Introdução: Eleutério F. S. Prado
Apresenta-se em sequência mais um trecho do livro Gozando com o que não se tem – o projeto político da psicanálise (Enjoying we don’t have – the political Project of psychoanalysis, 2013), de Todd McGowan. Assim como no anterior, busca-se nesta nova postagem continuar apresentado as conexões entre a psicanálise em sua versão não conformista e a crítica da economia política que vem de Karl Marx. Eis que esta última vem de Sigmund Freud, passa por Jacques Lacan e chega a autores como Slavoj Zizec.
A tradução do trecho escolhido é literal, mas aqui se propõe que a sua noção central, pulsão de morte, seja lida criticamente. Segundo a psicanálise contemporânea – note-se –, a pulsão em geral – e não o mero instinto – é uma característica do ser humano justamente por que ele é um ser de linguagem. Ora, essa pulsão mora no inconsciente, mas se manifesta no consciente na forma do desejo em todas as formas de sociedade. Nem sempre do mesmo modo.
Como ocorre no capitalismo? Como esse modo de produção está baseado na subsunção do trabalho ao capital e na subsunção do sujeito à lógica do capital, o desejo das pessoas fica subsumido a um mandamento acumulativo. Eis que o superego reafirma constantemente ao “sujeito” o modo de ser do próprio capital que, como bem se sabe, move-se segundo a lógica do mau infinito. Tem-se, em consequência, um desejo insaciável que se dirige também para a acumulação. Assim, o capitalismo captura os desejos do sujeito oferecendo-lhe satisfação supostamente possível, mas lhe entrega, ao fim e ao cabo, apenas insatisfação. E isso será bem explicado no texto traduzido.
O texto original – note-se – emprega muitas vezes o termo satisfação. Que fique, pois, entendido que faz referência à satisfação de gozar e não à satisfação proporcionada pelo prazer. Essa distinção é importante, porque gozar é um impulso que vem do inconsciente e lá mesmo se satisfaz e o prazer é algo que advém ao consciente em situações de estase e relaxamento. O gozo, ao contrário do prazer, é um impulso dinâmico cuja satisfação possível se dá por meio da busca por satisfação.
O texto original também emprega o termo “pulsão da morte” que não significa aqui retorno ao estado inorgânico, suicidarismo ou agressividade, mas um “ímpeto para retornar à perda original traumática que constitui o ser humano como ser de linguagem”. Segundo o autor do texto “a pulsão da morde emerge com a própria subjetividade assim que o sujeito entra na ordem social e se torna um ser falante que precisou sacrificar algo de si mesmo”.
Não é tema do trecho escolhido, mas, numa eventual sociedade pós-capitalista, os desejos deixarão de ser insaciáveis, mas serão ainda regidos por insatisfação, pela busca da autorrealização. Eis que, para lembrar uma frase famosa de John Stuart Mill, é preferível ser um “homem insatisfeito” do que um “porco insaciável”. Passa-se da lógica do mau infinito para a lógica do bom infinito: assim, o evolver da pessoa e da sociedade com um todo está voltada para a satisfação.
Capitalismo contra a pulsão de morte
Autor: Todd McGowan
A ideologia capitalista visa produzir sujeitos que vivenciam sua existência como seres insatisfeitos e, ao mesmo tempo, como investidores assíduos no ideal de felicidade ou satisfação plena. Essa ideia se manifesta não apenas no funcionamento cotidiano do capitalismo, mas também nos escritos de seus teóricos mais relevantes – de Adam Smith e David Ricardo a Friedrich Hayek e Milton Friedman.
De acordo com Adam Smith, a sociedade pode alcançar uma verdadeira satisfação por meio da prosperidade, contanto que seja liberada a propensão natural da humanidade para acumular. Ele escreve: “O esforço natural de cada indivíduo para melhorar sua própria condição, quando se permite que ele atue com liberdade e segurança, constitui um princípio tão poderoso que, por si só, e sem qualquer outra ajuda, não somente é capaz de levar a sociedade à riqueza e à prosperidade, como também de superar uma centena de obstáculos impertinentes (…)”. O desejo de acumular permite aos súditos do capitalismo superem as barreiras que lhes são antepostas e obtenham, assim, “felicidade”. Para Smith, assim para os outros autores elencados, essa não é uma barreira intransponível; ademais, vem a ser possível desfrutar da própria barreira enquanto tal no ato de superá-la.
