Crítica do sujeito moderno e crítica da economia política

Notas sobre o método da crítica

Autora: Sandrine Aumercier – Blog Pslim-Psao – Publicado em 18/06/2022

Em busca de um conceito político de psicanálise

Por que é tão difícil falar de Psicanálise em Economia Política? Farei algumas considerações de método sobre essa questão. Freud nunca se perguntou se a psicanálise deveria evitar falar sobre sociedade, civilização ou fenômenos coletivos: para ele, isso era evidente e constituía uma parte muito importante de seu trabalho. É até incrível o quanto ele nunca deixou de trazer essa questão de volta à tona.

O seu problema era saber se os conceitos resultantes da cura individual eram adequados teoricamente. Ele não estava satisfeito com as analogias que tinha que produzir, nem com certos discursos transculturais. É necessário notar uma aporia em sua investigação: se trata da autonomização do desenvolvimento cultural, é obrigado ao mesmo tempo a se referir a um fenômeno orgânico. Ele permanece, portanto, dependente de uma visão historicista, imperialista e lamarckiana característica de seu tempo. Por isso, os termos de Freud não são mais nossos, ainda que ele lance as bases para uma teorização psicanalítica dos processos culturais.

Se Lacan rompe com a herança do Iluminismo, a sua teorização do coletivo também não se envolve em profundidade com a crítica da economia política. O eco fantástico de algumas referências de Lacan a Marx não vem a ser uma salvação. Lacan, aliás, nunca desenvolveu as suas intuições e hoje elas parecem requerer uma releitura de Marx por quem as examina. Porém, o nome de Lacan não é uma garantia.

Daí surge o tema vago do “equivalente geral”, da “homologia entre o mais-valor e o mais-gozar”, do “discurso do capitalista”, da “invenção do sintoma por Marx”, ou surge um Marx que construiu o modelo da luta de classes (como se também não houvesse outro Marx por descobrir). Tudo isso se constitui na obra de Lacan como apenas um pequeno conjunto de alusões, feitas a partir de uma leitura sumária de Marx. Isso não invalida a contribuição de Lacan para o campo da psicanálise, mas não pode constituir a base de um discurso psicanalítico articulado em categorias marxistas.

As consequências disso são sentidas ainda hoje nas posições políticas dos psicanalistas. Aí, com base numa identificação com o “povo” bom, encontramos uma denúncia das “elites”; uma concepção de neoliberalismo fomentada por uma ideologia e uma política que parecem ter o poder de moldar o mundo; o anátema total contra o “discurso capitalista” do qual ninguém sabe de onde vem; o chamado para renovar os valores do humanismo devastados pelas políticas neoliberais; a denúncia de uma decadência da “função paterna” ou da prática do “gozo ilimitado” etc.

Essas posições estão, a meu ver, nos campos da psicologia ou da moral, mas não no da psicanálise.[1]  Como tais, estão sempre acompanhados da ideia de que a psicanálise tem um papel positivo a desempenhar e uma perícia acima da média no enfrentamento da civilização mortífera que aí está (como se ela não fosse um elemento e um efeito dessa civilização).

Há também pessoas na vida pública que são enfeitadas por algum renomado psicanalista com um perfil psicopatológico;[2] aparecem fenômenos coletivos analisados com conceitos derivados da análise individual sem explicar a mediação entre os dois ou com base em uma homologia considerada óbvia;[3] surge uma tipologia psicanalítica do “sujeito contemporâneo” que rapidamente se torna mau sociologismo; ou francamente uma análise global da civilização que luta para articular os dois níveis, como se pudéssemos saltar com os dois pés do individual para o todo. Freud quebrou a cabeça com esse último ponto porque tentou construir uma mediação teórica (por exemplo, com a noção de um “superego cultural”);[4] mas às vezes ele se desviou no caminho do mau culturalismo.

A grande questão dos freudo-marxistas era justamente a dessa mediação, pois eles haviam percebido aí, claramente, o cerne do problema. Mas tendo muitas vezes abreviado Freud para as necessidades da crítica social e, além disso, retomado acriticamente clichês do marxismo tradicional – como a crença de Marcuse em uma liberação permitida pelo desenvolvimento das forças produtivas – eles também acabaram fazendo “freudismo aplicado” ou “marxismo aplicado”.

Acrescentar uma pressuposição freudiana acrítica a uma pressuposição marxista acrítica alimenta um pessimismo cultural ou um otimismo revolucionário sem cerimônia – em última análise, o oposto de uma teoria crítica radical, que era, no entanto, a ambição dessa geração de autores. Algumas perguntas devem, portanto, ser inteiramente repostas. Por que tal proposta hoje se torna com tanta frequência um motivo para desenterrar arquivos antigos – especialmente quando os mesmos problemas ainda estão tão sem solução e são muito urgentes?

Por fim, o genitivo objetivo, nas expressões “política do inconsciente”, “política da psicanálise” ou “política do significante”, insinua a ideia de que há uma “política a ser feita” (internamente, a saber, como se organiza a transmissão da experiência analítica; externa, ou seja, como se defende a psicanálise no campo social; ou ainda lógica, ou seja, trazendo a política de volta em discursos que seriam emanações de escolhas significantes). Ora, o genitivo implica uma política que seria de alguma forma induzida pelo próprio inconsciente, pela psicanálise, pelo significante etc.[5]

Lacan contentou-se em dizer, por sua vez, que “o inconsciente é político”. Ele forneceu assim uma definição do inconsciente, mas não da política. No seminário de 10 de maio de 1967, ele introduziu uma dialética do “ser-recusado” onde o neurótico se oferece, sob pedido do Outro, como ser a ser recusado, movendo-se por um desejo de ser rejeitado. O psicanalista se iguala a essa postura à medida que, com uma oferta, cria a sua demanda – mas se recusa a satisfazê-la, não por desejo de ser rejeitado, mas para que a análise ocorra. O aforismo de Lacan tem um alcance restrito: diz respeito às posições subjetivas articuladas na neurose e, em especial, à posição do analista.

