Para além da descrição da realidade

David Pavón-Cuéllar – Psicanalista marxista mexicano. Fonte original – Blog do autor 9/01/2015:

Crítica ao pós-modernismo latente em Slavoj Žižek. Dando continuidade ao seu legado por outros meios:  uma volta à dualidade teoria/prática por meio de Marx e Lacan[1]

 Gostaria de dizer algumas palavras sobre uma questão central contida em meu livro Elementos políticos do marxismo lacaniano, mas que não pude resolvê-la enquanto o escrevia. Ela continua a parecer insolúvel, embora tenha refletido muito sobre ela nos últimos anos. Talvez minhas reflexões recentes possam dar início à conclusão de algumas ideias truncadas que persistiram em meu livro. Porém, como se verá, tais ideias só podem ser completadas por meio da prática, no processo da própria transformação, e não apenas por meio da descrição da realidade, como diria Marx.

É claro que devemos começar descrevendo a realidade. E isso, ao contrário do que se possa acreditar, não é tão fácil nem tão comum, principalmente nestes anos de realidade virtual, desertificação da realidade e pensamento único hiper-realista. Apesar de tudo, nós, marxistas, devemos aceitar que ainda existe uma realidade. Mas como concebê-la?

É difícil resistir a lembrar aqui e agora um cartoon de Stéphane Charbonnier, mais conhecido como Charb, editor do Charlie Hebdo que morreu há três dias em Paris. No cartoon, Marx conversa com o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy. Os dois compartilham uma mesa e estão sentados um em frente ao outro. Sarkozy, talvez preocupado, mantendo uma atitude rígida e bebendo café, diz: “o conceito de luta de classes saiu de moda, pois nem mesmo a esquerda o usa mais”. Marx, mantendo os olhos bem abertos, bebendo vinho em vez de café, responde com certa irritação: “não é porque essa descrição da realidade saiu de moda que a realidade não existe mais”.

A realidade continuaria existindo mesmo quando deixa de estar sendo descrita nos discursos correntes. Mesmo que não se fale mais em luta de classes, as classes não pararam de lutar. Só que agora elas estão lutando em silêncio. Há, pois, uma luta real, mas dela não se está falando mais. Não consta mais da descrição comum da realidade, mas nem por isso deixa de estar presente na realidade.

Poder-se-ia censurar o Marx do cartoon[2] por se apegar ainda a uma diferenciação ingênua entre a realidade e a sua descrição. Como manter essa diferenciação, de forma nítida e categórica, depois da fenomenologia e da hermenêutica, depois da virada linguística e do estruturalismo, depois do pós-estruturalismo e do pós-modernismo? As vanguardas intelectuais contemporâneas não ensinam que não há realidade além de sua descrição, que o real está apropriado no discurso e que, por isso, não se pode mais apreendê-lo em si mesmo?[3] As coisas não podem ser tomadas como independentes das palavras, mas, ao contrário, encontram-se inextricavelmente ligadas a elas.

A descrição deixou de ser uma simples descrição da realidade, pois passou a ser a própria criação e transformação da realidade, sua articulação interna, o seu fundamento. Por pelo menos cinco décadas, vem se acreditando que a descrição funda a realidade ao invés de a realidade fundar a sua descrição. Em vez de funcionar como uma representação da realidade, a descrição constitui o próprio cerne da realidade. É a verdade da realidade e não apenas a imagem de uma realidade identificada com a verdade última.

Se a verdade reside na descrição, a realidade perde sua verdade e cai na condição de entidade ilusória ou imaginária. A realidade tornou-se, assim, ainda mais duvidosa e suspeita do que qualquer uma de suas descrições. É algo para o qual Lacan também contribuiu ao buscar a verdade na palavra e ao dissociá-la de uma realidade que tomou como imaginária. Depois de Lacan e seus contemporâneos, deixamos de levar a sério aqueles que ainda insistiam em pressupor a existência da realidade. Nessa perspectiva, contra o Marx de Charb, afirma-se que a realidade saiu de moda porque a sua descrição saiu também, antes, de moda. Ademais, parece por isso mesmo que a luta de classes tenha saído de moda. Saiu de moda porque o discurso marxista da luta de classes também saiu de moda.

