Sociabilidade associal: de Bentham a Sade

Autor: Samo Tomšič – Continuação de temática abordada em outro texto antes publicado neste blogue.

Marx, em O capital, criticou o liberalismo como a filosofia política que se assenta na aparência do modo de produção capitalista e que se constrói com base em ilusões que veem harmonia onde prevalece desarmonia. Eis o que escreveu ao final do capitulo 4 do livro I de sua magna obra:

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral.

O comentário de Marx sobre a associação de universais políticos (igualdade e liberdade) com particulares econômicos (propriedade e Bentham) ainda tem como alvo o paradigma de equilíbrio do liberalismo econômico do século XIX e sua teoria das paixões políticas. Embora o nome “Bentham” cubra no texto de Marx fenômenos antissociais básicos, como interesse privado e amor-próprio, ele ainda mantém a hipótese ingênua – ainda que com intensão reguladora – de que a dinâmica das relações econômicas pode formar um sistema estável e que é, portanto, inerentemente capaz de engendrar uma boa socialidade.

Toda a obra de Marx demonstra incansavelmente que a verdade implícita em “liberdade, igualdade, propriedade e Bentham” vem a ser negações: a) ao invés de liberdade tem-se a compulsão de relações econômicas, que governam nossa vida social e subjetiva; b) ao invés de igualdade tem-se desigualdade e ela decorre da assimetria entre capital e trabalho; e c) ao invés de propriedade tem-se exploração que se reflete, em primeiro lugar, no ato de troca econômica, onde a venda de força de trabalho implica, em última análise, em ser expropriado do próprio corpo e da própria vida.

 Agora, que outro nome próprio poderia suscitar uma melhor reflexão sobre os nexos entre compulsão, desigualdade e exploração, bem como aquilo que resulta deles, ou seja, a produção excedente? A obra de Lacan oferece uma resposta para essa questão: Marquês de Sade.

A obra de Sade gira em torno de uma característica que Lacan, de forma um tanto enigmática, se refere como “direito ao gozo” – [notando já que esse direito se interverte, sob as condições repressivas da sociedade moderma, numa obrigação]. De acordo com as leituras estabelecidas, esse direito revela a verdade reprimida da fundação da moralidade que Kant apresentou como um “imperativo categórico”. Ora, esse imperativo é, na verdade, uma forma peculiar de “masoquismo moral”, o qual resulta diretamente da ideia de que o reino da moralidade deve ser isento de toda motivação “patológica”, seja ela de natureza pessoal, individual ou psicológica.

[Note-se: assim como o princípio do prazer em Freud, sob as coações da civilização, transforma-se em princípio de realidade, o próprio prazer (uma satisfação que se mantém como satisfeita) se transforma em gozo (uma busca de satisfação que se mantém insatisfeita e, por isso mesmo, torna-se compulsiva). O gozo assim buscado pelo sujeito assujeitado torna-se, de fato, gozo para o grande Outro (ou seja, para o sistema econômico movido pela busca incessante de mais-valor) ].

No entanto, a literatura produzida por Sade – e, especificamente, o vínculo que sempre coloca em primeiro plano entre gozo e violência (mas também, expropriação) – permite lançar uma luz crítica sobre o utilitarismo – para além daquela que foi apontada explicitamente por Marx. Lembre-se aqui como Lacan expressou a “máxima ética” que explicita a reivindicação sadeana pelo direito ao gozo:

Qualquer um pode dizer: “tenho o direito de desfrutar do seu corpo” e “eu exercerei esse direito sem qualquer limite senão os caprichos dos meus desejos de saciar com seu corp

A maneira como essa máxima é formulada põe diretamente um vínculo entre gozo e expropriação, apresenta uma assimetria radical, sugerindo, em última análise, que perseguir o direito de desfrutar implica, rigorosamente, a destruição do outro. Isso põe a questão dos limites do utilitarismo: qual seria a relação entre o  direito ao gozo e o dever gozar?