Mas nesse seminário há também uma alusão à Guerra do Vietnã: “Trata-se de convencer certas pessoas de que estão muito erradas em não querer ser admitidas nos benefícios do capitalismo!”[6] Se menciona a integração forçada ao capitalismo, este seminário é, no entanto, mais do que confuso sobre uma possível articulação da situação pessoal com o capitalismo. Como sempre, Lacan anuncia um desenvolvimento… que nunca virá. É preciso acompanhá-lo, mas nos termos que hoje são os nossos.

De onde vem o capitalismo?

No entanto, não há nada mais difundido do que a denúncia do capitalismo. Essa denúncia abrange inclusive todo o espectro político; eis que cada fração parte de seu “diagnóstico de crise”. Do que estamos falando quando culpamos o capitalismo? A crítica aponta, como o faz muitas vezes, para um desejo de dominação sustentado por uma determinada classe social? Ela emerge de determinações ideológicas que podem ser identificadas em tal e tal discurso de seus portadores funcionais? Vem a ser expressão de uma natureza humana calculista e insaciável?

A psicanálise está acostumada com o medrar de tais questões em seu próprio campo, com a questão do desejo, do corpo, da fantasia, da memória como tela de fundo etc. Nunca, porém, essas identificações dão a chave “para encontrar” o sujeito do inconsciente; eis que este tem antes produzir um objeto por meio de uma palavra singular permitida por um dispositivo artificial de transferência. A crítica social, por sua vez, sempre falha em produzir o seu sujeito e, portanto, apenas o supõe grosseiramente.

A questão da origem, histórica ou biográfica do sujeito, esbarra na impossibilidade de respondê-la – pois o sujeito está ausente desde o início – mas também nos obriga a fabricar teorias (por exemplo, as que Freud chama de teorias sexuais infantis). Subordinar essas teorias à verificabilidade por evidência ou por cálculo endossa o paradigma científico. Mas, inversamente, a crítica desse paradigma não faz do inverificável uma virtude, razão pela qual Lacan diz que há conhecimento do real. Que há conhecimento: isso é verificável. O pensamento pós-moderno parou no meio do caminho e continua, hipnotizado, a nos falar sobre o buraco da origem. Ele não quer seguir pela segunda parte do caminho, que é o risco de uma teoria. A hipnose devida à ausência de prova (que Lacan chama de “mistagogia do não-saber”) torna esse esboço de teoria inatacável.

A questão da origem surge, portanto, quer gostemos dela ou não. De onde venho para ser? Do ventre da minha mãe, do desejo dela ou de uma história coletiva? Esses aspectos são inseparáveis, embora em níveis lógicos distintos. Não é possível “isolar” – como sob a lente de um microscópio – o desejo materno do resto da família e da história coletiva.

Afigura-se interessante para a psicanálise notar que a constituição de uma esfera pública (masculina) e uma esfera privada (feminina) é muito recente historicamente.[7] Pode ser igualmente interessante lembrar que não ocorre às próprias pessoas saber que, durante a Revolução Francesa, estabeleceram o atual sistema de representação, resolvendo chamá-lo de “democracia”.[8] E de onde vem o dinheiro, já que ele não cresce no campo como as batatas? O seu papel na economia capitalista nada teria a ver, por exemplo, com seu papel na Idade Média?[9]

Por fim, de onde vem a mercadoria? Quando surge historicamente o trabalho abstrato (ou seja, aquilo que cada um de nós gera por quase toda a semana)? Nota-se imediatamente que a psicanálise não possui tais conceitos sui generis. Tem apenas uma concepção (crítica) do sujeito, que deve estar relacionada com as demais categorias da modernidade. Ora, não é possível deduzir apenas das características desse sujeito uma concepção nítida de economia política; não é possível, portanto, abordar este campo como “terreno conquistado”. A transposição dos conceitos da psicanálise para o campo social leva aos impasses acima mencionados. Ao mesmo tempo, a transposição de uma concepção acrítica do sujeito para as lutas sociais produz sua parcela de impasses correspondentes.

Como é que, então, a psicanálise se valeu de um espectro tão amplo de referências teóricas (arte, literatura, psiquiatria, matemática, linguística, lógica, antropologia etc.) para pensar a dinâmica material da civilização em que surgiu? Como é que nem Freud nem Lacan nem seus sucessores se envolveram na crítica da economia política mesmo se o modo de produção capitalista determina tendencialmente a totalidade da existência no planeta Terra e provoca um feixe de crises cada vez mais evidentes, bem como uma crescente descontentamento social (e isso aparece sempre nas sessões de análise)?[10] Não há nada mais a dizer sobre isso do que retrabalhar, oitenta anos depois, o Mal-estar na civilização, empregando talvez alguma fórmula – em última análise anedótica – de Lacan sobre o discurso do capitalista? Podemos continuar a ignorar este problema que é tão grande quanto um elefante na sala?

De fato, os empréstimos da literatura, da linguística ou da lógica refinam os conceitos da psicanálise, mas não ameaçam seus fundamentos; eles o enriquecem e fortalecem seu discurso. A crítica da economia política, ao contrário, toca os fundamentos históricos não apenas da prática e da teoria analítica, mas do sujeito do inconsciente, que Lacan pensa como idêntico àquilo que chama de “sujeito da ciência”. Por que, então, a economia política é tão negligenciada? Senão por que mina os fundamentos de uma psicanálise muito ciente de sua posição socialmente irrisória?

A teoria analítica deve agora tomar nota do fato de que não há sujeito da ciência sem sujeito da mercadoria (e, portanto, do fetichismo da mercadoria): a relação entre acumulação moderna de conhecimento parcelado e a produção de mercadorias, reino da abstração e valorização do valor, é uma relação de necessidade interna.

