O que deu errado com o capitalismo?

Autor: Michael Robert – 27/05/2024

Ruchir Sharma

Ruchir Sharma tem um livro chamado O que deu errado com o capitalismo?  Ruchir Sharma é investidor, autor, gestor de fundos e colunista do Financial Times. Ele é o chefe dos negócios internacionais da Rockefeller Capital Management e foi investidor de mercados emergentes no Morgan Stanley Investment Management.

Com essas credenciais – ele está “dentro da besta” ou mesmo é “uma das bestas” –, ele deveria saber a resposta para essa sua pergunta.  Em uma resenha de seu livro no Financial Times, Sharma apresenta seu argumento.  Primeiro, ele diz:  “preocupo-me como os EUA estão liderando o mundo agora. A fé no capitalismo americano, que foi construído sobre um governo limitado que deixa espaço para a liberdade e a iniciativa individuais, despencou.”

Em sequência, observa que agora a maioria dos americanos não espera estar “melhor em cinco anos” – um recorde desde que o Edelman Trust Barometer fez essa pergunta pela primeira vez, há mais de duas décadas. Quatro em cada cinco duvidam que a vida será melhor para a geração de seus filhos do que tem sido para a deles – ela deve piorar.  E de acordo com as últimas pesquisas do Pew, o apoio ao capitalismo caiu entre todos os americanos, particularmente democratas e jovens. De fato, entre os democratas com menos de 30 anos, 58% agora têm uma “impressão positiva” do socialismo, apenas 29% dizem a mesma coisa do capitalismo.

Esta é uma má notícia para Sharma que se põe como um forte defensor do capitalismo.  O que deu errado?  Sharma diz que é a ascensão do grande governo, do poder monopolista e do dinheiro fácil para socorrer os grandes.  Isso levou à estagnação, ao baixo crescimento da produtividade e ao aumento da desigualdade. (N. T.: note-se que os gastos do governo cresceram como proporção do PIB nos países centrais especialmente no pós-guerra):

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Sharma argumenta que a chamada revolução neoliberal dos anos 1980, que supostamente substituiu a macrogestão keynesiana, reduziu o tamanho do Estado e desregulamentou os mercados foi realmente um mito.  Sharma: “a era do pequeno governo nunca aconteceu”. Sharma lembra que, nos EUA, os gastos do governo aumentaram oito vezes desde 1930, de menos de 4% para 24% do PIB – e 36%, incluindo gastos estaduais e locais.  Com esse aumento foi acompanhado, às vezes, com os cortes de impostos, os déficits do governo aumentaram e a dívida pública disparou.

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Quanto à desregulamentação, o resultado foram, na verdade, “regras mais complexas e dispendiosas, que os ricos e poderosos estavam mais bem equipados para usar”. As regras regulatórias, na verdade, aumentaram.  Quanto ao dinheiro fácil, “com medo de que o acúmulo de dívidas pudesse terminar em outra depressão ao estilo dos anos 1930, os bancos centrais começaram a trabalhar ao lado dos governos para apoiar grandes corporações, bancos e até países estrangeiros, toda vez que os mercados financeiros oscilavam”.

Em conclusão, não houve transformação neoliberal liberando o capitalismo para se expandir, pelo contrário.

Mas será que a história econômica de Sharma do período após os anos 1980 está realmente certa?  Sharma tenta retratar o período pós-1980 como um período de resgates para bancos e empresas durante crises, em contraste com a década de 1930, quando bancos centrais e governos seguiram a política de permitir a “liquidação” daqueles que se encontravam em apuros. 

Na verdade, isso não é correto, pois ajudar o capital corporativo, assim como os bancos, foi a força motriz do New Deal de Roosevelt. A liquidação, na verdade, nunca foi adotada como política de governo.  Além disso, a década de 1980 foi principalmente uma década de altas taxas de juros e política monetária apertada imposta pelos bancos centrais, tendo em vista reduzir a inflação dos anos 1970.  Na verdade, Sharma não tem nada a dizer sobre a “estagflação” dos anos 1970 – uma década, segundo ele, em que o capitalismo tinha um governo pequeno e baixa regulação.

