A crítica de Marcuse à Fromm

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Como se sabe, a avaliação negativa de Herbert Marcuse da obra de Erich Fromm – assim como das teorias de Karen Horney e de Harry S. Sullivan, ou seja, ao que denomina de “revisionismo neofreudiano” – se encontra no epílogo do livro Eros e Civilização, publicado originalmente em 1955. A escola culturalista – diz ele – rejeita a teoria da pulsão de Freud e, ao fazê-lo, inibe o seu caráter crítico da sociedade: “o enfraquecimento (…) da teoria da sexualidade [original], conduz a um enfraquecimento [revisionista] da crítica sociológica” (Marcuse, 1978, p. 209).[2]

Aqui, apenas o primeiro autor acima mencionado, Fromm, será considerado. Ademais, a apreciação de autores diversos por atacado costuma perder a precisão, cometendo injustiças. E este, pelo menos à princípio, pode ser o caso aqui discutido.  

Veja-se, Marcuse sustentou em seu texto que Fromm havia se afastado da teoria da libido de Freud.  No entanto, Fromm, num de seus últimos escritos, esclareceu que nunca rejeitara a teoria das pulsões de Freud, ainda que tenha criticado o seu caráter estático: “minha crítica à teoria da libido não se dirige a sua orientação biológica como tal, mas antes (…) a fisiologia mecanicista na qual (…) se enraíza” (Fromm, 2013, p. 19).

Posta essa introdução, é preciso apresentar primeiro a posição de Marcuse. Veja-se, de início, como anuncia o grande mérito das teorias de Freud:

A psicanálise elaborou os conceitos para a crítica psicológica da mais altamente louvada realização da era moderna: o indivíduo. Freud demonstrou que a coerção, a repressão e a renúncia eram os materiais com que se fabrica a “livre personalidade” deste indivíduo (Marcuse, 1978, p. 205).

Assim, repressão e infelicidade têm de existir, se se quiser que a civilização prevaleça. A “meta” do princípio do prazer – ou seja, ser feliz – não é atingível, embora o esforço para atingi-la não seja e nem possa ser abandonado (idem, p. 211).

Entretanto, quando se percebeu que esse saber sobre o indivíduo – um ser agora dividido em consciente e inconsciente, dominado por pulsões que não reconhece e não controla – era antagônico com a possibilidade de realizar uma outra sociedade mais igualitária, mais pacífica e mais humana, sentiu-se a necessidade – diz Marcuse – de revisá-lo:

A concepção psicanalítica do homem, com sua crença na imutabilidade básica da natureza humana, impôs-se como “reacionária”; a teoria freudiana parecia implicar que os ideais humanitários do socialismo eram humanamente inatingíveis. Então, as revisões da psicanálise começaram a ganhar impulso (idem, p, 206).

Ora, Marcuse em seu texto vai procurar mostrar que essa retificação tira do freudismo o seu aguilhão crítico e se converte, em seu ver, em ideologia, pois permite que certas ilusões humanitárias se imponham nas concepções da psicanálise assim “renovada”: eis que a autorrealização do ser humano aparece como possível numa sociedade que eliminou por completo qualquer possibilidade de realização humana.

Vale notar, entretanto, que Freud não se refere em suas teorias à sociedade capitalista em particular. Para ele, há um conflito intemporal entre o princípio do prazer e o princípio de realidade: a sociedade só vem a ser possível se há repressão das pulsões primárias que buscam incessantemente satisfação. A sublimação – como resposta possível às coerções socialmente necessárias – torna-se, assim, responsável pela própria civilização:

Freud reconheceu a obra da repressão nos mais altos valores da civilização ocidental – que pressupõem e perpetuam a falta de liberdade e o sofrimento.  As escolas neofreudianas promovem esses mesmos valores como cura contra a escravidão e o sofrimento – como triunfo sobre a repressão.  Esse efeito intelectual é realizado mediante o expurgo da dinâmica instintiva e redução de seu efeito na vida mental. Assim purificada, a psique pode novamente ser redimida pela ética idealista e pela religião (idem, p. 206)

É evidente que Marcuse se aferra ao modelo estático de homem da antropologia negativa de Freud. Pois, o pai da psicanálise descobrira e enfatizara os efeitos tidos como permanentes dos “instintos primários” na formação da sociedade. Aquilo que estava, pois, mais escondido na formação do indivíduo e do gênero humano viera a luz e, assim, fora possível compreender algo essencial e permanente da constituição das formações sociais de todos os tempos.  

Ao contrário, Fromm, ao mesmo tempo em que retirara importância de tais processos libidinais primários, pôs ênfase nos processos ditos secundários, ligados às influências da vida social e cultural na formação do caráter dos indivíduos. Eis que “fatores e relações secundários, relativos à pessoa adulta e ao seu meio cultural, receberam assim a dignidade de processos primários” (idem, p. 207).