A corrida tecnocientífica e a financeirização não são apenas ideologias exercidas por pessoas sem escrúpulos. São modos de compensação gerados pela desvalorização do valor, induzidos pela redução da quantidade global de trabalho produtivo desde a década de 1970. Ora, isso significa que o sistema não pode mais financiar os seus próprios custos e deve recorrer a expedientes cujo alcance precisam ser cada vez maiores. Assim como as autoridades políticas não são de fato independentes, como não há, portanto, independência possível das ideologias que tratam da crise ou mesmo das produções científicas em um contexto de aprofundamento da “contradição em processo” (Karl Marx).

Da teoria sexual infantil à teoria propriamente dita

A psicanálise não tem objetos predeterminados. Por definição, a sexualidade infantil é considerada como aberta a todos os objetos possíveis e como ponto nodal de qualquer teoria. É o objeto produzido por meio da palavra que requer e justifica a análise – e não a psicanálise, como teoria constituída, que vai em busca de um objeto. A psicanálise, portanto, se deixa questionar — ou não — pela variedade de objetos (ou “extensões” para usar o termo de René Lew) que aparecem em seu campo. Todo mundo tem uma teoria sexual, isto é, “uma teoria de algo” – de algo que o preocupa.

A cura analítica, nesse sentido, reabre um arquivo fechado, repõe uma questão que aparentemente já fora tratada. A livre associação não é uma celebração do irracional. Há um objetivo preciso que é o levantamento da repressão, por meio da produção de novas conexões. Os analisandos sabem muito bem a diferença entre o rodeio e o desenrolar de um fio associativo, que tem seu próprio rigor medido contra os efeitos da surpresa. Nem todo discurso é eficaz: pode-se “falar para não dizer nada”. Uma palavra que, como dizemos, “chega aos fatos” equivale a um ato que “é igual à estrutura que o determina”.[11]

A subversão analítica é, portanto, de método, não de conteúdo. Em vez de perguntar se a psicanálise cumpre os critérios da pesquisa científica – se sabe que não cumpre – temos toda razão em inverter a pergunta e perguntar se as teorias científicas cumprem os critérios da psicanálise: ora, será que ela vai levar sua pergunta até o fim? Será que vai englobar na teoria o aparecimento de novos “fatos”?

A ciência se concentra nos fatos que decreta relevantes e descarta precisamente aqueles que fazem “barulho”, que vão além do quadro de referência básico. Lembro-me de um pesquisador de biotecnologia que questionei sobre as implicações éticas de seus objetivos de pesquisa e que me disse sem pestanejar: “não é da minha conta, existem comitês de ética para isso. Uma questão que se deixa compartimentar externamente em “domínios” estanques não corre o risco de ser confrontada com sua própria contradição. No entanto, essa exigência de ultrapassar as fronteiras disciplinares é necessária para que a questão mais singular se torne uma questão universal, ou seja, em termos freudianos, para que ela constitua uma contribuição cultural.

Freud frequentemente descrevia a sua atração irresistível pelos enigmas deste mundo (a qual foi batizada de “paixão da ignorância” por Lacan). Quando se segue os critérios da ciência, a questão aparece como objeto sujeito a protocolos “falsificáveis” (Karl Popper). Mas se ela é recebida psicanaliticamente, então, uma vez colocada, não sou “eu” que a trata como um objeto apresentado de fora, mas é ela que segue seu curso impondo-me suas advertências; durante o processo de sua acolhida, ademais, necessariamente, leva ao estouro do núcleo inicial.

O rigor desse método só pode ser devido à consideração dos obstáculos que surgem e que favorecem momentos que não podem ser assimilados pelos pressupostos iniciais. Tal abordagem teórica, portanto, não é estranha ao progresso da psicanálise. A teoria do inconsciente de Freud é, nesse sentido, consubstancial à análise de Freud de seus próprios sonhos. É isso que o torna um ser infinitamente mais avançado do que o homem Freud, que era bastante conservador. A “questão de Freud” levou Freud muito mais longe do que ele mesmo: esta é sua parcela de universalidade.

O habitus inerente à pesquisa universitáriaimpõe um método fragmentado, instrumental e orientado. Já o método analítico da psicanálise se recusa a “resolver” a questão, porque nenhum aporte lateral, nenhuma ideia incidental, nenhuma contradição ou autocrítica deve ser descartada (mesmo que não haja nada no fim, ou seja, mesmo que o desvio não seja “rentável” em termos de conhecimento). O método analítico não refuga frente ao rigor interno da coisa examinada. É o que Adorno chama de “primazia do objeto”.[12]

O objeto colocado na minha frente não é um objeto primeiro; é um objeto sempre já presente, que precede o sujeito, mas que, no entanto, só pode ser recriado — e não redescoberto. Como tal, também é baseado em pulsão; é impossível produzir este objeto sem necessidade. A produção teórica é, portanto, tanto a produção de um objeto (supostamente já presente) quanto a transformação do sujeito (também suposto) que acolhe essa questão no movimento pulsional de recriá-la. O movimento da psicanálise é, nesse sentido, um movimento teórico. Essa forma de teoria – que é uma forma crítica, porque nega de antemão qualquer objeto e qualquer sujeito pré-constituído – deriva da moderna dicotomia sujeito-objeto.

Às vezes, uma pessoa pergunta em análise: “eu tenho que lhe contar sobre minha infância agora?”; “eu tenho que lhe contar meus sonhos?” Existe esse clichê de que sonhos ou memórias de infância são em si objetos que entregam a chave para a entrada no inconsciente. No entanto, a psicanálise trata todos os fatos e, portanto, também os fatos políticos, como se fossem sonhos, ou seja, trata-os tanto como uma formação do inconsciente, como enigma que interpela, que põe a sua questão, como algo a ser teorizado. Os sonhos são apenas a manifestação ideal-típica das formações do inconsciente.

