Mudou, mas ainda é capitalismo

Autor: Cédric Durand[1]

O teórico Fredric Jameson diz que “o mercado é… o Leviatã em pele de cordeiro”; “a sua função não consiste em encorajar e perpetuar a liberdade, mas sim em reprimi-la”. [2] A ideologia do mercado se sustenta numa aparência de liberdade, mas, na verdade, proíbe os seres humanos de tê-la, ou seja, que eles possam tomar coletiva e conscientemente o seu destino econômico nas próprias mãos, alegando que tal iniciativa só pode levar à tragédia. Segundo ela, nós temos a sorte de poder deixar as coisas para o Deus oculto da mão invisível, o mercado smithiano que transforma vícios privados em virtudes públicas e que, supostamente, transforma o choque de interesses em algo harmonioso?[3]

Esse mito leva a uma abdicação da liberdade de deliberar e, assim, do poder organizar o futuro. Implica também no abandono da possibilidade de rever os planos em conjunto conforme se desenrola o inesperado. Por meio do projeto neoliberal de livre mercado, as sociedades abandonam o domínio das coisas ao longo do tempo para confiar nos mecanismos impessoais das finanças.

As finanças têm, assim, um poder disciplinar ao qual têm de se submeter tanto os agentes econômicos públicos quanto os privados. A ganância dos banqueiros e investidores, assim como a instabilidade macroeconômica decorrente, flui desse mecanismo. Mas aquilo que está no centro desse domínio é o capital fictício [4]: uma acumulação de direitos de saque sobre a riqueza que ainda está por ser produzida, que assume a forma de endividamento privado e público, da capitalização das ações, assim como de vários outros produtos financeiros.

Uma década após a maior crise financeira que o mundo já conheceu, vê-se bem agora que o véu da euforia está no chão. Agora é a hora da desilusão, onde as promessas não fazem mais qualquer mágica. Nas três décadas anteriores, a financeirização concedera um alívio ao que Wolfgang Streeck chamou de “capitalismo democrático”.[5] Graças ao aumento do endividamento e aos altos preços das ações, as necessidades de lucro das empresas e as aspirações das populações de consumo e serviços públicos puderam ser parcialmente satisfeitas. Ora, isso foi possível mesmo com a forte desaceleração econômica em comparação com o período pós-guerra.

Aqueles que forneceram crédito (acionistas, poupadores ricos, investidores institucionais) ficaram encantados com o considerável aumento de sua riqueza financeira, pois eles julgam que toda ela é conversível em dinheiro. Em alguns países, a forma mais importante dessa riqueza foi a dívida pública; em outros, os empréstimos ao consumidor e o acesso à casa própria desempenharam o papel principal.

Em alguns países – em particular na Alemanha – conseguiu-se conter o avanço de certas formas elementares de capital fictício, acumulando superávits comerciais. No entanto, mesmo neste caso, os superávits de algumas pessoas tinham como contrapartida os déficits de outras; ora, isso significava essencialmente emprestar aos estrangeiros, aceitando títulos financeiros emitidos no exterior. O furacão de 2008 mostrou inequivocamente que nada escapa das garras do capital fictício.

A crise veio quando dúvidas sobre a liquidez real das imensas fortunas acumuladas, expressas agora digitalmente, emergiram da agitação dos mercados. Como se sabe, as finanças são apenas relativamente autônomas. O sistema, certamente, pode tolerar as flutuações que ocorrem à alguma distância dos rendimentos da economia real. Mas ele não pode se libertar para sempre da necessidade de extrair lucros da produção de riqueza, em cuja base estão a terra e o trabalho transformados. O capital financeiro pode ser apenas um tigre de papel, mas ele morde e arranca pedaços!

O poder adquirido pelo capital fictício assenta-se na liquidez dos mercados financeiros. Os títulos representam uma captura possível de parte da produção futura; contudo, oferecem também aos seus proprietários a possibilidade de conversão em dinheiro real a qualquer momento. Em termos coletivos, essa liquidez é apenas uma ilusão, pois seria impossível liquidar imediatamente todas essas promessas. Contudo, trata-se certamente de uma ficção muito poderosa.

Desde 2008, a prioridade absoluta que as autoridades públicas têm dado à estabilidade financeira expressa a sua determinação de validar a reivindicação de liquidez do capital fictício. No entanto, essa possibilidade só se atualiza se os compromissos já assumidos forem respeitados. Em outras palavras: ganhos financeiros atuais e efetivos precisam sustentar o valor do capital fictício acumulado. As promessas feitas hoje só podem ser aceitas se as anteriores tiverem sido cumpridas. A grande missão dada aos governos e às autoridades monetárias pelo capital diante das turbulências financeira que vem ocorrendo desde a década de 1980 – e ainda mais fortemente nos últimos anos – é garantir essa continuidade dos lucros financeiros garantindo a liquidez dos mercados.

