina de forma inexorável a preponderância que os discursos da soberania e da religião tinham na sociedade pré-moderna. Por outro lado, enquanto modo de alocução que se pretende exato, rigoroso e até mesmo indiscutível, a ciência ganha uma autoridade que extravasa o seu próprio âmbito de validade, passando, assim, a conformar a vida social como um todo. Não se trata aqui, obviamente, de questioná-la enquanto tal, mas apenas de fazê-lo em relação ao seu poder de ditar o que é certo e errado, o que se deve fazer. É se notar, por exemplo, que a ciência hoje invade e constrange os âmbitos da ética e da política. Segundo Lebrun, não se trata apenas de que a ciência possa ser tomada como ideologia ou que tenha ganho um acento ideológico, isto é, uma pretensão de saber que de certo modo falseia a compreensão da realidade. É mais do que isso.
Trata-se do seguinte: a cientificidade que prospera na atualidade não quer apenas ocupar um lugar importante no Outro das pessoas em geral, contentando-se em ter apenas uma valência interpretativa que deve ser sempre adotada com cuidado e sob deliberação democrática, mas pretende ir além, muito além; eis que quer ter uma validade de saber incontestável por todos aqueles em que incidem, dominem ou não os seus códigos. Ela quer preencher o espaço vazio que sempre existe no Outro, tal como a soberania e a religião o fizeram no passado pré-moderno da sociedade atual, isto é, na época medieval. Se esses dois últimos discursos perderam a primazia na sociedade moderna, o discurso da ciência, em especial da ciência positiva, veio substituí-los com a finalidade precípua de conter a democracia naquelas matérias sensíveis ao poder da classe agora dominante, ou seja, da burguesia.
Ademais, assim se apresentando, permite que ocorra uma transferência de responsabilidade dos experts, dos atores sociais que enunciam conhecimentos científicos para além deles mesmos, ou seja, para a própria Ciência – um sujeito impessoal. O indivíduo sujeito assim abdica em parte ou completamente da condição de sujeito da enunciação, que fala e diz o que julga que deve ser proposto na situação que é o caso, e se transforma numa correia de transmissão do saber científico que passa, assim, a gozar de uma autoridade que de fato não tem.
Eis que esse abuso acontece “porque o método científico (…) engendra, de fato, (…) um cientificismo ordinário” que inflaciona a validade do discurso da própria ciência (Lebrun, 2004, p. 55). O saber que assim se enuncia, contra a pretensão de Walras, deve ser considerado não apenas como ciência, mas como tecnociência. Mesmo se se apresenta como ferramenta teórica capaz de bem conduzir um reformismo moderado ou mesmo um “socialismo” ditatorial e tecnocrático. Eis talvez a razão pela qual a teoria neoclássica é normalmente ensinada em vários países que atualmente ainda se apresentam como “comunistas”.
A ciência é sempre um acontecimento linguístico, tal como, aliás, todas as formas verdadeiras ou pretensas de saber sobre a natureza e a sociedade. E por formas verdadeiras se entendam aqui as boas interpretações que podem ser corroboradas por experiências práticas bem-sucedidas. Estas, por sua vez, são encaradas também como expressões linguísticas sobre comportamentos reais que se encontram abertas às dúvidas, aos questionamentos e à historicidade. Note-se, porém, que essa concepção de verdadeiro está em contradição formal com o projeto da ciência moderna já que esta busca o conhecimento apodítico, digno de crédito porque se deriva de métodos precisos de investigação.
O ideal de ciência que Walras professa na determinação dos preços fica mais claro quando se percebe que o seu platonismo passa também por Descartes: para conhecer o real – considerou este filósofo –, não se deve começar pela experiência, pelo contato com o mundo real, mas, ao contrário, é preciso se voltar para o próprio entendimento, buscando aí ideias claras e distintas (Descartes, 1983). Ora, nessa perspectiva, o conhecimento apenas pode ser tido por verdadeiro se pode ser posto na forma demonstrativa do raciocínio matemático.
Contrariamente a esta última perspectiva, a ciência nunca deve se apresentar como um discurso ditatorial, um discurso que possa apoiar as formas modernas de exploração e dominação. E esta lição deve ser aprendida tanto à direita quanto à esquerda no espectro político das sociedades de hoje.
Para Aristóteles, esse tipo de conhecimento era uma epísteme, ou seja, um saber que alguém pode ditar para o outro, sem a necessidade de discussão. Para esse autor, entretanto, havia também o conhecimento que se configurava como phronesis, ou seja, como compreensão prática e/ou deliberação prudente sobre as questões morais e éticas. Nesse segundo caso, os atos de fala têm de se apresentarem como completos[3], ou seja, como tendo uma dimensão retórica.[4] Ora, essa tradição também não está ausente na compreensão de ciência de Walras.