Se a pergunta vem do objeto, se ela se impõe (como um sintoma que atormenta, como um sonho que incomoda), então não é mais possível aplicar um corpus de conceitos psicanalíticos a qualquer objeto exterior a ela, tal como, por exemplo, a “política” como um campo separado. O Outro é enigmático e sempre quer algo, contudo, ele, literalmente, não faz perguntas. A psicanálise teoriza, como ocorre com o mito de Édipo, o avanço da pesquisa que não se furta a questionar seus pressupostos iniciais. A Esfinge, por outro lado, coloca uma questão perfeitamente enquadrada, digna de um exame previamente orientado.

O verdadeiro enigma da história é o incômodo do objeto dentro do sujeito. É por isso que o inconsciente não é exterior à política e porque a psicanálise só pode se deixar levar pela questão política, que lhe advém de sua própria inscrição social e de sua teoria do sujeito do inconsciente. Mas ela não pode se engajar nela ignorando as determinações categoriais da economia política, pois elas moldam a partir de dentro o objeto dentro do sujeito. A psicanálise não está em condições de explicar tudo com os seus próprios meios.

Assim como os filósofos que se orgulham de falar do inconsciente, sem vinculá-lo à experiência dos processos psíquicos, correm o risco de transformar o inconsciente em metafísica, também falar de capital sem vincular esse conceito a todas as categorias do processo real de produção corre o risco de transformá-lo também em um conceito metafísico. Se deploramos que tantos filósofos tenham negligenciado o inconsciente, não cultivemos o mesmo mal-entendido sobre a lógica do capitalismo.

A questão, uma vez colocada, inevitavelmente toca em todas as questões; esta é sua diferença essencial com os problemas da pesquisa aplicada à resolução de uma questão de detalhe, assim como às suas aplicações técnicas e comerciais. O método praticado pela psicanálise rompe a compartimentalização das disciplinas (que em si nada mais é do que um sintoma da moderna divisão do trabalho). Aproxima-se pela via negativa da oposição formal sujeito-objeto da qual procede o modo de produção capitalista.

 Conclui-se que não há “questão política” no sentido de um “tema a ser tratado entre outros”. Existem as categorias de economia política, que requerem um tratamento teórico à altura das determinações formais do capitalismo, das quais o tema do inconsciente é apenas um efeito. Isso exige que a psicanálise repense as condições históricas de seu surgimento e de seu exercício de uma forma que não possa se contentar com um oportunismo que visa garantir seu lugar ao sol, pois o que está em jogo é a sua relevância e sua epistemologia.

O homo politicus acompanha o circo das eleições, a guerra na Ucrânia, a crise energética, a crise sanitária, a crise climática, a crise migratória ou a crise econômica, de uma forma tão evasiva como os seus próprios sintomas neuróticos – para não saber de fato nada. É por reflexo que ele se julga “de esquerda”, se identifica com uma classe, um discurso, uma causa. Mas o funcionamento real da política não é dado por essas identificações que, ao contrário, a mascaram. Por que então as determinações do capitalismo seriam menos interessantes para a psicanálise do que, por exemplo, as famosas “fórmulas da escolha do sexo”?

No sentido freudiano, uns não são menos sexuais que os outros. Não se trata de defender um subjetivismo no sentido de examinar apenas “minha relação pessoal com os fenômenos políticos” (por exemplo, os humores do eleitor). Trata-se de acolher psicanaliticamente a questão da economia política, para tirá-la da repressão em que a acomodação ordinária com o pior a mantém – o que implica entrar em suas articulações teóricas. Enganada por suas tentativas fracassadas de chegar a uma “psicanálise aplicada à política”, a psicanálise ainda não conseguiu traçar o fio de sua constituição comum com a crítica da economia política. Entretanto, ela passa o seu tempo sentindo essa afiliação, repetindo, por exemplo, que o melhor do melhor é conceber “o inconsciente como político”. Tudo isso tem a ver com a formação do sujeito moderno.

O preconceito individualista

Um grande obstáculo teórico aparece agora; eis que ele é a crença espontânea no fato de que a sociedade parece composta pela soma de comportamentos individuais e que, em consequência, é possível modificar a sociedade passo a passo, a partir desse sujeito. Essa crença é propagada tanto pela psicologia comportamental quanto pela teoria econômica neoclássica; essa última diz que todos os problemas devem ser precificados para que, assim, recebam resposta por meio da demanda do consumidor.

O individualismo metodológico impede o confronto entre a psicanálise e a crítica da economia política, embora a psicanálise tenha intrinsecamente os meios conceituais para evitá-lo. O indivíduo não é um ponto de partida teórico mais adequado do que o capitalismo tomado apenas como uma totalidade abstrata; nenhum desses pontos de partida fechará a aporia do duplo fundamento real instituído pela dicotomia sujeito-objeto: esse duplo limite, portanto, também deve ser teorizado.

O que acontece no processo da cura psicanalítica não é adequado paraanalisar corretamente o movimento objetivo do dinheiro e do valor. Esse movimento não pode ser abordado por meio da consideração do elemento subjetivo. Este último pode fundar uma posição ética, mas não funda uma compreensão global ou uma transformação social. A “propagação” ou a “deriva” (René Lew) do discurso colide de repente com a borda invisível da forma social. A questão deve, portanto, superar seu próprio limite e libertar-se de seu preconceito de método (o preconceito individualista) para entrar no estudo do que está tanto em seu caminho quanto em seu próprio coração.