Ao fazê-lo, ao invés de reforçar, enfraqueceu – diz o mestre da Escola de Frankfurt – o papel da sociedade na constituição da psique. Pois, deixou de enxergar como as relações sociais e as instituições que regulam as interações sociais moldam o indivíduo desde o berço. A família, aliás, não é nessa visão crua uma unidade harmoniosa ou sagrada, mas sim uma unidade contraditória que se mantém (ou se desagrega) por meio de agonismos entre pai, mãe, filhos e filhas.

A função crítico-sociológica da psicanálise deriva-se do papel fundamental da sexualidade como “força produtiva”; as exigências libidinais impedem o progresso no sentido da liberdade e da gratificação universal das necessidades humanas (…). Inversamente, o enfraquecimento da concepção psicanalítica e, especialmente, da teoria da sexualidade, tem de conduzir a um enfraquecimento da crítica sociológica e a uma redução da substância social da psicanálise (idem, p. 209).

Antes de prosseguir é conveniente notar que Marcuse raciocina a partir das consequências admitidas da posição tipicamente freudiana vis-à-vis da revisionista. Ele não arrazoa afirmando sobretudo a verdade das primeiras e a falsidade das segundas. Não, para ele, as teorias revisionistas pecam porque levam a uma compreensão errônea das sociedades em geral e, em particular, do capitalismo. Curiosamente, ele não deixa de classificar como metafísicas as teses da metapsicologia freudiana, tais como pulsão de morte, horda primitiva, pai primordial etc.  

Pois bem, como se afigura a reação de Fromm a essas críticas que se pretendem demolidoras? Como já foi visto, afirma ele peremptoriamente não ter abandonado a teoria da biológica de Freud, centrada na noção de uma energia libidinal. Ademais, adianta que aceitou também a teoria freudiana dos fatores constituintes da personalidade para além daqueles que se originam na família.

Não há dúvida, entretanto, que considerou necessário reformular a teoria recebida. Pois, o seu fulcro se assentava num “mecanismo fisiológico” que dava uma quase exclusividade ao par conflituoso “sexualidade/repressão” na formação do indivíduo social. Eis, pois, como avalia a primeira tentativa de Freud de encontrar um fundamento primeiro do comportamento humano em geral:

Era-lhe difícil evitar a construção de um modelo baseado no conceito de pulsões interiores – decorrentes de processos bioquímicos – que se tornariam incontinentes e no conceito de descarga da tensão sexual acumulada, descarga que ele chamou de “prazer” (…) as observações clínicas de Freud vinham de pessoas de classe média que praticavam uma repressão sexual com fortes conotações vitorianas (…) A influência então predominante dos conceitos da termodinâmica dos fluídos também pode ter influenciado o pensamento freudiano (Fromm, 2013, p. 20).

Eis como, agora, avalia a tentativa final de Freud de encontrar uma base fixa e atemporal da constituição do indivíduo em geral como ser social. Havendo ampliado o conceito de sexualidade por meio da inclusão das formas pré-genitais (oral, anal e fálica), julgou ter encontrado a energia libidinal que anima todos os comportamentos humanos sejam eles masoquistas e pacíficos sejam eles sádicos e agressivos, assim como outros quaisquer.

Desde os anos 1920, em oposição à orientação mecanicista e fisiologista de sua teoria inicial da libido, Freud chegou a uma concepção bastante ampliada: a saber, o instinto de vida e o instinto de morte. Ao considerar o processo de vida como um todo, ele supôs que as duas tendências antagonistas – o processo da vida (… denominado Eros) e o processo da morte e da desintegração (que ele denominou de Tânatos) – estão ambas indissoluvelmente ligadas em cada célula do organismo (idem, p. 20).

A partir dessa visão crítica da teoria das pulsões de Freud, Fromm vai reformulá-la, criando assim uma teoria histórica, “evolucionista” (que também chama de dialética) do desenvolvimento individual (ver post anterior). Em resumo, diz ele, trata-se de uma teoria “sociobiológica”. A sua inspiração vem obviamente do materialismo histórico de Marx e Engels. Ao invés de um “individuo eterno”, aparece agora um “indivíduo em evolução”.

O homem emergiu num dado momento da evolução animal, e esse momento se caracteriza pelo desaparecimento quase absoluto da determinação do comportamento pelo instinto. O aumento do volume do cérebro permitiu então a tomada de consciência de si, “a consciência da consciência”, [o saber prático], a imaginação, a previsão e a dúvida. (…) Desde então as suas pulsões de ação foram motivadas por sua necessidade de sobreviver… (idem, p. 22).

O homem é um animal social, zoom politikon como dissera Aristóteles. Ele tem de sobreviver usando a sua mente arguta, mas não pode fazê-lo senão socialmente.  Ele forma sociedade por meio de relações sociais que unem, mas também dividem, muitos homens congregados num espaço geográfico. Em sua universalidade, as relações sociais se dão por meio da linguagem, do trabalho e da luta social, em oposição à natureza, procurando conquistá-la.

