A crítica frommiana da noção de “pulsão de morte”

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Em postagem anterior, procurou-se entender melhor a categoria psicanalítica de “pulsão de morte” tal como aparece na literatura mais recente, a qual tem feito um esforço contínuo para depurá-la de suas imprecisões.  Como foi visto nessa resenha, essa noção – e isso é algo bem conhecido – é bem ambígua e controversa; os psicanalistas em geral divergem não só quanto ao seu significado, mas também se ela deve ser acolhida ou não como válida no próprio corpo da teoria. Para apresentar uma crítica dessa suposta categoria, vale-se aqui de uma sua apresentação feita por Christian Dunker:

A hipótese mais especulativa de Freud, como cientista e materialista, consistiu em dizer que a vida é um parêntese entre dois estados inorgânicos. Por isso, haveria uma tendência de retorno ao estado anterior que explicaria o aparentemente gosto irracional do humano pela repetição, mesmo quando isso implica em dor, desprazer e morte.[2]

A pulsão de morte, portanto, está ligada às repetições compulsivas das experiências traumáticas. Manifesta-se, portanto, como um desejo de aniquilamento, de destruição seja de si mesmo seja dos outros. Por isso mesmo, a própria existência da sociedade dependeria de sua contenção, de seu enceramento dentro de limites.

A pulsão de morte explicaria por que parte substancial de nossa cultura, de nosso brincar e de nossos laços sociais depende de certa administração da agressividade e, portanto, da contenção, mas também da participação, de nosso gosto por destruir.[3]

Não se pode negar os fenômenos dos quais partiu Freud para chegar à noção de pulsão de morte, mas se pode questionar o modo que empregou para explicá-los. A compulsão à repetição, a resistência a superar os estados neuróticos, o masoquismo e o sadismo, a violência irracional nas guerras, tudo isso é bem verdadeiro. Como um pensador analítico, como alguém empenhado em ser um cientista moderno, diante de fatos que requerem entendimento, ele busca sempre fundamentos primeiros duais – forças que se contrariam e que lutam entre si –, os quais apresenta como hipóteses.

Freud não acolhe as evidências empíricas, ou seja, os relatos dos pacientes sob análise, como imediatamente verdadeiros; ao contrário, ele os toma como aparências, disfarces ou mesmo máscaras, que escondem – e que, não obstante, podem revelar – os motivos inconscientes que os fazem pensar e atuar de modo “estranho” em certas situações de sua própria vida. A chamada análise tem, assim, de ir dessas aparências às suas causas, aos seus fundamentos.  

A leitura crítica dos sintomas manifestos requer, pois, uma teoria capaz de mostrar as causas eficientes “subterrâneas” que estão operando não só para cria-los, mas também para afastar os pacientes de uma vida melhor – senão de uma vida boa, pelo menos de uma mais razoável. A teoria que procurou construir e que vai da aparência ao seu fundamento último, para depois voltar dele, como causa eficiente, à aparência, foi denominada de metapsicologia. Esta última, como uma construção em processo nunca acabado, baseou-se sempre em dicotomias fundantes. Certas dualidades caracterizam o método de Freud explanar os fatos psíquicos em geral. Eis como, Erich Fromm, caracteriza de início o seu método de explanação:

Freud aceitou a crença tradicional em uma dicotomia básica entre homem e sociedade, tanto quanto a doutrina tradicional da maldade da natureza humana. O homem, para ele, é fundamentalmente antissocial. A sociedade tem de domesticá-lo, permitindo-lhe apenas certa satisfação direta de impulsos biológicos – e, portanto, inextirpáveis; geralmente, porém, a sociedade precisa apurar e refrear sagazmente os impulsos básicos do homem.

Mas quais são esses impulsos básicos que a sociedade cerceia?  Como se sabe, há duas fases no desenvolvimento da teoria freudiana das pulsões. Em ambas, a dualidade entre consciente e inconsciente foi mantida. Na primeira, do começo do século XX, ele privilegiou a dicotomia entre as pulsões sexuais ou libidinais e as pulsões de autoconservação ou do ego. Em 1920, diante da necessidade de explanar as evidências depreciativas do humano acima relatadas, ele chegou à segunda teoria que contemplava agora a dicotomia entre as pulsões de vida e de morte. Apresentou, assim, em Além do princípio do prazer,[4] a sua hipótese dualista mais especulativa, qual seja ela, de que ao lado do princípio do prazer ou erótico pulsava em todo ser humano um outro mais terrível, o princípio de morte ou de tânatos. A estrutura social suposta na metapsicologia freudiana se manteve, também, inalterada:

A relação entre o indivíduo e a sociedade na teoria de Freud – diz Fromm – é essencialmente estática: o indivíduo permanece praticamente imutável, só se transformando na medida em que a sociedade exerce maior pressão sobre os seus impulsos naturais (impondo, assim, mais sublimação) ou permite maior satisfação (sacrificando, assim, a cultura).[5]

Fromm não apenas critica as teorias de Freud como também procura uma outra base teórica para explicar melhor os fenômenos que a psicanálise visa compreender. Antes de tudo, ele vai centrar a análise não no indivíduo isolado e “eterno”, mas nas relações sociais que ligam os humanos entre si e que os conectam, já como plexos de indivíduos que formam uma sociedade, ao ambiente natural. Essas relações, como admite explicitamente junto com Marx, mudam historicamente. Ademais, ele pensa essas relações como intrinsecamente portadoras de contradições, antagonismos. Estas estruturam a sociedade e se manifestam nas interações sociais seja como cooperação seja como conflito, seja mesmo como uma polarização dilaceradora.