(…)

No utilitarismo, que afirma existir um direito ao gozo, ainda é possível postular uma ligação entre gozo e felicidade, a qual se encontra certamente no cerne da filosofia política de Bentham. Aqui, pode-se de fato dizer que o gozo ainda ser serve supostamente para alguma coisa, em primeiro lugar, para evitar a dor e buscar a felicidade.

 Mas, como Lacan aponta, direito e dever não são a mesma coisa. E nessa discrepância está precisamente a diferença entre Bentham e Sade: entre o direito ao gozo e o imperativo do gozo, entre o gozo que serve para algo e o gozo pelo gozo, ou o gozo que se torna um propósito em si mesmo.

Essa também é a diferença entre o liberalismo econômico e o neoliberalismo (ou capitalismo libertário): enquanto o liberalismo ainda acredita que as relações econômicas capitalistas podem se constituir como base para organizar a vida de modo que traga felicidade para a maioria dos membros da sociedade, o neoliberalismo, em última análise, só se importa com a “felicidade” do sistema e, portanto, com a satisfação do impulso de autovalorização do capital.

[N. T.: Dito de outro modo, pouco importa o que possa acontecer com os homens, segundo a doutrina neoliberal, o sistema da relação de capital tem de prosperar – ou seja, o bom funcionamento econômico, o crescimento econômico, deve estar acima de tudo mesmo se isso implica a perda de milhares ou milhões de vidas humanas. O neoliberalismo é uma normatividade suicidária.].

 Note-se, agora, que o imperativo de valorizar o valor para obter mais-valor contém a mesma negação que se observa na mudança de Bentham para Sade, ou seja, passa-se do direito ao gozo ao imperativo do gozo. Este último está, sim, endereçado ao “sujeito”, mas o que está implícito agora é que o gozo sempre pertence ao grande Outro; esse sujeito que está assujeitado, por seu turno, é sempre expropriado, tanto de sua capacidade quanto de seu direito de obter prazer (ou, nas palavras de Judith Butler, de viver uma vida verdadeira).

Para colocar as coisas de outra forma, o imperativo do gozo consiste, na verdade, de um direito intervertido em impossibilidade. Eis que se torna impossível porque se separa do “sujeito” e parece não pertencer a alguém (ou seja, a uma outra pessoa). Eis que pertence, na verdade, ao livre mercado, ao mercado supostamente sem regulação. Em última análise, apenas o mercado possui o direito de gozar, enquanto os sujeitos econômicos estão obrigados a se satisfazerem precisamente com aquele gozo – uma busca incessante por mais-gozar – que é devido ao mercado.

Ora, isso implica que eles devem renunciar a toda pretensão de satisfação que não corresponda à demanda por mais-valor. A absolutização (sadeana) do direito ao gozo proíbe todas as outras articulações e organizações de gozo, fazendo assim do gozo algo que não serve para nada. Ora, isso implica também em transformar o gozo num elemento-chave que reforça a antissocialidade que está contida sociabilidade capitalista.

(…)

Mas o problema atinente ao capitalismo é que ele impõe com sucesso a competição econômica como um paradigma de relação “social”. Nesse tipo de interação, os corpos necessariamente não se aproximam e fagocitam uns aos outros (…); ao contrário, eles se voltam uns contra os outros, pois estão já sempre imersos – e por ele fagocitados – no sistema econômico (ou seja, no grande Outro acima referido).

O gozo aqui, em última análise, está subjugado pelo imperativo do trabalho – não aquele trabalho que serviria para garantir ou melhorar as condições da vida individual e social, mas o trabalho pelo trabalho (ou seja, o trabalho produtor de valor). Ora, esse trabalho, que supostamente responde ao “direito ao gozo”, foi já alocado ao sistema, ou seja, ao grande Outro em que consiste o sistema da relação de capital que, de fato, “fagocita” o “sujeito”.