Ao contrário de muitos de seus sucessores, Walras era crítico da posição que excluía a moral e a política do âmbito do saber econômico. Como se sabe, Walras era um reformador social que atuava a favor da estatização das terras e da produção nos setores dominados pelos monopólios. Para ele, a ciência econômica não poderia ser considerada só como uma ciência natural:
“Esse [último] ponto de vista [seduziu os economistas porque] ajudava de uma maneira singular na luta contra o socialismo (…), [mas ele] é tão falso como cômodo. Qualquer plano de organização do trabalho, qualquer plano de organização da propriedade era por eles repelido a priori e, por assim dizer, sem discussão.” (Walras, 1983, p. 10).
Nessa perspectiva, dizia ele, tudo que é demandado em nome do interesse humano e da justiça social pode ser descartado como combinação artificial que não pode ser indevidamente introduzida na combinação natural que deve prevalecer. Ora, dizia ele ainda, “o homem é um ser dotado de razão e liberdade, capaz de iniciativa e de progresso em matéria de produção e de repartição da riqueza” (idem, p. 10). E que, portanto, pode mudar o mundo conforme o seu desejo de obter uma vida boa.
Como ficou claro, Walras não excluiu do seu discurso científico a possibilidade de encomendar mudanças estruturais na sociedade – ao contrário, parece considerá-las como bem necessárias.[5] Ele acreditava verdadeiramente que as coisas deveriam estar subordinadas à vontade democrática das pessoas. Mas são justamente essas mudanças que a grande massa dos atuais economistas neoclássicos – não todos, certamente – esmeram-se para não deixar que aconteçam por se fiarem em um saber que julgam superior e mesmo incontestável. Note-se, em adição, que a ética e a política contemporânea não podem mais se basear num domínio irrestrito da natureza que é também, ao fim e ao cabo, um domínio brutal de homens sobre os homens.
Referências
Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max – Dialética do esclarecimento – fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.
Carneiro Netto, Dionísio D. – Apresentação: Walras. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1983.
Descartes, René – Discurso do método. In: Descartes, Os pensadores. Editora Abril, 1983.
Horkheimer, Max – Teoria tradicional e teoria crítica. Coleção Os pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1975, p. 125-169.
Lebrun, Jean-Pierre – Um mundo sem limite. Ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
_____________ – A perversão comum – viver junto sem o outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
McCloskey, Deidre N. – The rhetoric of Economics. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1985.
Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política, Livro Primeiro, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Smith, Adam – A riqueza das nações – Investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Vattimo, Gianni – Adeus à verdade. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
Walras, Léon – Compêndio dos elementos de Economia Política pura. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
[1] Essa metafísica foi severamente criticada por Adorno e Horkheimer: agarramo-nos a “uma teoria que atribui à verdade um núcleo temporal, em vez de opô-la ao movimento histórico como algo imutável” (1985, p. 9). Mas também por Nietzsche e Heidegger: “eles é que criticaram a fundo a ideia de verdade como objetividade e que, apesar das aparências e suas intenções, puseram as bases para uma visão radical da democracia em si mesma” (Vattimo, 2009, p. 21).
[2] Grande parte do que vem em sequência baseia-se num livro de Jean-Pierre Lebrun (2008) em que os principais ensinamentos de Jacques Lacan são apresentados de um modo acessível àqueles que não militam no campo da psicanálise e que não estudam esse autor durante anos e anos a fio.
[3] Na teoria dos atos de fala de John L. Austin (1911-1960): locucionário é o ato de dizer; ilocucionário é o ato de se dirigir a outro expressamente; perlocucionário é o ato de buscar provocar um efeito no outro por meio da locução, influenciando os seus sentimentos e/ou pensamentos.
[4] No campo da economia política contemporânea, McCloskey distinguiu-se por defender essa posição da perspectiva neopragmatista norte-americana. Entretanto, não deixou de chamar a economia política de Economics – o que é bem contraditório (McCloskey, 1985).
[5] Segundo Carneiro, Walras era um reformador social que acreditava que as transformações necessárias só podiam ser empreendidas de forma científica. Ele se opunha ao “racionalismo reacionário de Say e ao emocionalismo bem-intencionado dos chamados ‘socialistas utópicos’ (especialmente Proudhon, Fourier e Saint-Simon” (Carneiro Neto, 1983, p. x). Ocorre que o melhor método de se opor às interpretações indevidas é a teoria crítica, e não a teoria metafísica ou a teoria tradicional (Horkheimer, 1975).
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