Do final dos anos 1970 até o limiar do terceiro milênio, a moda intelectual não foi certamente nem a realidade, nem Marx, nem a luta de classes, nem as descrições que ele apresentou, mas descrições de descrições, palavras sobre palavras, a falta de referente correlativo da falta de luta. Viveu-se a moda pós-moderna. Foram anos em que, como aponta o Sarkozy de Charb, nem mesmo a esquerda falava mais da luta de classes. Em solo francês, a esquerda intelectual pós-moderna deixou de ser marxista e tornou-se, na melhor das hipóteses, foucaultiana, derridiana, deleuziana ou lacaniana.

É claro que parece simplista reduzir a esquerda lacaniana ao movimento intelectual pós-moderno. Os vícios da suposta pós-modernidade foram criticados pelos mais importantes representantes da esquerda lacaniana. Alguns deles, além de se apresentarem como marxistas, distanciaram-se abertamente do pós-moderno. Sabe-se, para citar os casos mais conhecidos, que tanto Badiou quanto Žižek demarcaram-se claramente do pós-modernismo. Eles o reprovaram por seu ceticismo, seu relativismo, sua negação do absoluto, sua falta de compromisso com a verdade e sua rejeição do real no sentido lacaniano do termo.

O pós-moderno foi denunciado como uma forma de materialismo democrático por Alan Badiou; como o império do cinismo e do sofisma por Salvoj Zižek. Ambos esses pensadores, de fato, colocaram-se na corrente marxista e se opuseram à esquerda reformista ou populista pós-marxista. No entanto, como bem se sabe, esses dois autores divergiram e não apenas por causa das opções respectivamente afirmativa e negativa que fizeram pelo maoísmo e pelo leninismo.

Não seria justo, portanto, considerar Žižek e Badiou da mesma forma a respeito de tais recusas. Parece-me que Badiou está muito próximo do marxismo lacaniano  que defendo no citado livro. Ele não incorre em praticamente nenhum dos vícios que atribuo ao pós-modernismo e à esquerda lacaniana naquele livro.

A posição de Žižek é mais complicada. Como não reconhecer e admirar, além de sua originalidade e versatilidade, aquele radicalismo crítico e polêmico pelo qual se distingue claramente dos representantes do pós-modernismo? E como deixar de valorizar o seu questionamento incisivo, profundamente inspirado no marxismo, das incertezas que atravessam a metanarrativa pós-moderna?

Mas também, ao mesmo tempo, como não ver as infiltrações do pós-modernismo nos textos de Žižek e que o fazem resvalar nos limites da esquerda lacaniana? Pois, como sabe, está não é marxista. Considere, por exemplo, sua relativização retórica de todas as categorias absolutas do marxismo, sua volatilização das bases e sua dissolução das causas, sua degradação humorística da seriedade militante, sua rejeição da vontade e da estratégia, sua confiança na espontaneidade cega e irracional do ato indeterminado, sua propensão a individualizar o coletivo e subjetivar o objetivo, sua concepção de uma ideologia que só sabe sair de si reabsorvendo-se em si mesma.

É preciso se deter aqui, por um momento, no último ponto, isto é, no fato de que o saber zizekiano não se resolve na prática. Marx insistia na necessidade da prática para a resolução de grandes problemas teóricos aparentemente insolúveis, entre eles as dicotomias em que a reflexão fica presa, aprisionada, contida.  Esse é o caso da distinção problemática entre sujeito e objeto. Quando a prática subjetiva é revolucionária e transforma o mundo objetivo, o transformado se torna uma expressão do sujeito no objeto. O transformado é então tão subjetivo quanto objetivo. É assim que se torna possível superar a problemática inerente à dicotomia sujeito/objeto. O problema é resolvido por uma prática revolucionária que não é a simples aplicação da teoria, mas a continuação da teoria por outros meios.

Ora, algo semelhante acontece no sofá do psicanalista. Aí, tal como na práxis proposta pelo marxismo, um exercício teórico que não tenha continuação na prática não é apenas abstrato, mas se mostra incompleto, inacabado, truncado. Ora, este é o caso de muitas das especulações zizekianas. Começam muito bem, mas não acabam, pois só poderiam acabar se saíssem da esfera especulativa. Em vez de sair, elas se retraem repetidas vezes, torcendo-se, mas sem chegar a nada. E isto pode então ser facilmente justificado pelas noções lacanianas de enigma e de verdade, as quais, segundo ele, só podem ser acessadas pela metade. Mas o que falta é precisamente a prática da verdade, da verdade que se põe na prática e que retroage por meio de seus efeitos, tal como ocorre em Marx e mesmo em Lacan.