Se é a questão que impõe o método, então, tal questão tem de se despojar de sua propensão a querer tratar de todos os problemas a partir de um único corpus de conceitos e de uma única técnica. Para isso, o nível de exigência teórica deve ser máximo de cada lado – tanto do lado da psicanálise quanto do lado da crítica social. Na verdade, parece, na maioria das vezes, se reduzir ao mínimo – poderíamos mesmo falar aqui de um “mínimo especializado” à medida mesmo que está em causa uma formação de compromisso.  De tal modo, que essa constituição por especialização mantenha aquele conforto que consiste em manter os campos de intervenção bem separados, respeitando a divisão do trabalho prescrito pelo capitalismo e suas radicalidades aparentes.

Ora, trata-se precisamente de evitar reproduzir mais uma vez tal divisão do trabalho, sem ceder à tentação de separar cuidadosamente os “fatores subjetivos” e os “fatores objetivos”. A psicanálise teria seu campo de intervenção e a crítica social teria o seu próprio campo de tal modo que as vacas estariam bem guardadas. Nesse esquema, qualquer aproximação de um lado com o outro é percebida respectivamente como ideologia. No entanto, é óbvio que a ideologia aqui consiste em querer “salvar” um lado do risco de seu confronto com o outro. Isso equivale a uma desculpa pura e simples motivada pela ignorância.

O exame pela psicanálise das categorias do capitalismo faz com que ele perca algo, em particular a ilusão de querer ter uma teoria que é suficiente em si mesma. A crise é para o capitalismo o que a clínica é para a psicanálise: o encontro forçado com os processos que se impõem, exigindo uma elaboração correlata. Se a crise da histeria exigiu a elaboração dos conceitos que permitissem analisá-la, a crise do valor exige uma teoria própria. Acima de tudo, note-se que uma teoria não deixa de ter relação histórica com a outra, pois as mulheres também adoeceram de seu confinamento doméstico e de sua atribuição às atividades reprodutivas (como Freud observou muitas vezes) – em um espaço social dissociado da lógica masculina de valor.

O psicanalista é um sujeito da mercadoria como qualquer outro; ele está determinado como os outros pela competição universal dos interesses privados e pelo limite interno absoluto da “contradição em processo”. A psicanálise é alinhada com esse maremoto civilizacional como tudo o mais, nem mais nem menos. É, portanto, para isso que ele deve dar conta da ausência de qualquer idealização de seu lugar na cultura. O discurso analítico não pode se tornar um discurso afirmativo conferindo à psicanálise um lugar de destaque, inclusive para propor um “diagnóstico” especial ou uma teoria sobretudo. A psicanálise conduzida até suas últimas consequências, como a teoria crítica, aproxima e sustenta, examinando suas condições imanentes, o ponto de sua própria supressão. Ela não tem nada a defender sob pena de obter nada melhor do que sua integração nessa dinâmica destrutiva.

A dicotomia sujeito-objeto – problematizada pela psicanálise – implica trazer os dois termos de volta à mesma constituição, termos mantidos artificialmente separados pela via dos conceitos. Por não conseguir reunir os momentos separados desse processo comum de constituição histórica (porque a dicotomia não é apenas cognitiva, mas real e operativa), a elaboração teórica é forçada a voltar várias vezes ao núcleo lógico dessa constituição sem jamais conseguir, porém, transcendê-lo (somente o advento de uma nova forma social teria sucesso). A teoria está assim, por todos os lados, enredada em seus próprios limites de método; a psicanálise não é exceção. Mas não é impossível que ela volte, por uma abordagem negativa, na direção da constituição formal da qual ela mesma procede.

O reconhecimento desse fato pode proteger a teoria de uma recaída nas aporias do holismo e do individualismo que ameaçam constantemente a psicanálise, por um lado, e a crítica social, por outro. Nesse sentido, a psicanálise é convidada, no final do caminho, a renunciar ao seu preconceito metodológico – individualista – e, de certa forma, a suprimir-se (ou seja:  fazer uma supressão lógica de si mesma). É tão pouco o fundamento de uma revolução quanto a luta de classes em seu gênero. Uma psicanálise que se defende, que busca se preservar e ser reconhecida é contrária ao seu próprio conceito. Não é um bem cultural a ser incluído no patrimônio da UNESCO (isso não é brincadeira, a proposta já foi feita). É uma prática baseada na “destituição do sujeito suposto saber” – para falar conforme Lacan – que é uma destituição subjetiva. Ora, essa figura lógica do fim da análise não diz respeito apenas ao tratamento individual, mas também à psicanálise como produto histórico. A psicanálise deve manter rigorosamente sua especificidade até seu próprio ponto de destituição.

A questão atravessa fronteiras

Se é a pergunta que “faz a sua lei”, então o rigor de Freud no desenvolvimento de seu questionamento – que tantas vezes o levou para além de si mesmo – também precisa ser o nosso. E esse rigor implica seguir inflexivelmente o rastro dos fatos (Tatsachen) adequados para desdobrar a questão até o fim.

Os fatos ocasionalmente assumem a forma de uma objeção, mas também são sinalizados por um afeto desagradável: estamos perdendo o equilíbrio. Freud nunca teria inventado a psicanálise se não tivesse transcendido as fronteiras acadêmicas e conceituais existentes. O método analítico confunde-se com o curso de uma questão que nos obriga a entrar no furor da modernidade, ele não vai deixar de esbarrar no seu próprio limite metodológico. Quanto mais rigorosa a psicanálise é com seu próprio método, tanto mais se aproxima do ponto de sua própria abolição como disciplina imaginativamente auto consistente.

Esse esforço de rigor significa que a psicanálise só pode se aproximar da economia política constrangendo-se ao mesmo esforço de antipsicologismo que persegue em seu próprio campo.[13] A segmentação individualizante e identitária do conhecimento faz parte desse psicologismo onde cada um se identifica com sua disciplina e defende com afinco sua prioridade sobre os demais. Mas uma posição antipsicológica tem outras consequências. Sob a dominação impessoal do capital, não se pode mais entender a moderna estrutura de poder a partir da aspiração pessoal ao poder dos governantes, assim como nunca se toma as motivações externas de um analisando pelo seu valor nominal.

