A onda reacionária e a pulsão de morte

Autor: Amador Fernández-Savater [1] – CTXT – 24/06/2023

O clima físico e afetivo hoje é revanchista, desigual, sacrificial para com os mais fracos. É aí que as mensagens da direita pegam. Não tanto por causa de sua força de convicção, persuasão ou sedução, mas porque ressoam com corpos tensos

  “Só o amor nos permite escapar da repetição” (Jorge Luis Borges)

O que significa a “onda reacionária” globalmente, aqui na Espanha [e na América Latina]? Como entender esse fenômeno complexo e multifacetado para melhor combatê-lo?

Proponho esta interpretação: a onda reacionária está tentando sustentar um mundo em crise, um modelo que está vazando para todos os lados.

O que hoje se chama de “policrise” (a combinação das crises climática, energética, alimentar, econômica etc.) refere-se fundamentalmente a uma “crise de presença”, entendida como a crise do modo de vida ocidental baseado no constante impulso de expansão, crescimento e conquista. Uma crise civilizacional de alcance planetário.

As diferentes crises são sintomas de um modo de estar consumidor e predatório no mundo que já chega aos limites por todos os lados: esgotamento dos corpos, esgotamento dos vínculos, esgotamento dos recursos, colapso ao mesmo tempo psíquico, social e ambiental.

O chamado “negacionismo” da onda reacionária, em relação à emergência climática, à desigualdade social ou à violência contra as mulheres, é a vontade determinada de não ver nenhum desses sintomas, de não ouvir ou pensar nada sobre eles, de empreender qualquer mudança com base neles, de seguir em frente como se nada tivesse acontecido e quem quer que caia.

Esses sintomas, a partir desse esquema cognitivo, são interpretados como “danos” que alguns poderes malignos infligem à ordem social. A supressão desses inimigos possibilitaria restaurar o bom estado das coisas, a presença dominante sobre o mundo.

O chamado “negacionismo” da onda reacionária é a vontade determinada de não ver nenhum desses sintomas, de não ouvir ou pensar nada sobre eles, de não empreender nenhuma mudança a partir deles

Nenhuma responsabilidade a tomar, portanto, pelo curso catastrófico do mundo. A onda reacionária desafia substancialmente sujeitos que se tomam como vítimas da situação. A vítima delega a elaboração de seu desconforto a certos poderes que prometem um “retorno à normalidade” assim que os males forem erradicados: “Make America great again” (Trump), “Let’s take back control” (Brexit).

O caso do Vox é muito claro a esse respeito. Pode ser lido como uma verdadeira “reação” em relação a tudo o que questionou o modelo em crise com base nos sintomas da agitação: primeiro o 15M,[2] depois o Podemos, depois o feminismo, finalmente o referendo de 1º de outubro.

Os “inimigos da Espanha” devem ser jogados no caixote do lixo da história, como explica muito graficamente o cartaz pendurado pelo partido de Abascal em Madri, para recuperar a ordem e a hierarquia de raça e nação, de gênero e poder de classe, de propriedade e suas prerrogativas.

A lógica do bode expiatório

O que foi posto em marcha, à escala global e local, é uma lógica de bode expiatório que desencadeia necessariamente uma violência generalizada. Há muitos inimigos a eliminar, muitos movimentos sociais a reprimir, muitos corpos a sacrificar, para continuar a viver como se nada tivesse acontecido. 

Essa lógica e essa paixão pelo sacrifício é o que Freud pensava há cem anos, no calor da primeira grande carnificina do século XX, como a “pulsão de morte”. Ou Tânatos.

A pulsão de morte, segundo o psicanalista vienense, é a busca instintiva de um estado de “tranquilidade psíquica” anterior à própria vida. Tânato pressiona para retornar à inércia do inorgânico, suprimindo as tensões da existência.

Essa tranquilidade psíquica, no campo social e político, se expressa como um ideal de normalidade perdida, quase sempre puramente fantasiada. A pátria quando não havia estrangeiros, a raça quando os brancos claramente dominavam, o sexo quando o comando era exercido sem questionamento pelos homens, a comunidade de vizinhos antes que aquela pobre mulher do primeiro se estabelecesse…

Exteriormente, a pulsão de morte é projetada como uma energia destrutiva contra tudo o que perturba a ordem. Interiormente, vira o sujeito contra si mesmo em uma espiral autodestrutiva de culpa e dívida. Ambos os movimentos se alimentam um do outro: o sentimento (interno) de culpa é condescendente com a busca de culpados (externos). O ódio à pobre mulher na primeira canaliza essa maldita inquietação interior que eu não entendo…

As tensões a serem eliminadas diferem de acordo com as geografias nacionais e as histórias políticas, mas há, sem dúvida, uma chave comum às mil faces com que a onda reacionária é mostrada hoje: a promessa de segurança. Uma segurança contra, ou seja, uma segurança na desigualdade, uma segurança que passa pela insegurança do outro.

Odiamos tudo o que evoca sintomas, tudo o que indica que “algo não está bem”, tudo o que nos lembra que mudanças são necessárias e urgentes.

A desigualdade é brutalmente afirmada, contra qualquer tentação de “fazer o bem”, como é pejorativamente chamado a ter um mínimo de sensibilidade social ou compaixão.

Adere ao que existe: a liberdade já existe, é poder fazer o que quiser, a liberdade do gozo privado, do consumo, de desconsiderar o comum, a liberdade do Ayuso.