Em vez de se comprometer apenas com uma verdade teorizada, isto é, com uma meia verdade, Žižek suprime o complemento prático efetivo, a outra metade que a completa. Assim, com entusiasmo, passa oferecer apenas a metade teórica da verdade. Fica-se assim apenas com o exercício intelectual. É possível até ficar convencido que este consiste na única prática possível, que o exercício teórico é em si mesmo autossuficiente. Ora, essa posição é uma ilusão comum entre acadêmicos e intelectuais. Ademais, este parece ser o destino de toda dialética idealista hegeliana tal como aquela posta em ação por Žižek.

Ora, o que August Von Cieszkowski, autor importante para a ruptura de Marx com Hegel, recomendou foi a superação desse impasse por meio do ser prático, um ser-fora-de-si, que transcenderia definitivamente a contradição teórica aparentemente intransponível contida na dialética do ser-em-si e do ser-por-si. É assim que Cieszkowski, preparando o terreno para Marx, encontrou uma nova saída para a Fenomenologia do Espírito:  o saber, para ele, deve se libertar de si mesmo para que a história continue sendo possível.

Para Cieszkowski, a filosofia hegeliana seria insuperável no plano teórico da existência e da consciência, do ser-em-si e do ser-para-si, mas poderia ser superada no plano prático da luta social, do ser-fora-de-si. Ou seja, quando os filósofos, como disse Marx, deixam de se limitar a descrever o mundo para começar a transformá-lo.

De igual forma, para Marx, a filosofia aristotélica não poderia ser superada especulativamente, mas apenas praticamente, por meio de filosofias de vida tais como o estoicismo ou o epicurismo. Daí a identificação do jovem Marx com Epicuro. Ambos estavam à sombra das grandes teorias que os precederam, a aristotélica e a hegeliana, e ambos sabiam que só poderiam superá-las continuando sua teoria na prática. Esta continuação é tão crucial na psicanálise quanto no marxismo,

Uma questão: a simples descrição da realidade não afeta o que é descrito e, assim, não gera também a sua transformação, até mesmo imediatamente, sem requerer a intervenção prática de quem se aplica à descrição teórica? A distinção entre teoria e prática não requer aceitar a existência de uma metalinguagem teórica diferente da linguagem prática? É verdade que a distinção entre prática e teoria, entre transformação e descrição da realidade, parece hoje tão insustentável quanto a própria distinção entre realidade e sua descrição. Na verdade, ao se examinar essas distinções cuidadosamente, percebe-se que é sempre a mesma distinção inaceitável entre a linguagem prática que incide efetivamente sobre a realidade, que é a da transformação da realidade, e uma metalinguagem teórica que consiste apenas em sua descrição.

Quando se rejeita a existência da metalinguagem, tal como Lacan e Žižek, descobre-se que a metalinguagem teórica da descrição é apenas uma manifestação teórica da própria linguagem prática da transformação efetiva. Transforma-se já quando se descreve. Também se age especulando. Em termos althusserianos, a teoria é apenas uma prática teórica.

Pense-se em tudo o que Marx conseguiu transformar na prática a partir e por meio de sua descrição teórica do capitalismo. A obra O capital é puramente descritiva, mas também altamente transformadora. Então, por que Marx persistiu em distinguir a velha filosofia como mera descrição e a nova filosofia como transformação do mundo? Por que Marx insistiu em distinguir a metalinguagem idealista clássica e a linguagem materialista revolucionária? Essa distinção parece ainda mais incompreensível quando se chega a lembrar que Marx se propôs a demonstrar precisamente que não existe metalinguagem – tal como bem observou Lacan.

Se não existe metalinguagem, então ela também não existia antes de Marx. Não havia filosofia que fosse pura descrição. A filosofia sempre teria sido transformadora e continuaria a sê-lo em pensadores puramente idealistas e especulativos como Žižek. Isso é o que o próprio Žižek parece pensar. É também o que dá sentido ao seu trabalho.