O capitalismo sobrevive com base no mesmo desconhecimento que atormenta o neurótico analisado por Freud: ele toma erroneamente o desejo pela pulsão, tornando-se incapaz de ver satisfação no ato de não alcançar o objeto buscado. Sem engendrar esse autoengano coletivo, o capitalismo não poderia se sustentar como capitalismo. Os sujeitos no capitalismo falham estruturalmente em enxergar sua inerente autossatisfação – e é essa falha que os mantêm funcionando como sujeitos capitalistas. E isso é revelado pelo pensamento de Freud. Este revela que há um além do sujeito capitalista – um além que consiste na pulsão de morte. A política emancipatória da psicanálise é, portanto, inerentemente anticapitalista, na medida em que critica o funcionamento do capitalismo por ser dependente da busca incessante do objeto do desejo.
O capitalismo se alimenta da insatisfação perpétua do desejo. Essa insatisfação leva aos esforços para acumular mais capital, para elevar a produtividade e para que sejam introduzidas novas mercadorias no mercado – em suma, todos os aspectos da economia capitalista estão balizados pela lógica da acumulação. As empresas na sociedade capitalista estão empenhadas em produzir desejo nos sujeitos, cegando-os quando à pulsão inconsciente.
Nos Grundrisse, Marx descreve a forma como o capitalismo perpetua o desejo através da produção de necessidades: “A produção não apenas fornece um material para a necessidade, mas também fornece uma necessidade para esse material… A necessidade que o consumo sente pelo objeto é criada por sua própria percepção. O objeto de arte – assim como qualquer outro produto – cria um público sensível à arte e que aprecia a beleza. A produção, portanto, não só cria um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”. O capitalismo funciona sustentando – e até aumentando – um sentimento de insatisfação naquele que deseja. Eis que este permanece sempre insatisfeito.
Isso explica a paixão do capitalismo pelo novo. O capitalismo constantemente procura e abraça o que é novo, porque o novo mantém o desejo em movimento, ajudando a criar um sentido de carência persistente. O novo traz a promessa de um gozo futuro que superará tudo o que o sujeito já experimentou. Essa promessa é o motor por trás da criação de cada vez mais necessidades pelo capitalismo. O “mais” figura como uma atração constante, o próximo “mais” – pelo menos à distância – sempre parece ser aquele objeto que daria um prazer indescritível.
(…)
O capitalismo deixa os sujeitos individuais com uma sensação constante de sua própria insatisfação, mas, por outro lado, também oferece constantemente a atração de gozo futuro. Ora, isso leva o capitalista a criar novas mercadorias e os consumidores a comprá-las. Assim como as esperanças capitalistas que cada mercadoria recém-criada seja “aquela”, o mesmo acontece com o consumidor. No entanto, nenhuma nova mercadoria pode jamais proporcionar o gozo perdido pelo capitalista ou pelo consumidor, não importa o quão bem-sucedido seja o produto, porque o gozo tem apenas um caráter imaginário. Uma vez realizada a mercadoria para cada um (colocada no mercado, no caso do capitalista, ou comprada, no caso do consumidor), ela necessariamente perde o seu valor de fruição.
Nesse sentido, o capitalismo depende, por exemplo, das crianças e de seus desejos na época do Natal. Na véspera de Natal todos os presentes debaixo da árvore oferecem a promessa de uma futura diversão. Porém, à tarde no mesmo dia de Natal, a criança acaba entediada, ficando mais uma vez na expectativa de novos presentes, já que não encontrou a alegria fugidia em nenhum dos pacotes abertos.