Um problema corporal

Como escapar dessa lógica do bode expiatório, dessa paixão do sacrifício, dessa pulsão de morte desencadeada? O pessimismo freudiano nos dá mais pistas do que o idealismo progressista.

Perto do fim de sua vida, e depois de acumular anos e anos de experiência clínica, Freud percebe o seguinte: muitos pacientes simplesmente não querem ser curados. Observação terrível. 

A cura psicanalítica consiste em um longo processo de mudança e metamorfose. Mas há pacientes que preferem se acomodar na repetição do desconforto, entregar-se até mesmo ao status de vítima, mesmo que doa, limitar-se a apontar o dedo da culpa e exigir punição, tudo ao invés de embarcar nessa difícil aventura que é a transformação pessoal, a mudança de pele.

Em seu artigo “Análise terminável e interminável”, Freud nos oferece três explicações possíveis para esse fenômeno: 1) a resistência à mudança imposta pelas proteções que o sujeito vem construindo ao longo de sua vida, o temível peso da inércia, o esgotamento da plasticidade física e psíquica; 2) a própria ação da pulsão de morte, agora expressa como “narcisismo defensivo”: a ideia de que minha segurança passa pela insegurança do outro, mors tua vita mea, e 3) a rejeição visceral da feminilidade, ou seja, a recusa de abrir-se ao outro para receber ajuda, de mostrar fragilidade, de abandonar-se a um certo não saber. 

Não é uma questão de vontade, mas de corpo. Corpos amarrados, emparedados, narcisistas são incapazes de autotransformação e cura. Eles vão preferir se acomodar na repetição e apontar inimigos-culpados do lado de fora, mesmo que o mal-estar os devore lá dentro. 

Levando isso para o plano político, o problema é que a esquerda não sabe o que fazer com os corpos. Ele acredita que a mudança é uma questão de pedagogia, de moral, de argumentos, de explicações, de números, de gráficos, de histórias, de significantes, de imaginários. É profundamente idealista. O verdadeiro materialismo só pode passar pelos corpos e suas pulsões. Não é que as pessoas sejam más, ou desinformadas. Não se trata de comunicar melhor, ter mais recursos ou apresentar bem os números. A onda reacionária se espalha graças à tensão dos corpos.

O clima físico e afetivo hoje é revanchista, desigual, sacrificial para com os mais fracos. É nesse clima que se acendem as mensagens da onda reacionária. Não tanto por sua força de convicção, persuasão ou sedução, mas porque ressoam com corpos tensos.

Um Eros social e político

Só um afeto pode curar outro, só um clima pode substituir outro, só o amor nos permite escapar da repetição, “só Eros pode subjugar a pulsão de morte”, diz Freud no final de O mal-estar da cultura.

Essa é a chave para entender como, enquanto as plantas venenosas da onda reacionária já cresciam em toda a Europa após a crise de 2008, na Espanha, a saída da crise foi confiada a um impulso igualitário de mudança, exatamente o inverso da lógica do bode expiatório.

O 15 M foi, sem dúvida, a expressão política de um Eros social, qualidade que ainda não é totalmente pensada doze anos depois, devido à incapacidade de pensar politicamente sobre afetos e a partir de afetos.

Diante do vitimismo ressentido, da responsabilidade, do controle e do protagonismo de quem quer que seja.

Diante do apontamento de inimigos, da culpabilização e do desejo de punição, da ação transformadora e não delegada, da ampliação da sensibilidade social, do contágio da empatia.

Diante do narcisismo mortal das pequenas diferenças, da inclusão e da cooperação, da abertura e do gosto pela pluralidade.

Diante da violência contra os fracos, uma força dos fracos, uma raiva que não se desencadeia contra ninguém e de forma alguma, mas é ativada em defesa da vida, “raiva digna”, como lhe chamam os zapatistas.

Um Eros social e político é o impulso organizado para deter a destruição, o impulso de cooperação que inventa formas de instituir-se e, por último, a arte da composição sensível com o outro. Um amor a partir da autonomia, para com pessoas, vínculos ou territórios, amor entendido como cuidado de um potencial livre.

Eros é destruído hoje diariamente, devastado em uma sociedade que faz extração de lucro e controle a ligação com as coisas e o mundo. Na escola, no trabalho, nos bairros, impõe-se a guerra de todos contra todos. Mas só a força de Eros pode ressignificar corpos para a mudança, reinventar proteções da vida contra a segurança recíproca, permitir uma doce abdicação da presença dominante nos modos “femininos” de estar no mundo.

Como vamos reativar hoje o poder de um Eros social, em meio às ruínas deixadas pela guerra diária de todos contra todos? É politicamente a questão mais difícil, mais urgente.

Eros também persegue a “tranquilidade psíquica”, explica Freud, mas não pela supressão de tensões e anomalias, diferenças e alteridades, não como a paz dos cemitérios, mas pelo cuidado, enriquecimento e embelezamento da vida. É por isso que só Eros pode subjugar Tânatos: ele satisfaz o mesmo desejo da pulsão, mas de outras maneiras.


[1] Pesquisador independente, ativista, editor, ‘filósofo pirata’. Publicou recentemente “Habitar e governar; inspirações para uma nova concepção política” (edições Ned, 2020) e “A força dos fracos; Um ensaio sobre a eficácia política’.

[2] Os protestos de 2011 na Espanha, chamados por alguns meios espanhóis de Movimiento 15-M, Indignados e, nas redes sociais, “spanish Revolution”, são uma série de protestos espontâneos de cidadãos inicialmente organizados pelas redes sociais e idealizados pela plataforma digital civil “Democracia Real Ya!”.