Nem o capitalismo em sua estrutura se explica pela busca do lucro ou pela simples exploração de uns por outros, nem pela simples apropriação do mais-valor; o que precisa ser explicado é porque a criação de valor e a acumulação de dinheiro são uma exigência absoluta desse modo de produção. Ora, o que acontece quando ele não funciona mais? Da mesma forma, a crítica ao capitalismo financeiro é tão irrelevante para a compreensão do capitalismo quanto abordar um sintoma clínico da denúncia de seus excessos, sem se voltar à compreensão da estrutura. A crítica do hedonismo também não tem interesse teórico se não estiver relacionada à constituição do homo economicus, que é sempre primeiro trabalhador antes de consumidor.

Finalmente, não podemos explicar o neoliberalismo com base na ideologia gerencial; o “discurso neoliberal” não se sustenta sozinho. Lacan articula a fantasia a partir do corte entre o sujeito dividido e o “déficit corporal” (ou seja, o objeto a como falta persistente): a ideologia, da mesma forma, não pode ser abstraída do solo das relações de produção materiais baseadas em uma separação estrutural do produtor com o produto de seu próprio trabalho – a mercadoria, que então assume uma existência independente. A psicanálise está acostumada a lidar com “ideias” ou “significantes” apenas em sua estreita relação com o corpo da pulsão (que não é o corpo naturalizado da ciência, mas aquele do qual Lacan diz: “o Outro é o corpo”, algo que diz na mesma sessão de 10 de maio de 1967, já citada). Por que deveria ser diferente quando se trata de ideologia? Nunca culpamos um paciente por seus abusos, mas nos esforçamos para expor a estrutura que o mantém como tal.

Não é diferente quando somos confrontados com o abuso de figuras públicas. É fato que essas personalidades carregam a responsabilidade pelos cargos que escolheram ocupar e assim se expõem a críticas; mas essa crítica não pode identificá-los com a estrutura que eles reproduzem, como se fossem sua causa – assim como a psicanálise não identifica o eu com o sujeito do inconsciente. É impossível a um político ser outra coisa senão o ventríloquo do sistema de relações materiais que lhe permitiu ser eleito; então não esperemos grande coisa dele; e tanto mais assim se, como bom lacaniano, estamos sempre com a boca cheia da “inexistência do Outro”. Por outro lado, também não se pode criticar a eficácia dos “discursos” como se não tivessem uma ancoragem muito material, pois cada um participa defendendo-se do sistema de relações sociais.

Não interessa psicologizar as relações de produção a partir dos lugares ocupados pelas “máscaras de caráter” na totalidade funcional. Não é por estarmos cercados de ideologias legitimadoras que elas explicam o funcionamento do capitalismo; explicam no máximo como cada pessoa se relaciona consigo mesma e justifica seu lugar em uma situação objetiva, mas não explicam essa situação. Assim como Freud desistiu de tentar explicar a neurose com base em sua primeira teoria do trauma, o capitalismo não pode ser explicado com base na exploração de uns por outros dentro da relação capitalista.

Assim como o conflito psíquico inconsciente não pode ser confundido com conflitos reais (por exemplo, a última disputa conjugal), o capitalismo não pode ser interpretado a partir de antagonismos visíveis (por exemplo, a última onda de greves), que são apenas a forma empírica de uma relação formal que envolve todos os sujeitos da mercadoria e que sempre se explicita. O “interesse de classe” do proletariado é apenas um dos múltiplos antagonismos competitivos imanentes à forma mercadoria, pré-formada por ela, que não pode, portanto, reivindicar sua posição de transcender o capitalismo;[14] é por isso que ela conseguiu, na melhor das hipóteses, completar sua integração ao custo de transferir a mesma contradição para as periferias do capitalismo mundial.

Por fim, denunciar o capitalismo do ponto de vista de seu fracasso em atender às nossas necessidades básicas também é insuficiente – assim como não basta denunciar a mãe má por querer se livrar do próprio sintoma. No modo de produção capitalista, nenhuma mercadoria é produzida com o objetivo de melhorar nossas vidas, mas com o objetivo de nutrir um processo de valorização que vai além das intenções de cada ator individual. Os valores de uso são, diz Robert Kurz, apenas “desperdícios dentro do processo de valorização do capital”.[15] (Não é que se encontra aqui, por meio de outra abordagem, a função do desperdício proposta por Lacan…) A psicanálise deve, portanto, dedicar-se a elucidar as leis da forma-mercadoria da qual ela não é menos dependente do que as outras “ciências”. Caso contrário, resume-se a uma má idealização filosófica que pretende se excluír do curso das coisas.

Falar de economia política de maneira psicanalítica exige, portanto, um questionamento radical das identificações espontâneas com um dos polos do espectro “político” (por exemplo, essa ideia difundida segundo a qual, como a psicanálise não pode ser praticada em regime despótico, deve necessariamente defender a democracia liberal), mas ainda mais à forma política moderna como tal. Essas identificações apenas diminuem o leque de racionalizações que a forma social capitalista – tanto em suas versões fascista e neofascista, quanto nas versões liberal, ecológica ou social-democrata – se dá a si mesma para não saber nada do que preside sua reprodução global. Eles são posicionados de forma apologética dentro do campo existente e da forma-Estado que constitui sua borda.

“Estado e capital, diz Robert Kurz, se desenvolveram a partir da mesma raiz, condicionando-se mutuamente, como dois lados de uma mesma relação social.[16] Nesta base, o espectro político representa apenas a soma dos programas de desenvolvimento do capitalismo que propõem, como uma coleção de más terapias, resolver tal e tal sintoma do mal-estar capitalista sem jamais tocar sua matriz. Se há pelo menos 400 tipos de terapias[17] (das quais a psicanálise, cabe notar, pretende se distinguir), o capitalismo como civilização é a soma de ideologias que prometem curar suas próprias crises para nunca tocar sua estrutura fundamental. É isso que explica por que a crítica social tem aí um estatuto que não teve em nenhuma sociedade anterior, mas na medida em que essa crítica é sempre deixada para trás, “acorrentada à moderna metafísica do dinheiro”[18] e comprometida com ele.

