A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (III)

Autor Samo Tomšič

A antissocialidade do capitalismo versus a sociabilidade da análise

Na citação inicial, antes apresentada, Lacan evoca a dialética hegeliana do senhor e do escravo, na qual o senhor é aquele que aposta sua existência numa luta de vida e morte. Enfrentando o risco, ele se põe como senhor não só de sua própria vida, mas também – e sobretudo – da vida dos outros que subordina. Ao transformar o adversário em seu escravo, o senhor simultaneamente triunfa sobre a morte. Mas Pascal não está preocupado com esse mito hegeliano da aposta inicial daquele que se transformará em mestre; na verdade, ele nos apresenta uma figura mais sofisticada e totalmente moderna do mestre.[1]

O mestre de Pascal não precisa apostar nada, porque o jogo que comanda delega o risco ao libertino, transformando-o num trabalhador compulsivo em prol de Deus. Transformado, o antes incrédulo deve trabalhar doravante para um Deus que é radicalmente indiferente ao sacrifício humano e cuja vontade não pode ser influenciada por nenhuma ação humana.

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A moral jansenista e a compulsão do capitalismo (II)

Autor Samo Tomšič

O surgimento da fé a partir da compulsão de repetir

Depois de vincular a noção de mais-valor à transformação moderna do gozo, Lacan volta-se para Pascal e, em uma série de sessões do Seminário XVI, focaliza um detalhe específico dos Pensées de Pascal. Observa a notória aposta com que Pascal se empenha, por um lado, em desenvolver um argumento probabilístico para a existência de Deus e, por outro, em lançar luz sobre o mecanismo da conversão, a transformação do incrédulo em crente.

Se a ligação de Pascal com o capitalismo deve ser buscada em algum lugar, este vem a ser o vínculo – a princípio um tanto excêntrico – entre a questão da existência de um ser supremo e o jogo de aposta, na função estrutural dessa aposta e no surgimento da fé. A aposta, de fato, representa uma sofisticada mudança na tradição filosófica já que o esforço fundamental da filosofia sistemática consistiu sempre em fornecer provas sólidas da existência de Deus. Ao longo de sua história, a filosofia investiu muito esforço nessa empreitada, mas os resultados foram fracos; particularmente com o advento da ciência moderna, já que, por causa dela, a certeza da existência de Deus tem sido cada vez mais minada internamente pela dúvida ateísta.

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