Sharma acentua o aumento dos gastos do governo, incluindo “gastos com bem-estar” nos últimos 40 anos.  Mas ele não explica o porquê.  Após o aumento dos gastos e da dívida durante a guerra, grande parte do aumento dos gastos desde então deveu-se a um aumento da população, particularmente um aumento dos idosos, levando a um aumento dos gastos (improdutivos para o capitalismo) com seguridade social e pensões.  Mas o aumento dos gastos do governo também foi uma resposta ao enfraquecimento do crescimento econômico e do investimento em capital produtivo a partir da década de 1970.  À medida que o PIB crescia mais lentamente e os gastos com assistência social cresciam mais rápido, os gastos do governo com o PIB aumentavam.

Sharma nada diz sobre outros aspectos do período neoliberal.  A privatização foi uma política fundamental dos anos Reagan e Thatcher.  Os ativos estatais foram vendidos para aumentar a rentabilidade do setor privado.  Nesse sentido, houve uma redução do “Estado Grande”, ao contrário do argumento de Sharma.  De fato, a partir de meados da década de 1970, o capital social do setor público foi vendido. Nos EUA, foi reduzida pela metade como proporção do PIB.

Fonte: Base de dados de investimento e capital do FMI, 2021

Da mesma forma, após a década de 1980, o investimento do setor público como proporção do PIB foi reduzido quase pela metade, enquanto a participação do setor privado aumentou 70%.

Não é o “Estado Grande” que está no controle das decisões de investimento e produção, é o setor capitalista.  Isso sugere uma melhor tese sobre a razão da redução do papel do setor público.  O problema do capitalismo no final dos anos 1960 e 1970 foi a queda drástica da rentabilidade do capital nas principais economias capitalistas avançadas.  Essa queda teve que ser revertida.  Uma das políticas foi a privatização. 

Outra política foi o esmagamento dos sindicatos por meio de leis e regulamentos destinados a dificultar, senão tornar impossível, a criação de sindicatos ou ações em favor dos trabalhadores sindicalizados. Depois, houve a transferência da capacidade de produção do “Norte Global” para as regiões de mão-de-obra barata do Sul Global, a chamada “globalização”.  Combinado com o enfraquecimento dos sindicatos internos, o resultado foi uma queda acentuada na parcela do PIB destinada à mão de obra destinada ao trabalho, juntamente com a mão de obra barata no exterior, e um aumento (modesto) na rentabilidade do capital.

Sharma admite que “a globalização trouxe mais concorrência, contendo a inflação dos preços ao consumidor”, o que parece contradizer a tese de estagnação monopolista. Em sequência, argumenta que a globalização e os baixos preços dos bens importados “solidificaram a convicção de que os déficits e a dívida do governo não importam”.  Realmente?  Ao longo da década de 1990 em diante, os governos tentaram impor a “austeridade” em nome do equilíbrio orçamentário e da redução da dívida pública.  Falharam, não porque achassem que “os défices e a dívida não importam”, mas porque o crescimento econômico e o investimento produtivo abrandaram.  Os cortes de gastos do setor público foram significativos, mas a relação entre o PIB não caiu.

Sharma avalia que “as recessões eram cada vez menores” no período pós-1980.  Será que tem razão?  Deixando de fora a enorme dupla recessão do início dos anos 1980 (outro fator-chave para reduzir a força de trabalho), houve recessões em 1990-1, 2001 e depois a Grande Recessão de 2008-9, culminando na crise pandêmica de 2020, a pior recessão da história do capitalismo.  Talvez menos e mais distantes, mas cada vez mais prejudiciais.

Sharma observa que, após cada queda desde a década de 1980, a expansão econômica tem sido cada vez mais fraca.  Isso aparece como um mistério para os defensores do capitalismo. “Por trás da desaceleração das recuperações estava o mistério central do capitalismo moderno: um colapso na taxa de crescimento da produtividade, ou seja, da produção por trabalhador. No início da pandemia, caiu mais da metade desde a década de 1960.”

Sharma apresenta sua explicação: “uma crescente soma de evidências aponta o dedo da culpa para um ambiente de negócios repleto de regulamentações e de dívidas governamentais, no qual as megaempresas prosperam, mas deixando que “madeira morta” corporativa sobreviva a cada crise”. Os resgates dos grandes monopólios (“três em cada quatro indústrias americanas se ossificaram em oligopólios”), assim como o “dinheiro fácil”, mantiveram vivo um capitalismo estagnado, que passou a engatinhar ao invés de prosperar, em que empresas “zumbis” só sobrevivem por meio de empréstimos salvadores.