Essa forma social não sabe levar a crítica ao ponto que exige a intervenção da racionalidade negativa que lhe é inerente, embora seja também a primeira da história a reclamar constantemente de seus próprios efeitos. Devemos levar a sério o incessante ruído de fundo dessa reclamação e a ânsia suspeita de seus oficiantes em vir e dar a solução, por exemplo, elegendo-se ou propondo uma mercadoria substituta (estrutura dupla da ânsia militante de propor alternativas melhores).

Nisso, Lacan estava certo ao atribuir a Marx “a invenção do sintoma”: Marx atendeu a essa reclamação ao desdobrar as categorias lógicas da sociedade produtora de mercadorias que nos levam à catástrofe. A estrutura capitalista só pode ser analisada com a mesma abstinência política que o psicanalista opõe à exigência de uma solução imediata, o que não significa renunciar a uma transformação, pelo contrário. Se a cura vai “além”, disse Lacan depois de Freud,[19] não é diferente para a crítica social, cuja tarefa é voltar rigorosamente aos seus pressupostos históricos – antes que a transformação social ocorra “além disso”.

Um autor da crítica do valor pôde escrever que “o marxismo tradicional, ao longo de sua existência, adotou a ilusão burguesa sobre os temas que costuma examinar”.[20] Uma autocrítica equivalente proveniente da psicanálise poderia ser formulada da seguinte forma: “a psicanálise adotou até agora uma ilusão subjetivista sobre política, que, no entanto, rejeita o sujeito do inconsciente. Essas duas ilusões burguesas são, de fato, apenas uma ilusão dividida em duas, a de um sujeito de consciência senhor de seus atos e a de um homo economicus ou homo politicus agindo na esfera pública por efeito de uma vontade identificável. As duas ilusões — que são uma só — completam-se e reforçam-se pela sua ignorância recíproca.

Uma vez que a psicanálise e o marxismo assumiram apenas um lado da análise, suas respectivas ideologias em última análise emergem ilesas após a adoção de uma metodologia segmentada. “O objetivismo e o subjetivismo não podem se libertar um do outro. O objetivismo requer necessariamente, segundo sua própria lógica, ser completado por seu oposto imanente; o que então acontece de fato, desde que não examinemos o problema da constituição, dissolvendo assim o falso contraste entre objeto e sujeito; a contrapartida do objetivismo, isto é, o sujeito absoluto, permanece o segredo de sua própria imagem distorcida.[21]

Esta constatação levanta um problema de método: como superar o que está cindido na fonte, ou seja, no seio da ação social?[22] A teoria não pode efetuar isso indo além; só pode dar indícios negativos, porque não é na ideia de que algo será superado, assim como, na psicanálise, não é com explicações esclarecidas ou planos terapêuticos que se produz uma modificação subjetiva, mas sem renunciar ao rigor interno da questão colocada pela neurose.

Sendo o real incognoscível para nós[23], podemos recomendar – contra um certo transbordamento lacaniano – a fórmula de Wittgenstein: “o que não podemos falar, devemos calar.[24] Os paradoxos da linguagem e a impossibilidade de dizer a origem não podem esconder as contradições específicas e estruturais do capital, que precisam ser tratadas em seu próprio nível, ou seja, reconstruindo as categorias que presidem suas formas fenomênicas, como Freud fez com a pulsão, o desejo, a fantasia, o narcisismo, etc. A psicanálise nada tem a dizer sobre a essência do homem e deve evitar qualquer tentação desse tipo. (O estruturalismo inegavelmente alimentou essa tendência com sua busca de invariantes universais.)

Quando um analisando nos fala dos problemas do ser ou do homem justamente para não dizer nada sobre seu problema, chamamos isso de racionalizações. O mesmo acontece quando a crítica social se refugia em considerações sobre a natureza humana. É a nossa forma social, aquela que deu origem à psicanálise, que temos a tarefa de compreender – e não o ser ou o não ser do homem abstrato. A variabilidade histórica das organizações sociais nos lembra que a situação atual não é uma fatalidade ligada à espécie humana. Para a história coletiva há algo equivalente ao conceito freudiano, tão afiado, de “escolha inconsciente”; mas disso, é verdade, ainda não temos um conceito adequado.

A psicanálise, portanto, não pode examinar os pressupostos históricos de sua própria doutrina apenas com seus próprios instrumentos conceituais, da mesma forma que não se pode analisar a si mesmo, sozinho. A única homologia que o método analítico mantém com a teoria crítica é, portanto, o movimento que leva ao seu ponto comum de destituição. Nesse sentido, a psicanálise é apenas uma das muitas portas de entrada para a crítica da “metafísica real” (Robert Kurz) do progresso que é seu princípio.

Sua aparição histórica corresponde a uma necessidade objetiva que vai além da terapia, como Freud e Lacan nunca deixaram de dizer. Assim como não julgamos a psicanálise pela soma considerável de erros que se espalharam em seu nome, também não podemos reduzir a crítica da economia política à soma dos horrores que pontuaram sua história, a menos que você não queira saber. Como sempre, a responsabilidade por esta retificação é do autor de uma acusação. Mas como podemos nos livrar da análise de uma ordem social cujos sintomas transpiram de todos os lados e cujas formações singulares coletamos como psicanalistas? A credibilidade da psicanálise depende agora desse progresso, para retirá-la da privatização teórica em que se atolou, desvinculada das intempestivas posições políticas assumidas pelos psicanalistas.