Portanto, o vínculo que Freud descobriu entre gozo e morte aponta já para o problema da antissocialidade capitalista. O capitalismo, enquanto um sistema econômico, consiste numa forma de organizar a agressividade para que, por meio dela, os “sujeitos” venham a trabalhar em prol da extração contínua de mais-valor. Para tanto, eles recebem “pequenos empurrões” cotidianos que não deixam de ser violentos e dolorosos.

Como se deve, então, reagir a essa dimensão sinistra do capitalismo? O que é certo é que a resignação política e o pessimismo inevitavelmente levam a outro tipo de conformismo afetivo que não é menos problemático do que aquele do ressentimento, a saber, a resignação melancólica. No final, o que une o ressentimento e a melancolia, apesar de todas as suas diferenças, é que ambos perpetuam a lógica da produção de mais-gozo.

É preciso trazer aqui um ponto valioso de Freud: a distinção entre luto e melancolia. No luto, uma perda é confrontada e trabalhada, mas na melancolia a própria perda torna-se perdida como objeto de elaboração.  Nesse segundo caso, o estado afetivo passa a extrair um ganho libidinal do próprio estado de perda já que ela, como tal, foi empurrada para o esquecimento. Isso também explica por que nem o ressentimento nem a melancolia podem suscitar uma crítica radical do sistema da relação de capital. Mesmo se mantém continuamente a aparência de crítica militante – como no populismo, quando se trata de ressentimento, ou na crítica melancólica, como em Adorno ou Benjamin –, ao fim e ao cabo, fracassam em destitui-lo.

Ao contrário de tais adversidades afetivas da faculdade da crítica, a história dos movimentos emancipatórios extrai uma parte significativa de sua motivação afetiva dos laços de solidariedade, que se recusam a aceitar as tendências destrutivas do modo de produção capitalista como uma necessidade avassaladora, como se proviessem de determinações supostamente ontológicas que estão além da influência ou do controle dos homens.

Nesse segundo caso, a subjetividade política compõe-se ainda de corpos sintomáticos, que certamente testemunham a violência sistêmica e a toxicidade das interações sociais, mas, apesar disso, continuam a resistir à dissolução social. Como se sabe, Marx viu um corpo sintomático desse tipo no proletariado industrial; julgou encontrar aí uma figura de corpo capaz de se revoltar e, assim, de transformar o capitalismo em socialismo. Mas, depois, ao longo da história das lutas pela emancipação e transformação social, outros corpos apareceram: o corpo feminino e o corpo colonial, mas também o corpo envelhecido e doente etc.

Isso não quer dizer que as experiências históricas e vividas de violência sistêmica, às quais essas corporalidades e subjetividades (para não dizer identidades) continuam a ser submetidas, devam ser comparadas, uma vez que tal postura as reinseriu já na estrutura (neo)liberal da competição política. O que essas corporalidades têm em comum, no entanto, é o fato de que os seus donos são todos, em princípio ou efetivamente, redundantes aos olhos do sistema. Eles existem para serem usados e, ao fim e ao cabo, descartados.

De um ponto de vista estrutural, essa redundância possível é, em última instância, o destino imposto a todo “sujeito” no capitalismo. Os corpos sofredores e as figuras de vida danificada são sintomas sociais no sentido forte da palavra; não são apenas sinais de antissocialidade capitalista descontrolada, mas são também expressões de um desejo perseverante por uma sociedade emancipada. É por isso que resistir à essa estrutura social baseada na competição – o velho liberalismo se esforça para incorporar e anular a radicalidade das diversas lutas emancipatórias –, assim como às reações afetivas espontâneas (ressentimento e melancolia) que dela resultam, continua sendo uma tarefa fundamental – mesmo se, à primeira vista, parece uma tarefa impossível. Urge continuar organizando a subjetividade política radical nestes tempos catastróficos.