Esse tédio não é apenas o sinal do narcisismo da criança ou de que ela foi estragada por pais excessivamente indulgentes; é, antes, uma necessidade estrutural dentro do mundo desejante do capitalismo. O ciclo da promessa de gozo futuro e, então, uma inevitável insatisfação que se segue, só pode se perpetuar enquanto os súditos capitalistas continuarem a ter esperança, isto é, a acreditar na promessa que as novas mercadorias supostamente oferecem. Mais do que qualquer outra coisa, a esperança mantém o capitalismo funcionando. Manter a esperança – e ainda mais continuar ou mesmo gostar de ter mais esperança – leva o sujeito de desejo em desejo, mantendo-o sempre insatisfeito. A renúncia a esse sentimento acarreta o fim do sujeito capitalista: sujeitos capitalistas sem esperança de ganhar mais, consumir mais, mais e mais, não são mais sujeitos capitalistas.
O que mantêm as pessoas presas a essa “prisão” é a incapacidade de descobrir outra maneira de encontrar uma satisfação mais satisfatória. Esse fracasso, talvez até mais do que seus custos humanos, é o que mais perturbava Marx quando refletia sobre o capitalismo. Aqueles momentos de Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos em que Marx parece escorregar no humanismo, momentos em que relata os efeitos do capitalismo sobre as pessoas, são aqueles momentos em que ele tenta compreender – embora não o diga deste modo – a captura da pulsão de morte pelo sistema capitalista: eis que esse aprisionamento não permite que as pessoas encontrem satisfação em sua própria satisfação.
A lógica do capitalismo é aquela que Marx chama de “auto-renúncia”. Eis como ele diz isso na passagem mais famosa dos Manuscritos: “quanto menos você come, bebe e compra livros; quanto menos você vai ao teatro, ao salão de dança, ao bar; quanto menos você pensa, ama, teoriza, canta, pinta, cerca etc., quanto mais você economiza e, assim, torna maior o seu tesouro que nem as traças nem a poeira podem devorar – ou seja, o seu capital. Quanto menos você “é” e menos expressa a sua própria vida, maior é a sua vida alienada; quanto mais você tem, maior é a sua sensação de estranhamento”. O que Marx descreve aqui como “vida alienada ou estranhada” não é uma vida tornada antinatural pelo capitalismo, mas uma vida onde a satisfação não é satisfatória, uma vida presa à lógica capitalista do desejo.
Entretanto, a alternativa não é, como Marx parece sugerir, obter uma satisfação imediata, aquela que consiste em comer, beber e comprar livros; antes, é a capacidade de alcançar uma satisfação mediada, ficando satisfeito com a satisfação que já está dentro do próprio “si mesmo”. Em outras palavras, a chave não é o que se faz, mas como se faz. É no nível desse “como”, ao invés de um “o quê”, que o capitalismo aliena seus súditos em sua satisfação. Ele fomenta esse tipo de alienação por meio de sua demanda implacável por acumulação.
A acumulação é o imperativo superegóico inerente ao capitalismo. Ou seja, dentro do capitalismo, a acumulação tem o status de uma obrigação moral. E o sujeito capitalista inevitavelmente ouve uma voz interna pedindo-lhe sempre “mais”. No primeiro volume de O capital, Marx captura perfeitamente a dimensão superegóica da diretiva de acumulação do capitalismo. Uma voz proclama: “Acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas!”
Nesse momento, Marx revela a forma como o apelo à acumulação funciona como lei e como forma de comando. Apesar de todos os esforços que se possa fazer para obedecer, nunca se pode acalmar essa voz ou saciar o apetite do superego que a põe dentro do sujeito: nenhuma quantidade de acumulação é suficiente, seja para o sujeito capitalista individual seja para a sociedade capitalista como um todo. A dívida com o superego, em outras palavras, é infinita. Quanto mais se acumula, mais se vê que há mais para ser acumulado. Uma vez que o sujeito “sujeitado” se rende à demanda de acumulação, apenas será sugado mais e mais por ela.
O fundamento da ideologia capitalista envolve a identificação da acumulação com o prazer. E o prazer é sobretudo o ouro. A maioria da pessoas não faz sexo com ouro ou outras formas monetárias. Mas aceita a ligação entre acumulação e prazer que proporciona as ações assombrosas de enamorados do dinheiro.