Essa necessidade hoje assume um caráter dramático e qualitativamente novo em um contexto em que o ritmo da produção mercantil se tornou bem lento. Nos países ricos, o crescimento econômico vem desacelerando há quase meio século; agora – comenta-se – eles estão presos em uma estagnação secular. O aumento dos pagamentos e receitas financeiras das empresas não financeiras sinaliza a presença de uma aversão ao investimento doméstico, o que alimenta essas fortes tendências de estagnação. E nada garante que a sofisticação tecnológica acelerada trará uma nova fase de expansão econômica. À medida que as promessas financeiras ficam cada vez mais pesadas, as sociedades passam a seguir uma trajetória que é política e economicamente explosiva.

A matéria-prima do capital fictício são os ganhos financeiros. Como a própria finança não produz nada, ela tem de colher seus frutos de outro lugar. Identificamos acima a lógica socioeconômica subjacente à acumulação de capital fictício: ela tem de tirar recursos de sua eventual associação com a produção de mercadorias. Se a lógica de reestruturação da produção associada à inovação fosse suficientemente dinâmica, se o crescimento econômico fosse robusto, os lucros financeiros poderiam ser sustentados sem que isso infligisse danos excessivamente significativos à sociedade. Mas quanto mais o tempo passa, mais claramente se vê que esse não é de fato o caso. A estabilidade financeira passa assim a depender de dois outros mecanismos evidentemente menos meritórios: a expropriação e o parasitismo.

A expropriação assume a forma particular dos ganhos, “lucros políticos”, associados aos benefícios que o capital financeiro obtém ao financiar os gastos do Estado. Ademais, quando o Estado auxilia o setor financeiro, este obtém benefícios diretos, seja porque oferece garantias públicas aos bancos, seja por meio das políticas monetárias não convencionais que garantem os valores das ações. O seu conteúdo social se mostra bem opaco: trata-se, por um lado, de um encargo real ou latente sobre as finanças públicas e, por outro, de um alargamento do poder monetário detido pelo setor financeiro.

As medidas de austeridade, que prejudicam os serviços públicos e afetam os direitos sociais, procuram garantir a continuidade dos pagamentos de juros que os governos se comprometeram a pagar. Enquanto isso, as reformas estruturais têm o objetivo elevar a lucratividade das empresas – e, assim, a sua capacidade de pagar dividendos e juros e de gerar ganhos nas bolsas de valores. A redução do preço da força de trabalho, abre novos espaços para o sucesso dessas operações.

As respostas dos governos à crise expressaram precisamente a lógica de apropriação exigida por um setor financeiro que reina supremo no capitalismo contemporâneo.[6] Ora, para milhões de pessoas, essa apropriação significa catástrofe. Mas ela não conhece outros limites além daquele limite político que consiste em sua aceitação; esse capitalismo dominado pelo rentismo só pode ser derrotado pela luta social e pela capacidade das massas populares de tomar a iniciativa. Infelizmente, até agora, elas se mostraram ineficazes frente a ideologia dominante do individualismo e do empreendedorismo.

A lógica do parasitismo baseia-se na manutenção de um nível mínimo de rentabilidade como norma financeira. E ele serve como filtro em projetos de investimento na produção, pois elimina até mesmo as iniciativas lucrativas que não atingem esse nível mínimo. Essa restrição contribui para enfraquecer o crescimento e, assim, deprimir o emprego. Mas só existe porque alguns dos circuitos de valorização do capital oferecem retornos maiores.

As formas de troca desigual entre os velhos países capitalistas e as economias periféricas são cruciais nesse sentido: a inserção do mundo ex-comunista na economia global e o abandono das estratégias desenvolvimentistas contribuíram para alimentar o capital fictício acumulado nos mercados financeiros dos países do centro, graças à redução do preço dos insumos importados e aos dividendos repatriados do exterior.