Na base teórica do pensamento de Fromm está, pois, o dinamismo inerente às negações determinadas próprias das contradições dialéticas – e não dualidades fixadas ad aeternum (sendo enfático) como dicotomias. Para compreender isso, veja-se de início como ele expõe a sua perspectiva teórica vis-à-vis a do autor de A interpretação dos sonhos:

Contrariando o ponto de vista de Freud, a análise [aqui] apresentada [ou seja, em seu livro O medo à liberdade] baseia-se na suposição de que o problema crucial da psicologia é aquele do tipo específico de relacionamento do indivíduo com o mundo [social/natural] e não aquele da satisfação ou frustração deste ou daquela necessidade instintiva per se; ademais, a relação entre homem e sociedade não é estática.

Não é como se tivéramos, de um lado, um indivíduo aparelhado pela natureza com certos impulsos e, de outro, a sociedade como algo fora dele, satisfazendo ou frustrando essas propensões inatas. Embora haja certas necessidades – como fome, sede e satisfação sexual – comuns a todo homem, os impulsos que contribuem para as diferenças de caráter dos homens, como amor e ódio, sede de poder e anseio de submissão, fruição de prazer sexual e o medo deste, são produtos do processo social.

As mais belas, assim como as mais feias inclinações dos homens, não parte de uma natureza humana fixa e recebida biologicamente, mas provêm do processo social que forma o homem. Por outras palavras, a sociedade não tem somente uma função supressora – conquanto também a tenha –, mas igualmente uma função criadora. A natureza do homem, suas paixões e ansiedades são um produto cultural; de fato, o homem mesmo é a mais importante criação e realização da continuidade do esforço humano, a cujo registro damos o nome de história.[6]

Para compreender a reformulação feita por Fromm da concepção de Freud é preciso examinar o que escreveu em Rever Freud.[7] Aí ele rejeita de início a contraposição usual entre orientação biológica e orientação cultural exclusivas ou quase-exclusivas no campo da psicanálise. Convém, então, que não é crítico da teoria da libido que tem, sim, base na biologia, mas que se opôs, primeiro, à “fisiologia mecanicista na qual a teoria freudiana da libido se enraíza” e, depois, à concepção de que “vem da própria natureza da substância viva estar polarizada entre a vida e a morte”.[8] Ou seja, ele rejeita certas posições fundamentalistas do fundador dessa corrente de investigação.

Como argumenta, aliás, o próprio Freud não ignorou a existência da sociedade – sem, no entanto, pensá-la como totalidade:

Embora o cunho biológico das concepções freudianas seja inquestionável, seria uma distorção caracterizar a sua obra como exclusivamente orientada para a biologia e de forma alguma para a sociologia. Em contraste absoluto com uma dicotomia tão artificial, ao contrário, Freud estava permanentemente preocupado com os aspectos sociológicos do psiquismo. Nunca considerou o homem um ser solitário, separado do contexto social. [9]

Fromm classifica a sua orientação como sociobiológica; ora, isso suscita então uma pergunta crucial: no que ela difere afinal da orientação do próprio Freud. Ora, ela se recusa a atribuir às pulsões a condição de fundamento primeiro que resiste ao tempo e passa a apreendê-las como atributos historicamente determinados do homem. É assim que as concebe:

O homem emergiu num dado momento da evolução animal, e esse momento se caracteriza pelo desparecimento quase absoluto da determinação do comportamento pelo instinto e pelo rápido aumento do volume do cérebro, o qual vai permitir então a tomada da consciente de si, “a consciência da consciência”, a imaginação, a previsão e a dúvida. Quando esses dois fatores atingiram um certo patamar, nasceu o homem e desde então todas as suas pulsões de ação foram motivadas por sua necessidade de sobreviver”.[10]

Ao invés, portanto, de um método estático que encontra em Freud, Fromm adota um método evolutivo que se aproxima do “método” dialético de Hegel e Marx que, como se sabe, é interno ao objeto de estudo. O homem, para ele, é então apreendido como um animal social que tem como problema central a sobrevivência. Ele vive desde o seu nascimento em grupo e, portanto, tem necessidade da cooperação não só para subsistir fisicamente, mas também para existir psicologicamente. O homem é um ser que vive por meio um complexo de interações, que consiste, segundo a formulação clássica de Hegel, em trabalho, linguagem e luta, ocorram essas formas entre os membros do grupo, entre grupos distintos, e com a natureza.