Na maioria das vezes, a apoteose da acumulação se manifesta na compra de mercadorias que parecem incorporar prazeres futuros. Compra-se a roupa mais nova, a música mais moderna ou o gadget tecnológico mais recente para ter acesso à diversão que essas mercadorias prometem. Mas, sob a influência da ideologia capitalista, essa atitude se estende até mesmo aos relacionamentos sociais: escolhe-se amigos, embora inconscientemente, que irão promover o status social da pessoa que escolhe; espera-se encontrar um parceiro romântico que faça o mesmo. As formas mais privadas de gozo na sociedade capitalista têm sua base na ideia de acumulação e são impensáveis fora dela.
Segue-se disso que a linha primária de crítica social lançada contra a sociedade capitalista se concentraria no fracasso da sociedade em viver de acordo com sua ideologia. É um truísmo da análise marxista – especialmente após a Escola de Frankfurt – sugerir que a ideologia capitalista usa a imagem da acumulação bem-sucedida para ocultar a falta de acumulação que a maioria dos sujeitos suporta e, assim, produzir docilidade. De acordo com essa posição, as imagens de diversão, como os filmes de Hollywood, criam um prazer falso ou ilusório que ajuda a satisfazer sujeitos que de outra forma seriam insatisfeitos.
Embora fascinados pelo vínculo romântico apresentados na tela do cinema, os sujeitos capitalistas não pensam sobre sua posição dentro da ordem capitalista. Esses sujeitos investem mais na imagem da diversão do que na reflexão sobre o mundo real. É por isso que Theodor Adorno afirma que “toda cultura de massa consiste fundamentalmente em adaptação”. A promoção da imagem do gozo, para Adorno e a Escola de Frankfurt, torna-se a forma da ideologia capitalista que visa criar sujeitos que acreditam estar se divertindo enquanto, de fato, estão vivendo na intratável insatisfação do capitalismo.
Diante da proliferação de tais imagens que difundem a ideologia capitalista, a tarefa do pensador crítico passa a ser fragmentá-las, expor a falta de prazer que existe no seio delas e mostrar, tal como Adorno e Max Horkheimer deixaram claro em sua Dialética do Esclarecimento, como o capitalismo e sua serva ideológica, a indústria cultural, nunca realmente entregam esse prazer. De acordo com essa visão, os sujeitos capitalistas não estão realmente se divertindo, apesar de sentirem o contrário. Esses sujeitos realmente existem em um estado de insatisfação perpétua. Ora, Adorno e Horkheimer esperavam expor essa insatisfação pelo que ela é, a fim de criar uma consciência transformadora semelhante à deles próprios. Para pensadores marxistas como os da Escola de Frankfurt, o principal problema do capitalismo é que ele promete diversão sem nunca cumprir essa promessa (mesmo para aqueles que parecem ser bem tratados pelo sistema capitalista).
Mas há um outro problema que essa crítica não aborda – o alinhamento entre acumulação e prazer. Poucos pensadores marxistas questionaram essa ligação. Na verdade, o objetivo principal do projeto marxista parece ser ir além da acumulação capitalista, mantendo o consumo material como fonte de prazer. Essa atitude deriva em grande parte do privilégio dado à produção por Marx, assim como devido à sua visão da revolução comunista como resultado do desenvolvimento das forças produtivas. Em contraste com o capitalismo, no qual as relações de produção erigem barreiras à expansão dos meios de produção, o comunismo levantaria todas essas restrições e permitiria o excesso de produção sem restrições – e, portanto, a um gozo sem limites.
O ideal de fruição sem limites é visível na política articulada por muitos pensadores recentes e contemporâneos influenciados por Marx. Pode-se ver isso no apelo de Gilles Deleuze e Felix Guattari por fluxos decodificados, no apelo de Alain Badiou por mais desenvolvimento de tecnologia e na aceitação de fronteiras dissolvidas por Paolo Virno. Essas visões do futuro envolvem aceitar a premissa fundamental da ideologia capitalista – o seu privilégio dado à acumulação. Há, porém, um movimento de compensação dentro do próprio pensamento de Marx que sugere uma crítica mais radical do sistema capitalista. Examinando essa outra dimensão do pensamento de Marx, podemos ver a relação entre gozo e prazer conforme ocorre na sociedade capitalista e observar como uma política voltada para a pulsão de morte interviria nessa relação.
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