Digamos tão cruamente quanto necessário: com a tutela de Marx, Freud ou Lacan, quem se importa? Não há nada nem ninguém para salvar. Não precisamos de mentores. Trata-se apenas de saber quanto se faz avançar as questões e de como elas são obstruídas, para que a psicanálise seja elevada à altura de seu conceito crítico, que induz sua própria supressão lógica. A crise fundamental do capitalismo e suas queixas exigem tal tratamento teórico. Entendo esse tratamento teórico como a análise crítica da teoria implícita (isto é, da fantasia inconsciente) que já está sempre implicada pelo sintoma e sua questão. Tal análise, rejeitando qualquer “programa de cura”, já é intrinsecamente transformadora.

Sandrine Aumercier , junho de 2022

Este texto é a versão escrita de uma conferência realizada em Marselha em 5 de junho de 2022 como parte da Bienal Internacional de Psicanálise baseada na obra de René Lew, sobre o tema: “Da práxis da teoria à prática da psicanálise — e vice-versa”.


Notas

[1] A psicanálise como ciência “não predicativa” desenvolvida por René Lew não define, como eu a entendo, o raio de uma prática que seria fora do comum dos objetos. Portanto, permanentemente não fazemos nada além de psicologia e não há purismo em defender neste ponto. Sem esse consentimento ao mais comum dos erros, que Lacan chama de necessidade de ser enganado (em Les non-dupes errent), cai-se em um logicismo alheio à experiência. A crítica da psicologia aqui é uma crítica do psicologismo. O psicanalista deve se lembrar de que visa algo além da psicologia, mas certamente não no sentido de mover-se no puro éter da “significação”. Em todo caso, é assim que entendo a intenção de R. Lew.

[2] Eis um último exemplo: Jacques-Alain Miller, “Jean-Luc Mélenchon no sofá”, Le Point, 8 de junho de 2022.

[3] Mesmo que seja a homologia de um esquematismo, que toma os traços isomórficos em seu estado final, isto é, no estado em que se encontram, sem explicar a constituição genética dessa forma comum, que, no entanto, constitui o verdadeiro desafio teórico, sob pena de cair na imaginação das semelhanças.

[4] Agradeço a René Lew por sua advertência quanto a noção inadequada de “superego coletivo”.

[5] Gostaria de agradecer novamente a René Lew por sua observação sobre o genitivo objetivo e o genitivo subjetivo que me ajudaram a esclarecer este ponto.

[6] Jacques Lacan, La logique du fantasme, seminário de 10 de maio de 1967, inédito.

[7] Ver, em particular, Heidemarie Bennent, Galanterie und Verachtung, Frankfurt, Campus, 1985.

[8] Ver Francis Dupuis-Déri, ​Democracy: political history of a word in the United States and France, Paris, Lux, 2013.

[9] Ver, em particular, Jacques Le Goff, The Middle Ages and Money, Perrin, Paris, 2010.

[10] Objetar-se-á aqui que muitas contribuições políticas de psicanalistas, como já mencionei pensar, não apresentam um tratamento sério das categorias da economia política.

[11] Ver Jacques Lacan, “La méprise du sujet supossé savoir”, em Autres écrits, Paris, Seuil, 1967, p. 338: “ora, é sobretudo na prática que o psicanalista deve se igualar à estrutura que o determina, mas não em sua forma mental. Antes vem a ser o impasse, mas na sua posição de sujeito inscrito no real: tal inscrição é propriamente o que define o ato”.

[12] Theodor W. Adorno, Dialética negativa, Paris, Payot, 1992.

[13] As contribuições de David Pavón Cuéllar são preciosas neste ponto. Veja seu blog em espanhol: https://davidpavoncuellar.wordpress.com/. Veja também a conferência de Fernando Tápia Castillo de 30 de abril de 2022 na Universidade de Montpellier III: “Le voile fétichiste de notre civilisation. Marx avec Lacan. Analyse critique de la critique lacanienne fondée sur plus-value ».

[14] Ver Robert Kurz, Ernst Lohoff, Le fétiche de la lutte des classes. Albi, Crise & Critique, 2021 [1989].

[15] Robert Kurz, “Unnützer Gebrauchswert”, Neues Deutschland, 28/05/2004.

[16] Robert Kurz, L’État n’est pas le sauver suprême, Albi, Crise & Critique, 2022, p. 31.

[17] Sarah Chiche, Les grandes familles de psychothérapies”, Sciences Humaines, 2013/6, n°31. On-line: https://www.cairn.info/magazine-les-grands-dossiers-des-sciences-humanes-2013-6-page-13.html

[18] Veja Robert Kurz, “The End of Theory – Towards a Mindless Society”, trecho de Weltkrise e Ignoranz. Kapitalismus im Niedergang, Tiamat, Berlim, 2013. Online em francês: https://grundrissedotblog.wordpress.com/2022/02/18/robert-kurz-la-fin-de-la-theorie-vers-une-societe-sans-reflexion/  

[19] Sigmund Freud, Psychanalyse et Théorie de la libido, dans Résultats, idées, problemes, II, Paris, PUF, 1985 [1923], p. 69: A eliminação dos sintomas de sofrimento não é buscada como um objetivo particular, mas, sob a condição de uma condução rigorosa da análise, é dada, por assim dizer, como um benefício adicional.

[20] Ernst Lohoff, La fin du prolétariat comme début de la révolution, Albi, Crise & Critique, 2022, p. 73.

[21] Ibidem, pág. 72.

[22] Esta é também a questão colocada por Theodor W. Adorno em A propos du rapport entre psychologie et sociologie », dans Société : Intégration, désintégration, Paris, Payot, 2011, [1955].

[23] Sigmund Freud, Abrégé de psychanalyse, Paris, PUF, 1975 [1938].

[24] Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, Paris, Gallimard, 1961, p. 107.