Antes de mais nada, o homem é um animal social. Por sua constituição física, ele é obrigado a viver em grupo e, portanto, deve cooperar com os outros, ao menos no que diz respeito às necessidades de trabalho e de defesa mútua. A condição básica para tal cooperação é que esteja são de espírito. E para manter sua sanidade mental (…) deve ter um quadro de orientação que lhe permita apreender a realidade e manter um quadro de referência relativamente estável numa realidade que de outro modo seria caótica (…) deve ter igualmente um quadro de devoção que abarque valores que lhe permitam unificar e canalizar a sua energia em direções específicas (idem, p. 23).

Fromm, então, denomina a relação dos homens entre si de “socialização” e a relação dos homens com o meio de “apropriação”. A partir dessa dupla vinculação inerente ao processo de constituição do homem pelo homem, Marx, como bem se sabe, pensou os modos de produção históricos: comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo grosso modo.

Fromm, por seu turno, a partir desse mesmo ponto, pensou a categoria de caráter, o qual, segundo ele, “toma o lugar dos instintos desaparecidos”. De acordo com a sua orientação mais geral, julga que esse caráter também muda historicamente. Na verdade, ele o concebe como individual, mas também como social. Para compreender os homens nos diversos modos de produção, ele pensa o caráter social por meio de “tipos ideais” abstratos, conforme a metodologia de Max Weber.

Ora, a categoria caráter também aparece em Freud. Como distinguir as concepções do pai da psicanálise e de Fromm?

Freud considera que os traços de caráter individual “estejam enraizados na libido e particularmente nas zonas erógenas libidinalmente investidas”. O seu modelo fixo de ser humano está, pois, ancorado estritamente nas pulsões sexuais; estas últimas estruturam as relações sociais no seio da família, a qual é tomada como núcleo de toda sociedade. O todo social, por sua vez, é a fonte última do que chama de princípio de realidade, ou seja, das normais sociais restritivas que impedem a livre expressão das pulsões que embalam os indivíduos, o que faz deles seres sempre insatisfeitos, neuróticos.

Fromm, de outro modo, considera o caráter como um fenômeno social e biológico “indispensável, pois garante a sobrevivência mental e física do indivíduo” (idem, p. 24) segundo as diversas configurações históricas da produção. O que o separa do primeiro “é precisamente a pluralidade das perspectivas biológicas”. Enquanto Freud acentua o impulso libidinal (sexual) como uma força central que move os indivíduos, Fromm toma essa força como uma necessidade elementar – ou seja, apenas como uma parte, aliás, também mutável, do problema da sobrevivência. Eis que esse último, em adição, envolve as necessidades de alimentação, moradia etc., mas também de segurança, cooperação, solidariedade etc. Para ele, ademais, as instituições sociais não são apenas meios de coerção dos “instintos transformados em pulsões”, mas também se configuram como habilitantes e provedoras de capacidades que permitem a vida social.

Para terminar essa nota, não é possível fazer mais do que citar mais uma vez o texto original de Erich Fromm, não sem acrescentar uma observação final.

O desenvolvimento do caráter social é necessário ao bom funcionamento de uma sociedade particular, e sua sobrevivência é ela própria uma necessidade biológica para a perpetuação da espécie. Naturalmente, isso não quer dizer que um dado caráter social garantirá a estabilidade de uma dada sociedade. Quando uma estrutura social se opõe como demasiada intensidade às necessidades humanas, ou se novas possibilidades técnicas e socioeconômicas emergem ao mesmo tempo, os elementos do caráter anteriormente recalcados vão eclodir nos sujeitos e nos grupos mais maduros e contribuir para a transformação que tornará a sociedade mais satisfatória do ponto de vista humano. O caráter social é o cimento da sociedade durante os períodos de estabilidade socioeconômica, mas pode também tornar-se uma dinamite em períodos de mudança social (idem, p. 25).

Se as concepções de Freud contêm uma antropologia negativa que alimenta um pessimismo quanto as possibilidades de transformação da sociedade no rumo de sua humanização, Fromm cai às vezes numa antropologia positiva, num humanismo que não apenas é pressuposto (como deve ser), mas posto (como não pode ser) já no capitalismo e esse viés também precisa ser criticado. E é assim mesmo se apresenta uma concepção psicanalítica mais pertinente e mais aberta ao futuro do que Freud.

Ora, nesse ponto, a crítica de Marcuse vai ao ponto certo pois mostra como um humanismo posto se transforma num anti-humanismo: “numa sociedade repressiva, a felicidade individual e o desenvolvimento produtivo estão em contradição com a sociedade; se forem definidos como valores a realizar dentro dessa sociedade, tornam-se repressivos” (Marcuse, 1978, p. 210). Eis o humanismo na crítica da economia política e na psicanálise deve ser mantido apenas como um pressuposto, na teoria e na luta social.


Notas

[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; blog na internet: https://eleuterioprado.blog.

[2] Uma outra análise desse tópico se encontra no quarto capítulo de Nildo Viana (Viana, 2008)

Referências bibliográficas

Fromm, Erich – Rever Freud – Por uma outra abordagem em psicanálise. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

Marcuse, Herbert – Eros e civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.  

Viana, Nildo – Universo psíquico e reprodução do capital – ensaios freudo-marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.