Mas o mistério da distinção de Marx entre a velha filosofia como descrição e a nova filosofia como transformação do mundo permanece. Como entender essa distinção? Como entender esse ponto sem acolher a metalinguagem? Acho que só existe um caminho possível e este consiste em entender a relação entre descrição e teoria sem supor que há uma metalinguagem e que esta última se sobrepõe à linguagem posta na própria realidade, no processo prático de transformação.  A teoria e a prática devem ser apreendidas – reitero – como partes incompletas de uma mesma linguagem; a teoria consiste numa metade que só pode se completar, ganhar a outra metade, por meio de seus efeitos na transformação prática da realidade.

Uma vez que a descrição teórica esteja completa, ela realiza retroativamente a sua verdade na prática transformadora. Acho que é isso que ainda está faltando na descrição zizekiana. E por que está faltando? Não há tempo agora para responder como seria necessário fazê-lo. Só é possível expressar simplesmente uma suspeita, a de que a descrição de Žižek está incompleta. Eis que ela não foi completada com a prática e que, por isso, falhou em ter efeitos transformadores. Ocorreu assim pela simples razão de que ele falhou em se fazer ouvir e entender por aqueles que têm as razões mais poderosas para transformar a realidade.

Marx conseguiu completar seu pensamento com o movimento revolucionário que desencadeou. Foi a mesma coisa que muitos de seus seguidores alcançaram, como Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky ou Mao-Tse-Tung. Foi também o sucesso do subcomandante Marcos no México. Todos eles demonstraram a verdade inerente a sua proposta de conhecer por meio de seu poder de transformar a realidade.

Talvez Žižek, assim como outros autores da esquerda lacaniana, haja apresentado a sua verdade ao transformar a experiencia de certos indivíduos. Contudo, esses indivíduos, na perspectiva de Marx, não existem senão como abstrações imaginárias do verdadeiramente concreto, que são as classes e os outros sujeitos transindividuais da história. Afinal, a reprodução da ordem estabelecida não pode ser garantida pela micro revolução ocorrida em determinado indivíduo. A prática revolucionária só existe quando também é transindividual. Enquanto não houver efeito histórico das ideias nas lutas de classes, as ideias serão desprovidas de verdade.

Podemos dizer que a verdade das ideias da esquerda lacaniana ainda está em suspenso. Falta sua verificação retroativa, que, por mais indireta que seja, demonstrará o que é resolvendo alguns dos enigmas que permanecem nessa promissora corrente de pensamento. O problema é que parece não haver interesse em resolver esses enigmas. Nem mesmo se percebeu que o enigma só conserva sua dignidade, aquela sublinhada por Lacan, justamente quando se tenta resolvê-lo por meio da transformação prática da realidade.

Ouso dizer que a resolução do enigma teórico por meio da prática revolucionária está fora de moda. O que saiu de moda – julga-se aqui – não foi a descrição da realidade, como acredita o Marx de Charb, mas sua própria transformação, aquilo que aprofunda e realiza aquilo que está posto naquela descrição. Talvez, porém, seja mais correto dizer que a descrição da realidade realmente saiu de moda no triste período pós-moderno, mas que agora, de repente, voltou a estar na moda. E isto mostra o próprio, por exemplo, quando defende a noção de luta de classes contra uma difusão de antagonismos, tal como ocorre nos textos de Ernesto Laclau. Agora, tudo o que é agora necessário é que o modo intelectual de transformação da realidade volte a ser uma continuação indispensável da descrição.

Só é possível descrever totalmente a realidade transformando-a e, assim, apresentando o que ela pode se tornar. Essa possibilidade faz parte da sua realidade. Não se pode dar conta de sua realidade sem revolucioná-la. É também para isso que ainda se necessita de Marx.

_____________________________

[1] Palestra durante a apresentação do livro Elementos Políticos do Marxismo Lacaniano na Casa Vlady da Universidade Autônoma da Cidade do México (UACM), com a participação de Carlos Gómez Camarena, Amorhak Ornelas e Aliber Escobar. Cidade do México, 9 de janeiro de 2015.

[2] N. T. Mas não, evidentemente, o próprio Marx por seu textos já que, para ele, descrição é antes de tudo descrição da aparência que é já parte da realidade. A dialética não apenas descreve, mas apresenta a realidade como conceito.

[3] N. T. Note-se que isso é uma forma de idealismo, pois o ser humano não apenas apreende a realidade intelectualmente, mas o seu próprio o corpo humano está em contato permanente, na vida prática, com o real bruto.