Sharma coloca a carriça antes do burro nesse ponto.  O crescimento da produtividade desacelerou em todos os setores porque o crescimento do investimento produtivo caiu.  E nas economias capitalistas, o investimento produtivo é impulsionado pela rentabilidade.  A tentativa neoliberal de aumentar a lucratividade após a crise de lucratividade dos anos 1970 foi apenas parcialmente bem-sucedida. Eis que terminou com o início do novo século.  A estagnação e a “longa depressão” do século XXI se mostram no aumento da dívida privada e pública, à medida que governos e empresas tentam superar a estagnação e a baixa lucratividade aumentando o endividamento.

Sharma proclama que a “imobilidade social está sufocando o sonho americano”. Enquanto, no passado cor-de-rosa do “capitalismo competitivo”, por meio de trabalho árduo e do ímpeto empreendedor, era possível ir de trapos a vestimentas elegantes, agora isso não é possível.  Note-se, porém, que o “sonho americano” sempre foi um mito.  A maioria dos bilionários e pessoas ricas nos EUA e em outros lugares herdaram sua riqueza e aqueles que se tornaram bilionários em sua vida não o fizeram sem fundos iniciais consideráveis dos pais etc.

E deixe-me acrescentar, a tese de Sharma é inteiramente baseada nas economias capitalistas avançadas do Norte Global.  Ele tem pouco a dizer sobre o resto do mundo, onde a maioria das pessoas vive.  A mobilidade social foi tolhida ou nunca existiu? Existe um grande Estado com gastos maciços de bem-estar social nesses países?  Existe dinheiro fácil para as empresas contraírem empréstimos?  Há monopólios nacionais a espremer a concorrência?  Há resgates em abundância?

Isso nos leva à principal mensagem de Sharma sobre o que há de errado com o capitalismo.  Veja-se, para Sharma, o capitalismo como ele imagina não existe mais.  Em vez disso, o capitalismo competitivo se transformou em capitalismo de monopólios, em que prospera uma Estado Grande.  “A premissa do capitalismo, de que o governo limitado é uma condição necessária para a liberdade e as oportunidades individuais, não foi colocada em prática por décadas.”

O mito de um capitalismo competitivo que Sharma projeta soa semelhante à tese de Grace Blakeley em seu recente livro, Vulture Capitalism. Aí, ela argumenta que o capitalismo nunca foi realmente uma batalha brutal entre capitalistas concorrentes por uma parte dos lucros extraídos do trabalho, mas sim uma economia bem acordada e planejada controlada por grandes monopólios e apoiada pelo Estado.

Com efeito, tanto Sharma quanto Blakeley concordam com a ascensão do “capitalismo monopolista de Estado” (SMC) como a razão para o que deu errado com o capitalismo.  É claro que eles divergem quanto à solução.  Blakeley, sendo socialista, quer substituir o SMC por planejamento democrático e cooperativas de trabalhadores.  Sharma, sendo “uma das bestas”, quer acabar com os monopólios, reduzir o Estado e restaurar o “capitalismo competitivo” para que o capitalismo possa seguir seu “caminho natural” que consiste em proporcionar prosperidade para todos. Sharma: “o capitalismo precisa se pôr como jogo no qual os pequenos e os novos têm a chance de desafiar – destruir criativamente – velhas concentrações de riqueza e poder”.

Veja bem, os capitalistas, se deixados sozinhos para explorar a força de trabalho, e livres do fardo das regulamentações e por terem que pagar pelos gastos sociais, naturalmente florescerão. “As ciências reais explicam a vida como um ciclo de transformação, cinzas sobre cinzas, mas os líderes políticos ainda ouvem conselheiros afirmando que sabem como gerar crescimento constante. Seu excesso de confiança precisa ser contido antes que cause mais danos.” Assim, de acordo com Sharma, o capitalismo estará bem novamente, se deixarmos os ciclos capitalistas de boom e recessão se desenrolarem naturalmente, sem que se ouse gerenciá-los

“O capitalismo ainda é a melhor esperança para o progresso humano, mas apenas se tiver espaço suficiente para funcionar.” Bem, o capitalismo teve muito espaço para trabalhar por mais de 250 anos com seus altos e baixos, suas crescentes desigualdades globalmente e, agora, sua ameaça ambiental ao planeta e o risco crescente de conflito geopolítico.  Não é à toa que 58% dos jovens democratas nos EUA preferem o socialismo.