Para pensar o ser e o vir a ser do homem, Fromm cria as categorias interligadas de “caráter” e de “adaptação dinâmica”. A primeira caracteriza o indivíduo social na temporalidade já que ele se forma por meio da segunda, no interior da estrutura social em que o próprio indivíduo social veio à luz e sobreviveu por um tempo maior ou menor.  

O caráter é a forma na qual se insere a energia vital do homem durante os processos de “socialização” (isto é, de relação com o outro) e de “assimilação” (isto é, de integração, de “apropriação” do mundo dos objetos). A estruturação do “caráter”, na verdade, toma aqui o lugar dos instintos desaparecidos”.

Ao invés, portanto, de tomar a categoria “pulsão” como fundamento primeiro, ele a toma como contradição antagonística que vai caracterizar o processo vital e social de todos os que pelejam na sociedade humana. No capítulo de Rever Freud denominado Por uma renovação dialética da psicanálise, Fromm diz que essência do homem não pode ser concebida como uma dada positividade, “como uma substância ou como uma estrutura fixa, com qualidades intrínsecas e definidas para sempre”.  

A essência do homem é a dicotomia [N.T.na verdade, contradição irreconciliável] que lhe é própria, isto é, a oposição entre estar incluído na natureza e submetido a todas as suas leis e, ao mesmo tempo, transcender a natureza, porque o homem, e somente ele, é consciente de si mesmo e de sua existência.

Dessa contradição antagonística, do fato de que o homem é e está na natureza, mas ao mesmo tempo, é e está além dela, decorre o modo específico de seu “vir a ser” – que consiste em “sofrê-la” em cada momento e em todos os momentos da vida. Assim, a ele se impõe – diz Fromm – o seu próprio autodesenvolvimento como necessidade imperativa, ou seja, um modo de existir que está além de um simples evoluir segundo as leis da natureza, tal como acontece com os animais em geral. Eis como pensa o processo de autorrealização humana numa perspectiva devedora do existencialismo:

Em consequência, a energia do homem tem por objetivo tornar suportável essa dicotomia [N.T.: contradição irreconciliável] e criar soluções novas – e se possível melhores – para essa oposição fundamental. Todos os desejos e as paixões do homem, seja ele normal, neurótico ou psicótico, visam a reparar essa dicotomia [N.T.: contradição irreconciliável] imanente: e como é vital para o homem encontrar uma solução, desejos e paixões são investidos com todas as energias disponíveis no ser. De uma maneira geral, trata-se aí, para o homem, de maneira “espiritual”, autoconservadora, de transcender a experiência do vazio e do caos encontrando um quadro de orientação em um objeto de devoção.[11]

A noção de pulsão tal como empregada por Freud significa “a carga energética que está na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem”. Trata-se, como se pode ver imediatamente, de uma noção tirada da termodinâmica do século XIX. Fromm faz uma reavaliação dessa noção, ou seja, das noções de pulsão da vida e pulsão da morte, torcendo-as no sentido da dialética. Assim, a contradição pulsional que mora no homem pode moldar o seu caráter, impelindo-o para direções diversas entre si. Sem se libertar inteiramente da linguagem freudiana, ele fala então em duas forças antagônicas:

Refiro-me à ideia de que as duas forças mais fundamentais motivadoras do homem são a biofilia (o amor à vida) e a necrofilia (o amor à morte, ao perecimento etc.) A pessoa dotada de biofilia é aquela que ama a vida, que torna vivo tudo o que ela toca, inclusive ela mesma. A pessoa necrófila, como Midas, transforma tudo em algo morto, de inanimado, de mecânico. Nada melhor que a “relação de forças” entre a biofilia e a necrofilia para permitir que se determine a estrutura do caráter de uma pessoa ou grupo socialmente existentes.

Ao proceder assim – e isso deve agora ficar bem explícito –, Fromm abandona a noção fundante de pulsão da vida e de pulsão da morte e passa a pensar em tendências pulsionais contraditórias, “forças impulsionadoras” que decorrem da contradição entre ser e não ser, em atuar ou se omitir, em se realizar ou cair em frustração, em viver e morrer, em promover a vida ou procurar a morte – pondo-se assim ontocriativamente de qualquer modo. Assim Fromm pode explicar os fenômenos contrários à vida que tanto preocuparam Freud depois da I Guerra Mundial.


[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; blog na internet: https://eleuterioprado.blog

[2] Dunker, Christian – Lacan e a democracia. São Paulo: Boitempo, 2022, p. 101.

[3] Op. cit., 102.

[4] Freud, Sigmund – Além do princípio do prazer. Obras completas (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 161-239.

[5] Op. cit., p. 19.

[6] Idem, p. 20.

[7] Fromm, Erich – Rever Freud – por uma outra abordagem em psicanálise. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

[8] Op. cit., p. 19 e p. 21.

[9] Idem, p. 21.

[10] Idem, p. 22.

[11] Idem, p. 38.