Este bônus imperial é o resultado de uma conjuntura histórica muito particular: três décadas durante as quais as multinacionais puderam lucrar com uma oferta quase infinita de mão-de-obra, exercer um poder de mercado oligopolista sobre as empresas do Sul global e contar com a predominância internacional do dólar e – em menor medida – do euro.[7]

Os privilégios do centro durarão? Ou a ativação da dinâmica capitalista na periferia levará inexoravelmente à sua erosão? Essas questões vão além da estrutura do livro que aqui se encerra, mas dificilmente são estranhas às suas preocupações. De fato, dado que o capital fictício acumulado no centro é parcialmente dependente dos lucros da periferia, sua sustentabilidade também tem uma dimensão geopolítica. Na era da hegemonia de Amsterdã e depois de Londres, a competição entre as potências internacionais estava inextricavelmente ligada à sua posição financeira e influência; da mesma forma, hoje, a preeminência militar dos EUA favorece o papel internacional do dólar e das instituições de Wall Street.[8]

Nos países de alta renda, o capital fictício deixou de ser um fator dinâmico de acumulação, tornando-se um peso morto no processo de reprodução social como um todo. A regulamentação das projeções financeiras tornou-se caótica. O sistema avança por meio de choques financeiros e macroeconômicos, os quais exigem intervenções políticas poderosas. Os lucros insuficientes do processo molecular de acumulação por meio da produção de mercadorias, portanto, tornam o Estado soberano responsável por resolver um conflito cada vez mais agudo sobre a distribuição, tanto no mercado interno quanto no exterior. Esse retorno do político é, portanto, paradoxal.

A hegemonia das finanças – ou seja, da forma mais fetichizada de riqueza capitalista – só se mantém por meio do apoio incondicional dos poderes públicos. Deixado a si mesmo, o capital fictício entraria em colapso; se ocorrer, ele vai derrubar também as economias nacionais tal como existem. Na verdade, as finanças são um mestre chantagista. A hegemonia financeira se veste com as roupagens liberais do mercado, mas captura a velha soberania do Estado para melhor espremer o corpo social para alimentar seus próprios ganhos. Isso ainda é capitalismo?

A agonia de morte deste sistema foi anunciada mil vezes. Mas agora pode muito bem ter começado – quase como se fosse por acidente. Infelizmente, não estamos vendo nenhum sinal dos amanhãs anunciados nas canções que louvam a emancipação. Como os plutocratas não podem se contentar com a estagnação, eles agora recorrem a uma estratégia de esmagar todos nós. O capital roubou a esperança das pessoas. O peso morto do capital fictício priva os cidadãos daquilo que pensavam ter ganho para sempre.


[1] Professor do Departamento de História, Economia e Sociedade, Universidade de Genebra e do Centre d’Économie Paris Nord. Tradução do Epílogo do livro Fictitious capital – How finance is appropriating our time. London: Verso: 2017.

[2] Fredric Jameson, Pós-modernism, Londres: Verso, 1991, p. 273.

[3] J.-C. Perrot, «La main invisible et le dieu caché in Une histoire intellectuelle de l’économie politique, Paris: Editions de l’EHESS, 1992, pp. 333-54.

[4] N. T.: A forma econômica “capital fictício” deriva-se da aparência da forma “capital portador de juros”. Se esta última consiste de capital monetário emprestado às empresas produtoras de mercadorias, a segunda consiste na capitalização de um fluxo de ganho dissociado da produção mercantil; como tal, por isso, vem a ser uma forma de captura de renda futura que, em última análise, por caminhos diversos, parasita o capital industrial, que opera na geração efetiva de valor e mais-valor.

[5] Wolfgang Streeck, La crise de 2008 a commencé il y a quarante ané, Le monde diplomatique, janeiro de 2012; Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic Capitalism, London and New York: Verso, 2014.

[6] N.T.: Como se sabe, isso acontece porque o processo tendencialmente crescente de socialização capital, mencionado, ainda que sem ênfase, por Marx no Livro III de O capital, chegou agora ao seu máximo desenvolvimento. Ver sobre isso: Prado, Eleutério F. S. – Sobre a socialização do capital. Blogue Economia e Complexidade: https://eleuterioprado.blog/2024/09/22/sobre-a-socializacao-do-capital/

[7] Sobre o papel do dólar no desenvolvimento das finanças internacionais (e, em troca, o papel deste último no fortalecimento da preeminência do dólar), ver J. Tokunaga e G. Epstein, The endogenous finance of global dollar-based financial fragility in the 2000s: a Minskian approach, PERI Working Paper nº 340, 2014. No que diz respeito à importância do euro para os bancos e multinacionais europeus como um projeto monetário global, ver Costas Lapavitsas, «The Eurozone crisis through the prism of world money, em Martin H. Wolfson e Gerald A. Epstein (eds), The Handbook of the Political Economy of Financial Crises, Oxford: Oxford University Press, 2013.

[8] Roohi Prem, International currencies and endogenous enforcement: an empirical analysis, IMF Working Paper, nº 97/29,1997.

.